A grande farra


Segundo a esquerda ideologicamente trauliteira e insaciável, toda a fome será suprida no banquete do poder, mesmo que o saciador venha a cair exausto de excessos.


Com este titulo, em 1973, Marco Ferreri assinou o seu mais importante filme, que acabaria por ser distinguido no Festival de Cannes com o “Prémio da Crítica Internacional”.

Nele, quatro amigos quarentões bem sucedidos na vida, decidem retirar-se para uma casa no campo com um único objetivo: comer até morrer.

Marcello, piloto, Michel, executivo de televisão, Ugo, «chef», e Phillippe, juiz, todos insaciáveis, querem entregar-se à gula ímparável …

Após a primeira noite, Marcello, o piloto, insiste que para quebrar a monotonia, devem juntar-se mulheres ao grupo, acabando assim a chamar três prostitutas que não conseguem aguentar a farra, ficando apenas uma delas, Andrea, até ao fim.

No final, é o deboche sob a forma de crítica social, numa síntese recreando para a época, uma espécie de devassa burguesa atrevidota.

1. Lembrei a peça comparando a vida política em Portugal nestes últimos quatro anos e o que mais se anuncia de semelhante para os próximos quatro. Uma verdadeira farra política, em que vale tudo menos tirar olhos, reproduzindo Ferreri numa contemplada versão nihilista de afirmação do poder pelo poder, com actores extravagantes dominando o espaço público, testando o Estado e os seus limites como se Portugal fosse um laboratório, revisitando o ambiente de loucura e experimentalismo de um novo prec, com o apimentado de pertencermos agora à União Europeia.

Hoje, tudo aponta para a aproximação e recriação ao mesmo Estado que até 2011 não se conteve e só caiu na real com os mercados a cortar o crédito, regressando na legislatura que agora termina, à promiscuidade entre esquerda e partidarismo, como possuidores e donos do Estado.

Por ele, Estado, segundo a esquerda ideologicamente trauliteira e insaciável, toda a fome será suprida no banquete do poder, mesmo que o saciador venha a cair exausto de excessos, como na grande farra.

Nestes quatro anos tudo foi possível, aproveitando uma conjuntural época de crescimento económico mundial, totalmente desaproveitado nas suas folgas para reverter fragilidades estruturais cuja correcção permitiria que Portugal não continuasse no fundo da tabela do crescimento económico com o frouxo 1,8% do PIB, enquanto países de potencial produtivo inferior superam duas três vezes este patamar.

Enquanto estes pressupostos vão durando a farra tem sido permanente.

2. Este governo e o naipe partidário que o acompanha, colocou no discurso o fim de impostos e sobretaxas sobre o rendimento das famílias exigidos pela troika, para logo de seguida levarem até aos 162 dias o tempo médio de trabalho de um contribuinte português para pagar impostos anuais (fonte: Institut Économique Molinari)).

Em Portugal, a carga fiscal total (incluindo encargos para segurança social) situa-se hoje nos 44,47 %, significando que só no dia 11 de Junho de cada ano é que deixamos de trabalhar para pagar o imposto sobre o rendimento, sobre o consumo e segurança social do ano. É a 15ª maior carga fiscal entre os 28 países da UE.

Em Portugal o salário bruto dos trabalhadores portugueses é, em média, 21.682 euros por ano, mas cada um apenas leva para casa 13.013 euros depois do IRS, IVA e contribuições para a segurança social.

3. Ao mesmo tempo que nesta legislatura, o governo apoiava a farra da modernidade exibida no Parque das Nações em Lisboa – pagando 100 milhões de euros dos contribuintes, assim brindando os organizadores da WebSummit – deixava que as novas tecnologias no Estado entrassem em colapso nos balcões do cidadão, onde era suposto encontrar-se a exibição tecnológica da desburocratização e da modernidade. Não, o que se exibe em Lisboa e arredores são as filas da madrugada com população amontoada nos passeios e as imagens a fazer lembrar a Venezuela da sopa dos pobres, aqui para obtenção de uma senha para alcançar um simples Cartão de Cidadão ou passaporte.

4. Quis dar um arzinho de propósitos colectivizantes para segurar zonas de influência sindical ao PCP/CGTP, na reversão da concessão de exploração de transportes ferroviários urbanos no Porto e em Lisboa, já que nacionalizar tem um pequeno problema: obriga a pagar indemnizações. Mas a farra da reversão vai ser penalizada com litigância de milhões de indemnização compensatória pelas rescisões. Coisa pouca para impor ideologia colectivizante caduca que, por exemplo na presença reforçada do Estado na TAP, voltando às responsabilidades de que tinha saído, significam assumir no futuro prejuízos de mais de 100 milhões de euros só no ano de 2018.

5. O governo do PS em 2007 suspendeu a progressão de carreiras a milhares de professores. O actual, não repondo a normalidade num tempo de crescimento económico, tornou definitivo o que era provisório. Com a mesma desfaçatez decisória, reduziu a semana de trabalho para 35 horas, obrigando à admissão de milhares de trabalhadores na função pública. Dizem então que não há recursos para o cumprimento das obrigações com os professores. Encontram recursos para permitir menos horas de trabalho, exigindo mais funcionários públicos (entraram ou viram regularizada a situação mais 50 mil, anulando praticamente o esforço de redução durante o período da troika).

6. Reverteram benefícios fiscais chegando a baixar o IVA da restauração, para logo levarem a valores historicamente altos os impostos indirectos sobre os combustíveis, constituindo as áreas de serviço como verdadeiros balcões da Autoridade Tributária, em que pouco interessa o preço do bem que ali se adquire (crude refinado), para prevalecerem os preços mais altos de combustíveis na Europa, através de impostos, tributos e alcavalas estratosféricas.

7. Usaram o poder de legislar aprovando legislação por mera gestão de conveniências políticas entre apoios à esquerda, cedendo designadamente à demagogia de normativizar contra-ordenações sobre gestão de beatas e animais, num radical abuso e vergonhosa aproveitamento e manipulação partidária do avanço da consciência sobre o ambiente e a natureza dos animais numa sociedade moderna. Enquanto isto, nem um passo legiferante para captar investimento estrangeiro, colocando Portugal no topo das melhores práticas e quadros de atracção na Europa em concorrência com os melhores do ranking neste domínio.

8. Cativaram verbas orçamentadas para gestão de hospitais e escolas, levando ao colapso dos serviços e pondo em causa a qualidade da saúde e do ensino. Na saúde, a grande farra da ideologia colectivista aplicada ao Estado, levou a que este fim de semana tivesse terminado a gestão hospitalar privada de um dos melhores hospitais do país, o de Braga, reconhecido como modelo de qualidade nos serviços. Este é também um caso exemplar de despudor e desprezo na tomada de decisões à luz do elementar bom-senso governativo e até dos representantes locais que desejavam o prosseguimento do modelo existente, tudo sacrificado no altar da conveniência ideológica e do mercadejar do apoio dos parceiros comuno/radicais a este governo.

9. Estamos perante o total incumprimento do que prometeram cumprir quanto aos serviços do Estado, chegando à monumental farsa de actuar para satisfazer Bruxelas exibindo um défice artificial que esconde a realidade orçamental como antes de 2011, com dividas em atraso e degradação de equipamentos onde se nega a despesa de investimento, fugindo à perfeição do perímetro de dívida do Estado no seu conjunto, que hoje se sabe não corresponder à realidade enviada para Bruxelas.

10. O que mais choca, do ponto de vista político, é a observação retroactiva de que nada disto em 2015 foi objecto de afirmação eleitoral perante o povo, que pudesse assim sindicar as escolhas prospectivas que se previam com esta solução governativa.

Estes momentos (não exaustivos) da grande farra, mesmo que democrática, não foge à venalidade política exuberante de uma certa impunidade que a sociedade vai permitindo, perante o olhar longínquo da oposição e do Presidente da República.

Questão ainda mais preocupante é que tudo aponta para a vontade de continuarmos no mesmo quadro nos próximos anos, conjugando o anúncio de ainda maior farra no Estado, ao mesmo tempo que o primeiro-ministro fala com perplexidade do anúncio de nuvens negras no horizonte, isto é, a hipótese de chegada do “diabo” da recessão que A. Costa tanto exorcizou. Verdadeiramente criativa a hipótese de trabalho …

Menos se percebem as propostas do PS e dos parceiros para os próximos quatro anos, uma coisa demencial à luz das expectativas de gerações que, emigrando, recusam este projecto: impostos “à la carte” chegando a taxas de 75% sobre o rendimento de pessoas singulares segundo o PCP, até mais 150 mil funcionários públicos que garante o BE e o PS são necessários, passando por serviços nacionais de saúde para animais do partido que explora este nicho de mercado. Todo este projecto permite assegurar que a farra irá prosseguir, anunciando-se mais retiros devassos para os próximos quatro anos com um Estado insaciável nas mãos de quem acha que a sociedade, as famílias e as empresas tudo podem suportar na sua plasticidade económico/contributiva.

As eleições dirão, mas este primeiro-ministro não ficará na história como governante de afirmação do país, na criação de riqueza pela modernidade das reformas no sistema politico, reformas na captação de investimento estrangeiro e sustentabilidade da saúde, da Justiça, dos transportes e desburocratização do Estado; ninguém o esquecerá pela página que abriu na expressão de capacidade habilidosa de “usar” radicais de um modelo de sociedade arqueológica, colocando-os ao seu serviço eleitoral.

Percebe-se assim que não peça maioria absoluta: a desconfiança quanto à sustentabilidade de uma nova grande farra na próxima legislatura, talvez esteja a colocar os próprios protagonistas de sobreaviso quanto à sua não repetibilidade.

Há tempos assim.

Jurista

Escreve quinzenalmente