Quantas coleções Berardo são necessárias para pagar o mau urbanismo?


É necessário que a opinião pública não se deixe seduzir por hipnóticas promessas de desenvolvimento, beleza ou progresso e aprenda a questionar de forma crítica as propostas urbanísticas que lhe são apresentadas.


Todos os dias, pessoas mais ou menos influentes tentam recorrer a mecanismos de influenciação para obter benefícios indevidos de instituições públicas e privadas. A este respeito, o facilitismo e a promiscuidade com que determinadas personalidades obtiveram créditos de reputadas instituições bancárias têm causado na opinião pública uma clara sensação de indignação e repúdio; especialmente, porque estes créditos foram concedidos sem que estivessem asseguradas as duas garantias necessárias para que pudessem ser devidamente cobrados: taxa de esforço e colateral (ou seja, capacidade de gerar rendimentos para saldar a dívida e bens que pudessem ser confiscados caso a mesma não fosse paga).

Tal como o setor bancário, também o urbanismo é um alvo apetecível para quem pretende extrair benefícios das atitudes pouco escrupulosas de quem deveria zelar pelo interesse público e não o faz. Seja por ignorância, receio, passividade, oportunismo ou até mesmo convicção, técnicos, dirigentes e políticos não raras vezes legitimam crimes urbanísticos com os seus pareceres e decisões. Curiosamente, todos eles se recusam a aceitar a gravidade das suas decisões – e raramente a justiça consegue provar que cometeram dolo em matérias do foro urbanístico. Neste mundo hermético, o urbanismo português desenvolveu ainda um mecanismo caricato de desresponsabilização: a dissonância cognitiva – ou seja, projetos de arquitetura e planos urbanísticos são apresentados como boas intenções teóricas ainda que, quando colocados em prática, o resultado seja quase sempre o oposto.

Um dos mais recentes casos dessa dissonância cognitiva chama-se “Cidade da Água”, um plano de urbanização localizado nos terrenos da Margueira, em Almada, e que se apresenta como o maior empreendimento imobiliário depois da Expo. Dos muitos exemplos em que essa dissonância está presente neste plano refiram-se apenas dois: 1) Em teoria, promove-se um empreendimento beneficiando de amenidades junto ao rio; na prática, as recomendações internacionais (recentemente corroboradas pelo documento O Ordenamento do Território na Resposta às Alterações Climáticas: Contributo para os PDM, produzido pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo) aconselham a diminuição da densidade construtiva junto às zonas ribeirinhas (devido à incidência acrescida do risco de cheias e inundações) – uma advertência que não parece aqui gerar muitas preocupações. 2) Em teoria, promove-se a dinamização do centro de Almada; na prática, a densidade habitacional do empreendimento dificultará a circulação urbana e intensificará as deslocações pendulares com Lisboa, sobrecarregando ainda mais as infraestruturas existentes: a Ponte 25 de Abril vai ficar mais congestionada e o comboio que a atravessa, já extremamente lotado (a ponto de estar prevista a diminuição em 20% dos lugares sentados), acentuará a degradação do seu serviço.

Desconhecemos quantas coleções de arte Berardo são necessárias para pagar os custos que planos deste tipo podem causar ao erário público e à degradação da qualidade de vida das populações, mas sabemos que, para combater a dissonância cognitiva que os legitima, é necessário que a opinião pública não se deixe seduzir por hipnóticas promessas de desenvolvimento, beleza ou progresso e aprenda a questionar de forma crítica as propostas urbanísticas que lhe são apresentadas.

Quantas vezes terá a cidade de Troia de ser saqueada para que se perceba que o Cavalo de Madeira só consegue entrar lá dentro graças ao deslumbramento e complacência dos seus ocupantes?

 

Mestre em Ordenamento do Território e Planeamento Ambiental

Escreve quinzenalmente