O meu amigo Jorge Palma poderia cantar bem a propósito: “Santa Apolónia arrotava magotes de gente/ Do seu pobre ventre inchado, sujo e decadente…” Parecia que o destino escolhera aquele dia para juntar um ror de problemas em redor dos comboios que partiam de Lisboa ou a demandavam. Salsifré de arrepiar os cabelos às autoridades que andavam, aqui e ali, a apagar fogos, como sói dizer-se.
Curiosamente, os comboios de Portugal tinham, há bem pouco tempo, deixado de deitar fumo, com o advento da eletrificação. Por isso, era tempo de haver fogo sem fumo, com perdão do trocadilho barato. José da Conceição andava aos gritos como um possesso. Vasculhara os bolsos em busca do bilhete para Santarém e só encontrara bilhetes de elétrico já trincados. O fiscal aconselhou-o, com termos, a comprar outro. “Isso é que era bonito!”, exclamou, furibundo. “Vou pagar mais 1$60??? Seus ladrões! Não pago de forma alguma!” Problema montado. “Ou paga ou chamo a polícia, que já me está a bulir com os nervos!”, gritava, por seu lado, o funcionário da CP, a tentar manter o decoro a que a farda o obrigava. “Você é um garoto!”, bufava o outro. “Não pago, não pago e não pago”. Veio a polícia. E a esquadra. Afinal, o malandrim já tinha tido um dia em cheio. Havia queixa registada em Sete Rios por um taxista. Viajara e recusara-se a pagar. A vida não lhe correu bem. Presente a juiz, levou uma pena de 12 dias de prisão remíveis a 20$00 mais 100$00 de imposto. Os 1$60 saíram bem mais caro do que pensava.
Edmundo, o rebelde O dia estava para episódios como este. Repetiam-se por todo o lado. Corações danificados e cabeças em polvorosa, diria o Palma. Edmundo de Jesus, com uns copitos a mais, não aguentou o calor senegalense da tarde. Deitou-se a todo o comprimento num banco que vagou e bateu a sua sorna embalada pelos vapores do álcool. Ora, um membro voluntarioso da Polícia de Segurança Pública não gostou dos preparos do sr. Jesus. E não se deixou impressionar pela cristandade do apelido. Empurrou-o primeiro, mas não ouviu mais nada do que um ronco vindo lá do fundo dos pulmões. Tocou-lhe nas pernas com o bastão e parecia que lhe dera um choque elétrico. “Ora, seu pelintra!”, gritou Edmundo, acordando furibundo. Pelo meio, dois ou três palavrões que não vou pôr aqui em letra de forma. O agente não tinha bom feitio. Deitou-lhe a manápula ao ombro, virou-o de costas e algemou-o em cinco segundos, sem dó nem piedade. Jesus gritava como um bezerro, juntava-se a populaça, uns contra e outros a favor, como sempre acontece em situações análogas.
A voz de prisão deu lugar a uma visita à esquadra. O costume. Depois da esquadra e da burocracia, o tribunal. “Por chamar pelintra a um polícia – talvez ainda sob o efeito de um pesadelo económico – vai pagar a sua pelintrice com 20 dias de multa a 20$00 ao dia, mais 50$00 de imposto de justiça”, disse o juiz, que prezava muito a educação.
Uma hora antes, um fedelho de nome Florêncio resolvera mangar com um fiscal da CP. Para pagar o bilhete dele e de mais dois amigos, no valor de 1$00, foi contando lentamente, na palma da mão, moedas de centavo até ter esgotado a paciência do funcionário, que resolveu repreender-lhe a insolência. Em troca, foi cuspido de grosserias de marca maior. E o jovem Florêncio atirou-lhe as moedas para cima sem qualquer tipo de respeito. Mal chegados a Santa Apolónia, foi detido pela autoridade. E para ser detido foi o cabo dos trabalhos. Chegou mesmo a arregaçar as mangas da camisa e a esticar o peito ao polícia. Vinte dias de prisão! Era no tribunal da polícia que desaguava, diariamente, toda a crónica infeliz da cidade.