O debate está marcado para esta terça-feira em Lisboa e o programa conta com mais de 100 oradores e temas como o papel das associações de doentes e as desigualdades territoriais no acesso à saúde. Miguel Guimarães, chairman da Convenção Nacional da Saúde, uma plataforma de diálogo entre entidades do setores público, privado e social da saúde lançada no ano passado, admite que já não há expectativas de se conseguir um pacto para a saúde esta legislatura. Mas o objetivo de influenciar as políticas de saúde mantém-se.
Há um ano, um dos objetivos da Convenção era contribuir para um pacto na Saúde, dando resposta aos apelos do Presidente. A quatro meses do final da legislatura, a expectativa de haver um pacto já caiu por terra?
Não sei se caiu por terra, mas penso que no atual contexto político as coisas não correram bem. Neste momento temos uma oportunidade única de tentar, com esta reunião, que os partidos possam, nos seus programas de candidatura às Legislativas, incluir algumas das medidas.
Portanto já não se estão a bater por um pacto mas pela inclusão de medidas nos programas eleitorais?
Neste momento sim. O próprio Governo está quase a entrar em gestão. Já não se vai fazer nada de extraordinário esta legislatura. O nó górdio do sistema é o investimento. Somos dos países em que mais se combateu o desperdício, falta investir.
Em Portugal a despesa pública com a saúde tem ficado abaixo de 5%. Defenderam já que o investimento aumentasse gradualmente para a média da OCDE, que ronda 6,5% do PIB. É essa a meta?
Sim. Em termos de produtividade temos números que nos colocam no topo da Europa, mas para melhorar a qualidade da resposta e do trabalho de quem faz diariamente o SNS temos de aumentar o investimento. A eficácia que conseguimos está a perder-se de ano para ano. Vemos as últimas notícias: faltam 50 especialistas de obstetrícia, faltam 500 anestesistas. Existem médicos suficientes.
O Estado não quer contratar?
Se quisesse abria concursos rapidamente – estão agora a abrir mas não abriram no passado. E sobretudo criavam-se melhores condições de trabalho. É preciso dar um propósito às pessoas, mantê-las motivadas. A atitude que tem havido da parte da tutela sobre médicos e enfermeiros é muito negativa.
O ex-ministro Correia de Campos defendeu que está na altura de regressar a hipótese de trabalho em dedicação exclusiva no SNS. Concorda?
Foi das primeiras propostas que fiz ao prof. Adalberto Campos Fernandes e entretanto também à ministra Marta Temido. Não havia dinheiro. Não é obrigar, mas dar essa possibilidade. Não tenho dúvidas de que seria possível reter muito do talento que estamos a perder.
Disse no final da conferência do ano passado que sem um pacto seria difícil melhorar o SNS e que as políticas de saúde não podem estar presas a lutas entre partidos. A discussão em torno da lei de bases nos últimos meses acabou por ficar muito marcada por essa clivagem entre esquerda e direita.
Ainda por cima naquilo que é menos importante. Percebo a ideologia de base que leva a que um partido esteja contra ou a favor das parcerias público-privadas, mas não entendo que se distingam então PPPs. Em Braga acabou a gestão em PPP mas, que se saiba, o Estado não vai comprar o hospital, vai continuar a alugar o hospital a uma entidade privada. Não me parece que este fosse o tema mais importante da lei de bases.
A discussão em torno das PPP devia ser adiada para a próxima legislatura, como defende o BE, aprovando-se já as restantes bases?
A questão neste momento é que ninguém sabe qual é a lei de bases da saúde que se quer aprovar, não tem estado a ser discutida com transparência. Os partidos à esquerda dizem que já só têm a separá-los as PPP, mas se me perguntar qual é o projeto que não sei qual é, ninguém sabe. Tornou-se uma discussão fechada no Parlamento. A Ordem dos Médicos, tal como a Convenção, foi convocada para se pronunciar. Os deputados deram-nos cinco minutos.
O processo devia ser adiado para a próxima legislatura?
Eu defendo que sim e sobretudo devia ser um processo mais participado. Fazer tudo mais ou menos às escondidas não é uma boa solução. A minha preocupação não é que existam ou não PPP na saúde, mas que o SNS tenha consagrado numa lei de bases o seu reforço efetivo.
Como?
Com patamares mínimos de financiamento em média com os países da OCDE e da União Europeia; que preveja orçamentos plurianuais, no fundo que se garanta a sua sustentação. “Salvar o SNS”, é isso que temos de garantir como disseram António Arnaut e João Semedo.
Apontavam um caminho que passava pela internalização da resposta no setor público. A Convenção tem defendido a complementaridade entre setores.
Uma coisa não impede outra. O SNS deve garantir o máximo de resposta possível, mas nunca vai conseguir dar resposta a todos os portugueses, vão existir sempre limitações orçamentais. Mesmo que tivéssemos um investimento dentro da média da OCDE, ou da UE, que é 7,8% do PIB de despesa pública em saúde, iríamos sempre precisar do setor privado, seja em áreas em que o Estado não adquire equipamentos porque são caros, porque são novos e não quer investir logo ou porque não tem camas suficientes ou não quer ter listas de espera. Se amanhã um ministro dissesse que não quer ter tempo de espera para doentes oncológicos, podia recorrer ao privado. É aí que entra a complementaridade. E reconhecer que existem os três setores implica também haver mais regulação, desde logo sobre os seguros de saúde.
Disse no ano passado que os seguros estão em roda livre.
Ninguém tem mão sobre os seguros. Numa reunião recente que tivemos com a senhora ministra disse-lhe que tínhamos de pensar na qualidade da medicina no setor privado. Começou por dizer que não era com ela. Não é? Quero que os portugueses tenham tratamentos de qualidade sejam tratados no setor público ou no privado. Tudo isto precisa de ser regulado. Quando o SNS não tem capacidade de resposta, existirão os outros setores, mas temos de lutar pelo SNS com maior capacidade de resposta e é isso que pretende a Convenção. E quando dizemos que o SNS precisa de mais dinheiro, é para não ter de estar sempre a recorrer fora.
O Ministério da Saúde anunciou um investimento de 91 milhões de euros em 10 hospitais até 2021. A este ritmo é possível substituir equipamentos obsoletos?
O ministério vai tentando resolver os problemas quando são públicos e as pessoas já perceberam isso. É preciso um fio condutor, uma estratégia, só se percebe uma gestão assim se o fio condutor for afundar o SNS. Há uma acumulação de necessidades. No período da troika houve um grande desinvestimento e não recuperámos. Se na altura tinha TACs novos, chegam aos dez anos ou mais, não oferecem segurança, avariam, contribuem para aumentar a desmotivação. Noventa milhões é muito bom, mas é uma gota no meio do oceano. Já foi dito que só para renovar equipamentos calcula-se que sejam necessários 1200 ME. Quando se investe em saúde 4,8% do PIB, não há muito volta a dar. Todos os partidos dizem o mesmo, mas quando chega a altura de votar o Orçamento do Estado aprovam aquilo que o Governo apresenta. É preciso investir mais e tratar melhor as pessoas, dar-lhes um propósito, um sistema em que acreditem.
Reviu-se no discurso de João Miguel Tavares no 10 de junho, com essa mensagem?
Sim, veio dizer de forma simples aquilo que vai na alma das pessoas. É um sentimento comum em vários setores e não é irrelevante: se fosse tudo só dinheiro, as pessoas saíam do país. Tem de haver investimento e um sinal positivo, que no caso da saúde tem de partir do ministério.
A conferência desta terça-feira tem como tema “A Agenda da Saúde para o Cidadão”. Qual é a novidade?
É inédita na medida em que os protagonistas vão ser os doentes. Achamos convictamente que o facto de as associações de doentes serem envolvidas levará a um sistema de saúde mais justo, diminuem influências, as próprias ordens às vezes são acusadas de algum corporativismo. Vão ser debatidos temas como cuidados de proximidade ou o acesso à saúde de forma equitativa em todo o território.
Na reunião do ano passado alertou para uma grande desigualdade entre a saúde nos grandes centros urbanos e nas regiões mais periféricas.
E agravou-se do ano passado para este. Vemo-lo em listas de espera para consulta e cirurgia, no encerramento temporário de serviços. O que aconteceu em Beja [a urgência de obstetrícia já esteve encerrada cinco vezes este ano por falta de profissionais] está a acontecer hoje em Vale do Sousa, um hospital que serve 600 mil pessoas. Todos os dias há serviços que estão na iminência de não ter gente para fazer urgências e vão-nas fazendo com mais sacrifício e mais horas extraordinárias. As pessoas estão cansadas: não podem estar permanentemente a fazer turnos em cima de turnos. E onde é que isto é mais grave? Não é em Lisboa e no Porto, é no Algarve, no Alentejo, no interior norte. A desigualdade no território aumenta as desigualdades sociais em saúde. Quem tem dinheiro até vai ao privado, quem não tem fica à espera. Queremos ouvir as propostas de doentes. Uma das propostas foi, enquanto não há médicos de família para todos os portugueses, por que não ser contratado esse serviço no privado? Queremos lançar ideias para o debate e esperamos ter este ano ainda um novo projeto depois desta conferência.
A Convenção foi vista como um movimento à direita. Revê-se nessa classificação?
Não julgo que essas críticas sejam justas. O dr. Eurico Castro Alves é o presidente da comissão organizadora. É mais à direita, se quiser. O alto comissário da Convenção é o dr. Manuel Pizarro, um homem à esquerda. Eu não sou à esquerda nem à direita, nunca estive inscrito em nenhum partido e já votei em partidos diferentes. Temos 180 instituições associadas, 70 associações de doentes, ordens profissionais, misericórdias, bombeiros. Não é tudo direita, se não o país estava à direita. As pessoas unem-se em torno de objetivos e preocupações.