Miguel Reino. “O Louboutin salvou-me a vida, comprou-me as duas casas”

Miguel Reino. “O Louboutin salvou-me a vida, comprou-me as duas casas”


Foi sacristão, começou a trabalhar aos 13 anos num restaurante de um tio e é no seu restaurante que podemos vê-lo ao leme da cozinha.


É uma personagem que se dá por ela à distância. As gargalhadas, o vozeirão e o assobio são a sua imagem de marca. Começou a trabalhar aos 13 anos e nunca mais parou. Andou pelo Brasil, onde pesou ouro, trabalhou na cozinha de vários hotéis, explorou com o irmão João uma pousada e um restaurante em Búzios. Regressou a Portugal para ajudar o irmão Gigi no lançamento do restaurante da Quinta do Lago, até que teve os seus restaurantes: A Picanha e o Aqui Há Peixe. Mas há muito mais na vida de Miguel Reino, um homem que mudou de vida há quatro anos, devido ao seu misticismo. Aqui fica a história do outro Reino, que usa uma linguagem que mistura muito o português de Portugal com o do Brasil. A mulher, Mafalda, deu uma ajuda para recordar episódios vividos a dois.

É um alfacinha? 

Nasci em casa, no Campo Pequeno, à tarde. Os meus irmãos não puderam entrar porque eu estava a nascer. Sou o último de quatro irmãos, muito brincalhão, maluco e muito mimado pelos irmãos. Perdemos a mãe, de que não me lembro, mas acho que isso nos marcou a todos como crianças. A mim menos, por causa do carinho que os meus irmãos tiveram por mim e pelo acompanhamento do meu pai. Tenho 57 anos. Nasci em 1962. 

Nunca chegou a conhecer a mãe?

Não. Tinha dois anos e meio. Fui para o colégio das irmãs ao lado de casa, que era o Ninho de Crianças. Acho que sempre tive uma mãozinha de Deus ou uma atenção da minha mãe em toda a minha vida, isto porque fui sempre um protegido. Das coisas que me aconteceram na minha vida, dos acidentes que tive quando era miúdo, desde ser atropelado porque era muito teimoso – o meu pai dizia, “não saias daqui”, e ele virava as costas e eu atravessava a rua e era atropelado – a partir a cabeça, os pulsos, pernas. Sempre tive uma proteção especial ao longo da vida através da alegria e da força de viver. Na escola primária já senti um pouco a perda da mãe quando perguntavam quem era o pai e quem era a mãe, e eu não tinha mãe. Esta era a parte sentimental de criança, no bairro de São Miguel, na escola primária. Depois fui para a escola Eugénio dos Santos e, como desde muito novo que quis ser independente, comecei a trabalhar aos 13 anos numa farmácia. Era a Farmácia Miranda, onde entregava os remédios na casa das pessoas. Ganhava mais gorjetas do que o meu próprio salário porque, como era muito simpático e prestável no meu serviço, os clientes gostavam muito da minha postura. Em relação aos amigos, éramos um bom grupo de amigos no Campo Pequeno, onde brincávamos todos os dias. Nunca estávamos quietos, brincávamos à apanhada, às escondidas, a jogar à bola, andar de bicicleta e andar com andas. 

O que fez com o primeiro ordenado?

Agarrei no ordenado e convidei os meus amigos para beber imperiais e comer berbigões na Nova América, que era uma cervejaria que havia na Rua de Entrecampos. Dos 13 aos 16 anos estive a trabalhar na farmácia e a estudar, mas não tinha muito jeito para estudar. Além da dislexia tinha vontade e força de viver, ainda acho que tenho, e vontade de estar sempre a fazer coisas. Como tinha pouco jeito para estudar, o meu tio, que tinha um restaurante na Calçada de Carriche, o Papagaio da Carris, desafiou-me nas férias de verão para ir fazer os almoços. Então trabalhava de manhã na farmácia, pegava na minha mota, que tinha desde os meus 13 ou 14 anos, e ia para o restaurante do meu tio servir os almoços. 

Já com 16 anos?

Sim, o meu tio viu que tinha queda para o negócio. Era muito simpático com os clientes, servia bem. E viu em mim o sucessor da casa Papagaio da Carris, mas continuava a trabalhar na farmácia e a estudar no Liceu Rainha D. Leonor. Só que com a liberdade, com os amigos e com dinheiro no bolso queremos outros horizontes. O meu irmão João, que estava no Brasil – e que para mim foi uma perda porque estava sempre com ele, já que era o meu protetor -, veio em abril de 1980 a Portugal visitar a família e desafiou-me para, quando tivesse 18 anos, fosse para o Brasil. Aceitei e gostei muito do desafio de ir para o Brasil porque aqui ou ficava no restaurante do meu tio ou na farmácia. Mas, na farmácia, o meu patrão não me dava a possibilidade de evoluir. Decidi ir para o Brasil no dia 8 de setembro de 1980. Nunca tinha andado de avião, fui pela Royal Air Maroc e fui comprar a minha primeira mala para viajar. Cheguei ao Brasil, fui para outro país, e quando aterrei no Rio de Janeiro pensei: “O que é que vim para aqui fazer?”

Sentiu uma certa sensação de vazio?

Um vazio muito grande. Perdi os amigos, tinha deixado tudo para trás, a minha família, a minha vida toda, para ir ter com o meu irmão e onde não conhecia ninguém. Mas achei aquilo lindo, aquilo era o Zé Carioca da banda desenhada. Fui morar para debaixo do Morro da Urca, o meu irmão foi-me buscar ao aeroporto, levou-me para casa, mostrou-me onde eram os autocarros, uns eram para a zona sul, outros para a zona norte, que era para não me perder. Ele foi trabalhar e, passado um dia, tinha de viajar para a Suíça e deixou-me sozinho. Avisou-me que ia lá uma amiga buscar um isqueiro de que se tinha esquecido numa festa, fiquei lá em casa, muito envergonhado, e quando tocam à campainha era a Mafalda, a minha atual mulher. Conversámos, era a única pessoa que tinha falado português de Portugal até essa altura. Pôs-me à vontade, disse que aquilo era bom. Mas a timidez também era muita, e o que é que fiz? Debaixo da casa havia um botequim, um posto policial, uma padaria e uma praia. O meu irmão disse para ter cuidado por causa dos assaltos, então saía de casa e comecei a fazer amizade com o polícia em frente. Quando o meu irmão saiu de casa num fim de semana, o polícia arranjou logo uma namorada para mim e levei o polícia para dentro de casa mais a namorada. Essa foi logo a primeira experiência no Rio de Janeiro. 

O que estava a fazer lá?

Trabalhei numa empresa de mineração.

Na mineração?

Sim. Contava pepitas. Como era uma pessoa de confiança tinha uma sala só para mim, onde tinha uma balança para pesar o ouro. 

Quanto ouro pesava por dia?

Não sei, uns 10 quilos. 

Por quanto tempo?

Estive lá uns seis meses, um ano. Depois passei para a parte da contabilidade, para aprender um ofício. 

Mas não era disso que gostava?

Não, adormecia a lançar os papéis. 

Ganhava muito dinheiro?

Não. Ganhava um salário normal e gastava quase tudo. 

Em quê?

No forrobodó. Ia sempre para as tasquinhas, para o chopinho, para a sardinha frita, para a carne seca. Adorava. Entretanto, o meu irmão decidiu comprar um barco à vela e aí comecei a minha iniciação no barco à vela, com 20 anos. Era um barco de regata e começámos a velejar todos os fins de semana. Como trabalhava de segunda a sexta-feira, os fins de semana nunca eram passados no Rio; ou ia para Búzios ou ia para a montanha, para as fazendas. O primeiro Natal passado foi com uma família Baptista, na região do Espírito Santo. 

Em 80, ainda havia muitas famílias portuguesas a viver no Brasil?

Sim.

E em condições pouco favoráveis?

Não senti que estavam em condições muito favoráveis. Estavam a lutar pela vida. Lembro-me de ver o Chico Queirós, que depois veio para Portugal, o Deslandes, o Chico Nobre Guedes. Eram pessoas que conhecia e que eram amigos do meu irmão que estavam a trabalhar, mas não estavam à vontade. Tinham uma vida mais ou menos pacata. Ao fim de semana encontrávamo-nos para beber um chopinho no boteco e não fazíamos grandes extravagâncias. Depois, o meu irmão comprou uma pousada em Búzios, começámos a ir para Búzios, umas vezes de barco, outras de carro. E surge uma hipótese de comprar uma pousada que era a Byblos, muito bem localizada, de uma francesa e de um uruguaio, onde ele arranja mais três sócios. O meu irmão João fica a gerir a pousada e íamos todos os fins de semana para lá. 

Mas deixou o negócio da mineração?

Sim. O meu irmão ainda fica no Rio a acabar o curso de Economia, mas íamos ao fim de semana para gerir a pousada. Em Búzios havia muito bons restaurantes porque, na altura, os chefes Lenôtre e Jacob foram convidados para abrir restaurantes de primeira nos hotéis no Rio Palace e no Meridian, com a nouvelle cuisine – é aí que aparece a nouvelle cuisine no Brasil, com a ida de muitos cozinheiros franceses para o Rio. Em Búzios começo a dar-me com esses franceses e começo a trabalhar aos fins de semana na cozinha, e começa a saudade da restauração e começo a trabalhar num restaurante. 

E como era a noite no Rio?

Em termos de boates havia o Hipopótamo, mas era muito elitista. Era muito caro e não tinha hipótese de entrar. Mas na noite do Rio havia mais os botecos. Gostava mais da parte carioca: do samba, do pagode, dos ensaios da escola de samba, dos shows, onde tive a oportunidade de ver uma série de concertos. 

O que fazia no restaurante?

Preparava os legumes e estava a ajudar a chefe na cozinha. Entusiasmei-me e há um amigo português, o Rafa Pinto Eliseu, que me arranja uma entrevista no Sheraton do Rio. Fui falar com o chefe executivo e disse que gostava de cozinha, mas que não sabia cozinhar e que a minha experiência era de dois ou três meses. Ele achou interessante e deu-me a oportunidade de ir para o coffee shop no Sheraton para fazer saladas, milkshaques, cocktail de camarão. Naquela altura, a hotelaria fazia todos estes pratos tradicionais. Mas andava sempre a curtir – quando saía do hotel ia sempre para o forrobodó, beber copos com o pessoal do hotel. Vivi bastante o Rio. Entretanto passei por todas as cozinhas do Hotel Sheraton e tive uma vaga para o restaurante principal, onde só havia três cozinheiros e era muito difícil entrar. Como tinha tido uma boa evolução, convidaram-me para ir para o Sarau, onde volta e meia ia o meu irmão João com os amigos. Lembro-me de ter uma janela para a sala e acenava quando os via. Entretanto fui desafiado para ir para um restaurante de cinco estrelas no Rio Palace. Foi uma evolução muito grande, aceitei logo de caras o convite porque era um sonho para qualquer cozinheiro trabalhar com um chefe francês.

Já com experiência…

Com alguma experiência, mas numa parte básica da hotelaria. Mas aqui faltam-me umas datas. Quando saio da mineração faço uma viagem até à Baía de carro com um amigo, durante um mês, onde fiz o litoral todo. Nunca tinha ouvido falar de candomblés, já tinha ouvido falar de pais-de-santo no Brasil, mas esse amigo vira-se para mim e diz que a razão da viagem era para fechar o corpo. A partir daí comecei também a perceber o meu lado espiritual porque, quando entravámos em qualquer boteco ou dormíamos em quartos, ele transformava-se. Eu ficava impressionado. Os baianos diziam que baixava o santo nele e que eu tinha uma boa proteção, que era um painho. Esse foi o meu lado do mundo dos espíritos, foi a primeira experiência que tive. Quando cheguei a Salvador não tinha dinheiro e estava lá um primo, e ele conseguiu que ficasse lá por tempo indeterminado. Acho que fiquei lá um mês e meio a viver no quarto dele e a trabalhar sem receber dinheiro, só para alimentação. 

Mas voltou ao Rio?

Sim, o meu irmão insistiu que fizesse um curso e surgiu um que era o primeiro de hotelaria, onde faço o exame e passo. Falo com o chefe e passo para a cozinha central e para o bar dos banquetes, que tinha vaga para ficar no hotel, e começo a estudar à noite. Com a faculdade e o hotel surge um desafio para abrir um restaurante no Rio, o Negresto, com Luciano Pires e mais dois portugueses. Com 25 anos, aceitei esse desafio para ser chefe de cozinha e chefiar o restaurante. Só que, como à noite não podia estar lá por causa da faculdade, a equipa que formei no restaurante fazia tudo ao contrário e esse projeto não durou mais do que um mês e meio, dois meses. Saí e o meu irmão decidiu abrir um restaurante em Búzios, debaixo da pousada, e em 1985 abrimos o Adamastor. Ele também largou todos os negócios no Rio e fomos viver para Búzios com um barco à vela feito no Rio de Janeiro: o Liberdade, com quem pensámos fazer uma travessia no Atlântico.

Nunca fizeram?

Fizemos, fiz duas. Com o Liberdade, fizemos a primeira. O meu irmão Gigi, que lá ia todos os anos, em 1985 conheceu o projeto do restaurante e adorou. Nessa altura, já tinha estado no Algarve, na Quinta do Lago, a iniciar o seu projeto. Quando chegou a Búzios convidou-nos para virmos a Portugal no verão, que era o inverso do verão no Brasil. Nessa altura, viemos de barco para o Algarve. 

Quem veio?

Eu, o meu irmão João, a namorada dele e dois amigos.

Quanto tempo demorou a viagem?

Para mim demorou um mês e meio. Uma semana de Búzios até Salvador e, depois, de Salvador até aos Açores demorou um mês. Nos Açores tive de sair porque o meu irmão Gigi tinha aberto o restaurante há um mês. Cheguei em meados de abril e apanhei o avião dos Açores para ir para o Algarve, para ir grelhar para o Gigi.

No início, o Gigi só tinha sandes…

Já tinha peixe e os carabineiros. O molho dos carabineiros vem dessa altura.

Em que ano foi?

Em 1986. Ficava seis meses na Quinta do Lago, até novembro, e voltávamos para Búzios de novembro até março. No primeiro ano, ainda ficou aberto o restaurante em Búzios, mas era uma zona muito sazonal e só dava prejuízos. Resolvemos que sempre que vínhamos para Portugal fechávamos o restaurante.

E esse vaivém durou quanto tempo?

De 1986 a 1989. Foram quatro anos. 

E não era uma logística complicada?

Mexe um pouco com o estado de espírito porque, naquela altura, o Brasil mudava muito: mudava a moeda, mudava a inflação, era uma confusão desgraçada. Isto enquanto a Quinta do Lago estava a arrancar. Tive o privilégio de viver no início dos lugares, na parte mais selvagem. Búzios não tinha nada quando fomos para lá, pegávamos em lagostas com a mão, tínhamos filetes de cação na praia que os pescadores nos davam. Velejava todos os dias. No Algarve, também não havia nada, na Quinta do Lago dormíamos nas dunas, no restaurante, no barco. Saíamos todas as noites até às 4h da manhã e depois íamos para o mercado, às 8h da manhã, para apanharmos o peixe fresco, porque os donos dos restaurantes iam lá sempre cedo e, como estávamos a arrancar com o negócio, tínhamos de ir primeiro para apanhar o melhor peixinho. Era uma luta de titãs, mas com a nossa simplicidade e humildade e com a postura do Gigi tínhamos de dar a volta de uma maneira diferente. 

Já compravam à peixeira Beatriz?

Sim. Mas ela dividia-se. Sempre acreditou no meu irmão, mas quem chegasse primeiro é que levava o melhor peixe, e nós chegávamos primeiro. 

De direta?

Não. Íamos para a discoteca Pateo, onde costumava estar o George Michael com uma japonesa. Dançávamos na pista com o George Michael, era fantástico. Apareciam sempre na Quinta do Lago umas grandes personagens que nos fascinavam. Era todas as noites a bombar.

Além de George Michael, quem aparecia mais?

Os Agnellis, todas as figuras internacionais importantes da altura. Depois fizemos uma festa da Reader’s Digest em que o pavilhão [restaurante do Gigi] virou um castelo, tudo mascarado. Foi uma festa fantástica. Aliás, fizemos festas fabulosas no restaurante. Era uma onda muito natural. Se aquela ponte falasse… (risos) 

Quando é que sai?

Comecei a namorar com a Mafalda em 1988, começou a vir para Portugal e fazíamos as viagens cá e lá, optámos por vir para Portugal. O Gigi arranjou um projeto de inverno em Sintra, a Flor da Várzea, em 1989. Queria um projeto de cozinha tradicional portuguesa com caça, mas a minha escola e a minha formação eram completamente diferentes. O que fizemos? Decidimos fazer alguns pratos tradicionais, como as galinholas, as perdizes, e lançámos o churrasco porque aqui não havia grande tradição disso nem de picanha. Não havia cortes em Portugal, os talhantes cortavam a folha de alcatra, mas só aproveitavam para bifes. Então ia aos talhos de Sintra para me arranjarem os cortes de picanha e eu fazia a maturação da carne para vender no restaurante. Era um sucesso a picanha, lá. Na Flor da Várzea, o que nos deitou mais abaixo foi quando surgiu a lei do álcool e o Gigi era um boémio e tinha muitos amigos que encharcavam a vela – e, com a lei do álcool, os amigos não se deslocavam tanto para Sintra porque tinham medo de serem apanhados pela polícia. Fiquei lá um ano e meio, mas foi um projeto que não teve grande continuação porque era muito difícil vingar. 

O que se seguiu?

O Só Crepes, no Cascais Shopping. Apesar das contrariedades, a muito custo – sempre acreditámos, em todos os projetos que fizemos, que tínhamos de dar qualidade e o melhor ao cliente – conseguimos vingar. 

Foi uma mudança grande de conceito…

Foi uma maneira de realizar capital, de acordar. Estava sem dinheiro, sem ânimo, estava num buraco que era difícil. Os crepes foram um sucesso, vendíamos uma média de 200 por dia. Depois conheci um personagem em Sintra, o Alexandre Taborda, que tinha um espaço em Lisboa, na Rua das Janelas Verdes, que era um bar, o Palpita-me. Fui ver o espaço e, nessa fase, a minha ideia era fazer um produto específico. Vim ver o espaço e o investimento era pago em dois meses. Era só fazer um balcão, pôr a grelha e empregar três pessoas. Resultado: 70 refeições por dia de picanha. Foi um crescimento brutal. Passados seis meses comprámos o espaço ao lado, que era o dobro: crescimento total e fizemos a Picanha, que marcou a minha vinda para Lisboa. Apesar de ser só um prato, deu-me uma alma e, financeiramente, deu-me estabilidade. Mais tarde surgiu a ideia de ir para a Comporta, o meu irmão tinha sido convidado para ir para lá e liga-me a dizer que o Bernardo Espírito Santo queria fazer um projeto na Comporta, mas o Gigi não queria ir porque tinha o Algarve. Foi assim que surgiu o projeto na Comporta [o Aqui Há Peixe]. Nessa altura tinha sido operado ao joelho para fazer a minha extensão de joelho e fui ver o espaço na Praia do Pego.

Qual era o problema do joelho?

Tinha o fémur torcido e não tinha a extensão toda da perna, e acabei por ser operado. Sempre fui manco depois de um acidente que tive na Aldeia da Ponte – aldeia dos meus pais, no Sabugal -, quando parti as pernas. Mandei-me de um primeiro andar e caiu-me uma pedra em cima das pernas quando tinha 11 anos. 

Vai fazer essa operação…

E surge o negócio da Comporta. Aceitei o desafio de ir para a praia mas, como sozinho não podia ir, disse ao meu irmão – que tinha uma participação que lhe tinha dado para ter uma ligação moral – que tinha arranjado outro sócio, o Ginja. Mas a minha maneira de trabalhar não foi compatível com a dele e decidi que o lugar ficava para ele ou para mim. Não aceitou ficar com o Aqui há Peixe e vendeu-me a participação dele passados seis meses. E ficámos 11 anos na Comporta.

Voltando à primeira viagem que fez de barco do Brasil para os Açores. Quando chegou, fechou o Peter Café Sport.

Chegámos passado mais de um mês aos Açores à vela, sem motor, sem nada. Fiz uma feijoada à brasileira no meio do Atlântico para comemorar a passagem. Chegámos aos Açores e não havia nada, não havia marina. Tinha levado 1500 dólares, que era o dinheiro todo que tinha ganho em Búzios, e quando chegámos vínhamos deslumbrados, tínhamos passado 30 dias sem ver terra. Foi ótimo, foi uma sensação única na vida. E vamos ao Peter, tinha lá uma carta de uma namorada. O meu irmão não me deixou trazê-la no barco, mas ela arranjou outro barco e veio à frente. Era a Érica, mas os meus irmãos não a aceitavam porque ela era mais velha do que eu e era gordinha. Mas veio à minha frente, levou o barco para Inglaterra e depois veio ter comigo ao Algarve. Ainda aluguei um quarto em Almancil, mas não funcionou. 

Mas o que aconteceu no Peter?

Começo a entusiasmar-me, a beber gins e mais gins, a gritar, a cantar, e fecho o bar. Paguei os copos ao pessoal todo. Foram-se os 1500 dólares todos à viola. 

E o que diz aí, no Peter?

Foi um momento único na minha vida e disse: “Quem está dentro não sai e quem está fora não entra, o bar é meu”. Rebentei com a grana toda – mas rebentei duas ou três vezes na minha vida com a grana toda. 

Outro episódio que nos contaram foi uma festa que deu no Brasil.

Isso ainda estava no Rio Palace. O meu irmão Gigi ia lá todos os anos e, num desses anos, leva um amigo que é o Zé Maria, e foi na altura da explosão do pagode. E ele pergunta porque é que não fazíamos uma festa lá em casa. Fui falar com os meus amigos cozinheiros e disse que tínhamos de arranjar um pagode para o meu irmão que vinha de Portugal e que trazia um amigo. Mas um pagode com uma máquina de cerveja, com amendoins, salgadinhos e músicos. Era tudo gente do morro, era tudo gente do samba, era tudo da mesma família. Só que calculámos mal, o apartamento era pequeno e com aquele festival todo, os cozinheiros, músicos e os convites que fizemos, não cabíamos todos lá em cima. Então ficou tudo na rua. Era pagode lá em cima, era cá em baixo, era tudo a subir e a descer. 

Os convidados não podiam entrar…

Eram mais músicos do que convidados. E os meus irmãos estavam todos indignados com isso, “Porra, como é que podes pôr tanta gente cá em casa”, e chamaram-me maluco. Mas eles eram meus amigos. Ainda lhes disse que eles estavam a ajudar-me, e eles a discutirem comigo. Nessa altura, foi mais um salário todo num dia. 

E mais episódios onde tenha gastado dinheiro loucamente?

Sempre vivi a vida de forma divertida. Quando tenho dinheiro, saio, nunca consegui juntar dinheiro. Ou invisto ou gasto, mas gasto em prazeres com as pessoas, comigo. Mas em coisas simples, não são extravagantes. Não gasto a dever, gasto aquilo que tenho e sou feliz assim. 

Na Comporta lidou com muitas pessoas. Quem ia ao seu restaurante?

O Louboutin. Ele é que me salvou a vida, comprou-me as duas casas e eu rescindi o contrato para me vir embora. Mas iam lá muitas personagens. Quando foi a OPA da PT foi lá o Carlos Slim, não sabia quem era, mas disseram-me que era o homem mais rico do mundo. Na Comporta consegui conciliar vários tipos de pessoas no mesmo espaço. 

Quando sai da Comporta volta a Lisboa.

Mas antes disso fui trabalhar para uma montanha. Fui fazer uma viagem a Itália, comprei uma autocaravana. 

Como é que se especializou em alta-cozinha e depois serve outro tipo de cozinha?

Porque não queria ser o Michel. Então adaptei a cozinha. Isso foi talvez um pouco forçado pelo meu irmão Gigi, que não queria as coisas afrancesadas e gostava mais da tradição, e fez-me pensar no meu próprio projeto. Ou seja, tirar a essência básica da cozinha francesa, que são os caldos, mas basicamente é para ser o Miguel, adaptei uma coisa boa para não ser o Michel. 

Entretanto fica muito místico e começa a fazer viagens ao Japão…

Acho que sempre tive uma certa espiritualidade. E essa espiritualidade vem desde pequeno, porque fui sacristão durante muitos anos. Estive ligado às irmãs no colégio Ninho de Crianças; depois, na aldeia da Ponte, no verão, ajudava à missa, algumas em latim.

Percebe alguma coisa de latim? 

Não percebo nada.

Decorava?

Decorava as coisas. Em relação à parte espiritual, nasci na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, gosto muito da Nossa Senhora de Fátima. Acho que tem de existir uma relação mística com os santos e com a vida em si. Tive uma perda quando era pequeno e, mesmo assim, sou uma pessoa alegre, extrovertida e sempre lutadora e com objetivos. Acho que isso se deve um pouco à espiritualidade e pratico uma arte desde 1993. Fiz um curso de mahikari, uma arte japonesa. 

Onde fez o curso?

No Porto. Depois fiz o curso intermédio no Luxemburgo e também o curso superior, e assisti no Japão. Isto é uma arte de união de todas as raças e de todas as religiões. Deus é um só. O único dever e consciência que devemos ter é, uma vez por mês, fazer uma cerimónia de agradecimento a Deus por todo o trabalho feito nesse mês e para o próximo mês. A única obrigação é termos um objeto sagrado que temos e devemos respeitar, não se pode molhar, e levantar a mão para transmitir a energia para purificar os ambientes, os alimentos, o que quer que seja. A maneira de estar na vida percebe-se melhor, pelo menos, para mim. Então o que aconteceu? Continuava com todas as minhas loucuras e brincadeiras, só que praticava um pouco essa arte. Há cinco anos, e depois de fazer o curso superior, decidi que ia entregar um pouco mais do meu tempo, pelo menos 1h a 1h30 por dia, a essa prática e para ajudar os outros. Até porque o mundo também mudou, evoluiu de uma forma mais rápida, mais conturbada, com esta coisa dos plásticos e da salvação do mundo – então, o meu corpo deixou de ter umas necessidades e uma vontade que tinha de sair à noite, de estar noutros ambientes, para me dedicar a isso. Fazem uma grande diferença, estes últimos quatro anos. Não pratico por obrigação, mas por devoção a essa prática. Todas as manhãs dedico 1h de transmissão de energia para outros e a receber essa energia. 

Como é que isso se reflete?

No meu pensamento, na harmonia, no ambiente, na minha maneira de encarar as coisas. Era explosivo, não percebia muito as pessoas. Eu sou ariano, Tigre e com ascendente de Leão, a minha astrologia é muito forte. É muito difícil, às vezes. É uma fera que não se pode encostar muito à parede. A partir daí, disse que tinha de mudar a minha vida. E mudei dessa maneira: com o barco, com coisas mais saudáveis e mais naturais.

De há quatro anos para cá?

De há quatro anos intensivos para cá.

Foi um bon vivant. Como é que deixa de beber de um momento para o outro?

Fui e continuo a ser. O corpo rejeitou. 

Bebia quanto? Duas cervejas por dia?

Duas? (risos) Duas de cada vez. Não tenho noção das coisas que fazia porque sempre levei a vida a trabalhar, uma vida boémia. Mas bebia muito. Chegava a beber dois, três litros de vinho por dia. Ou quatro ou cinco. Mas assim de repente. Depois ainda saía à noite.

E deixou de um momento para o outro?

Sim, o corpo rejeitou. Acho que é natural. 

Vai todos os anos ao Japão…

Quase todos. Já fui oito vezes nestes 25 anos. Confesso que gosto de viajar.

Como é que vocês incutem nos vossos três filhos que não tomem medicamentos? Tomam vacinas?

Sim, vacinas sim. Tomamos também medicamentos, mas só se houver uma necessidade de o fazer. Evitamos. Uma das razões dessa nossa arte mahikari é exatamente deixar de tomar medicamentos, tratar com homeopatia e saber mais ou menos as razões para acontecerem essas coisas. Se houver uma necessidade de tomar um anti-inflamatório ou se tiver uma dor maior… não é que não se possa tomar, mas tem de se saber usar as duas medicinas. 

Como saiu da Comporta?

A Comporta era um projeto que era uma casa de pescadores em 1996, pé na areia, tudo natural. É o começo de desbravar os lugares selvagens. Tanto na Quinta do Lago como na Comporta. Em 2002 vem aquele projeto todo da modernização, das praias, e mudaram o restaurante e os custos. Como mudaram os custos, ficou insustentável ficar na Comporta. Ficámos cinco anos a aumentar uma dívida que era insustentável. Estava a trabalhar para aquecer. 

Aluga uma autocaravana e vai para Itália.

Não alugo, não. Fui para lá com um amigo meu dos gelados – ele tinha uma casa porque a origem da família dele é lá. Ele é meu amigo de infância e, quando soube que eu fechei o restaurante, disse que ia fazer uma viagem para Itália e eu perguntei se podia ir. Fui com ele, fui pesquisar, porque o meu irmão João aconselhou-me sempre a fazer uma época na neve. Fui à procura de trabalho para fazer uma época na neve. Fechei em setembro, fui em outubro e arranjei lá um trabalho num refúgio a três mil metros de altitude, como cozinheiro. Serviu para aprender a cozinha italiana da montanha. Comecei em dezembro, já estava tudo cheio de neve. Dormia no restaurante, em cima, num quartinho.

Longe da família.

Longe da família, já tinha a mulher e três filhos. Sozinho.

Fica lá quanto tempo?

Fico lá um mês e meio porque, ao fim de um mês, eu queria receber e o dono disse que só me pagava no final da época. Disse-lhe que tinha três filhos e uma mulher em Lisboa e que precisava de os alimentar. No final da época, não dava. Ele tinha combinado um salário comigo e não me pagou o que me devia. Foi por isso que decidi vir embora mais cedo e procurei a aventura. Havia uma caravana a caminho da Áustria que era de um italiano de Nápoles. Estava em bom estado, a um bom preço, comprei-a e decidi vir de caravana para Lisboa. Depois vivemos no Algarve, fomos para o antigo Tabuinhas, para o Lake, com o grupo Amorim, que foi o Jorge Armindo que nos deu essa possibilidade de levar o Aqui Há Peixe para o Algarve. Ficámos um ano em Vilamoura, na praia da Falésia. Correu muito bem, o Lake não tinha os resultados positivos na praia da Falésia e, com o Aqui Há Peixe, teve resultados positivos. Mais uma vez, aconteceu o mesmo. Triplicaram-me a renda e tivemos de decidir a nossa vida vindo para Lisboa. Fomos falar com o Pedro Espírito Santo, que é o nosso grande amigo e mentor dos restaurantes e dos projetos de arquitetura e decoração, e começámos a procurar os restaurantes.

Mafalda – Este lugar foi o primeiro que nós vimos. Durante 15 dias vimos vários e eu sempre disse ao Miguel que queria voltar a este porque, apesar de ser horroroso, tinha adorado o lugar, o astral do lugar. Não tinha nada aqui à volta. Só o café Carioca, que era uma tasquinha aqui ao lado, e o café Royal. Adorei a arquitetura, achei que tinha potencial. 

Miguel – Lutámos pelo lugar, comprámos o espaço, só que nos aldrabaram com a sociedade. Tinham o nome sujo no Banco de Portugal e tinham litígios com a senhoria, havia uma ordem de despejo. Soubemos depois de dar o dinheiro. Então ficámos descalços. Fui falar com a senhoria, consegui um contrato novo com ela e depois, com o Banco de Portugal, tive de acertar todas as dívidas dos outros. Não tínhamos dinheiro para as obras e foi através do nosso crédito na praça e da nossa amizade com o Pedro, que fez as obras, e o senhor das obras acreditou em nós, foi assim que as pagámos. Quando abri no dia 5 de agosto tinha 50 euros na carteira e um cartão de crédito com 10 mil euros. 

Como é que se mete nos barcos?

Foi numa viagem a Barcelona com o meu irmão Gigi, que foi visitar um amigo. Ele vai almoçar connosco e depois do almoço perguntou se nós sabíamos como é que ele fugia ao stresse. Depois do almoço vai ao Real Club Náutico de Barcelona e mostra-nos um barco à vela. E aí surgiu-me a ideia de comprar um barco à vela e vim para Lisboa.

Quando?

Há seis anos. 2012, 2013.

Na altura, a história dos barcos para turismo não era muito conhecida em Lisboa…

Não, ainda não. Estava a arrancar, já havia duas ou três empresas com o negócio de marítimo-turística. O nosso primeiro barco foi um barco de regata, muito técnico, e era um barco para a pessoa curtir, não tinha camarotes, não tinha nada. Tivemos o barco dois anos e depois tivemos uma proposta para o vender. Vendi o barco às 9h da manhã e às 15h00 estava desesperado e comprei outro barco. Já tinha cabina, já tinha essas coisas todas. Viajámos muito com o barco, aproveitámo-lo muito. Num verão, em férias com a família – nós somos cinco e um dos filhos levou uma namorada -, o barco tornou-se pequeno para a família. Recebemos uma proposta para vender o barco uma semana antes de irmos de férias, aceitámos e fomos de férias. Quando voltámos a Lisboa comprámos o barco que temos agora. É um pouco maior e o vendedor sugeriu que alugássemos o barco e entrássemos na marítimo-turística. E nós entrámos.

Quantas viagens fazem por dia?

Por dia, não faço muitas. A marítimo-turística para nós é um complemento ao restaurante. É um complemento das horas mortas aqui no restaurante, entre o almoço e o jantar, o pôr-do-sol, as manhãs, o sábado e o domingo. Tenho alguns passeios que me subcontratam.

E festas?

Sim, despedidas de solteiro, aniversários, alguns business também.

É importante aliar o restaurante e o barco?

É muito importante. Aumentei a minha equipa para haver mais disponibilidade de sair com o barco e tem sido bastante positivo. O outro barco era mais pequeno, este é maior, tem mais espaço, mais conforto. Estou bastante satisfeito e os clientes também. 

Caracteriza-se por falar muito alto. Há clientes que se queixam dos seus gritos?

Há quatro anos que falo mais baixo. Ainda assobio, faço as minhas brincadeiras. Há clientes que levam na desportiva e ficam todos contentes, há outros que não gostam tanto, como em tudo na vida. Mas é uma imagem de marca. A minha imagem é muito a voz, o assobio e a gritaria, as gargalhadas.

Tem mais histórias curiosas?

A minha vida é muito cheia. Pinto, gosto muito de pintar.

Mafalda – Eu dei-lhe um cesto no Brasil com tintas e telas e ele, todos os pores-do-sol ia para a praia pintar. Pintou umas 12 ou 15 telas e eu achei engraçado meter aquilo no Adamastor. Chegaram lá dois clientes e compraram os quadros todos. 

Nunca mais pintou?

Mafalda – Nunca mais. Por acaso, lá em casa temos o restaurante do Gigi pintado por ele. É lindo.

Miguel – Pois é, lá no Algarve pintávamos ao final da tarde. Pintávamos os pareos – comprávamos pano cru, trazíamos a tinta do Brasil e lá em baixo, no Gigi, pintávamos durante o trabalho. Fazíamos dinheiro para a viagem e para pagar o nosso casamento. Pagámos o nosso casamento com isso. 

Nos seus restaurantes, os bonecos são uma imagem de marca.

Miguel – Tenho uma coleção de bonecos. A Flor da Várzea tinha uma coleção de bonecos do artista Paulo Lachor, que vive do que faz. Tem muita dificuldade em vender o seu produto. Achei muito fascinante a coleção do meu irmão Gigi e comecei com uma caricatura para mim, foi o meu primeiro boneco. Depois fui comprando devagarinho a coleção dos bonecos. Durante 15 anos, andei a fazer a coleção. E acompanham-nos para todos os restaurantes.

Mafalda – Depois resolvemos fazer três de cada um de nós porque temos três filhos. Quando morrermos, cada um fica com um boneco nosso. Em vez de uma fotografia, fica com um boneco. É giro.