O Governo apresentou à Assembleia da República a proposta de lei 205/xiii que altera o regime do acesso ao direito e aos tribunais. Essa proposta constitui um ataque claro à advocacia e principalmente aos muitos advogados que hoje trabalham na área do Sistema de Acesso ao Direito (SADT), que são cerca de um terço dos advogados com a inscrição activa. Estes profissionais estão desde 2004 sem obter qualquer actualização das suas remunerações, nem sequer acompanhando o crescimento do salário mínimo, que tem sido sucessivamente incrementado nos últimos anos – isto, apesar de a lei 40/2018, de 8 de Agosto, ter vindo a consagrar o princípio da actualização anual dessa remuneração, obrigando o Governo a publicar até 31 de Dezembro de cada ano uma portaria a actualizar essa remuneração.
O Governo, porém, não só não publicou a respectiva portaria até 31 de Dezembro do ano passado, como a lei impunha, como agora propõe uma alteração ao regime legal que o dispensa de proceder a essa actualização anual. Efectivamente, o art.o 3.o, n.o 5, da proposta de lei passa a prever apenas que a remuneração dos profissionais inscritos no sistema é fixada por portaria dos ministros das Finanças e da Justiça, depois de ouvidas as associações representativas dos profissionais forenses inscritos no sistema. O Governo remove assim, por esta via, o princípio da actualização anual da remuneração dos advogados inscritos no SADT, passando agora a alteração da remuneração a fazer-se quando o Governo quiser, após uma audição não apenas da Ordem dos Advogados, mas também da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução – isto quando, presentemente, não há qualquer solicitador inscrito no SADT.
Todo este regime está, aliás, criado para menorizar a Ordem dos Advogados, que tem tido até agora o exclusivo das nomeações para o SADT e assegurava adequadamente o funcionamento deste sistema.
Em primeiro lugar, a Ordem dos Advogados passa a ser obrigada a ouvir o Centro de Estudos Judiciários sobre os seus planos anuais de formação na área do acesso ao direito (art. 3.o, n.o 3 da proposta), atribuindo-se assim um direito de audição de um órgão destinado a formar magistrados em relação a planos de formação de advogados, o que representa uma óbvia desconsideração e uma desconfiança assumida sobre a capacidade da Ordem dos Advogados para efectuar essa formação.
Além disso, é criado um observatório para controlo de qualidade e supervisão contínua do sistema de acesso ao direito, composto por três representantes designados pelo ministro da Justiça, dois representantes designados pela Ordem dos Advogados, um representante designado pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, um representante designado pela Ordem dos Notários e um representante designado pelo ministro que tutela a Segurança Social (art. 58.o, n.os 1 e 2 da proposta). Não só a Ordem dos Advogados é assim menorizada neste observatório como os profissionais que prestam serviço nesta área ficam responsáveis por prestar informações ao referido observatório (art.o 58.o, n.o 5), o que põe claramente em causa as funções de regulação dos advogados que devem caber exclusivamente à Ordem dos Advogados.
O bastonário da Ordem dos Advogados deu ontem uma entrevista extensa a este jornal. Seria interessante que tivesse respondido sobre estas questões, que afligem uma grande parte dos advogados que representa, até porque se gabou de “influenciar o poder no sentido daquilo que são as preocupações dos advogados”. Se, com essa influência, assistimos a este estado de coisas na advocacia, cabe perguntar como estaríamos sem ela. Mas, segundo as suas próprias afirmações, o que fez “na Ordem dos Advogados é um pouco como as canalizações públicas”, um “trabalho imenso que não se vê”. O que se tem visto é que as suas canalizações andam a verter água por todos os lados e, infelizmente, a ordem e os advogados estão a ser os principais prejudicados por esta situação.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990