Histórias de quem lida de perto com a pobreza

Histórias de quem lida de perto com a pobreza


Escolas, supermercados e hospitais: a pobreza é uma realidade todos os dias e em vários locais. O i conta-lhe alguns testemunhos de quem tenta ajudar pessoas nesta situação.


“Um dia, uma senhora que já é cliente habitual e que nós sabemos que não tem muitas possibilidades não tinha dinheiro suficiente para comprar batatas e feijão-verde. Faltava-lhe um euro”. O testemunho é dado ao i por Diana (nome fictício), funcionária de um supermercado Lidl na zona da Amadora. Garante-nos que não é caso único e que, quando não são valores muito altos, os funcionários costumam “fechar os olhos”. 

Mas, por vezes, a pobreza chega a níveis extremos: o roubo. “Quando apanhamos alguém a roubar, mesmo sabendo que é uma pessoa carenciada, aí não podemos fechar os olhos. Nesses casos não chamamos a polícia, mas não podemos deixar os clientes saírem do supermercado com as compras”, diz. “Sabemos que o desespero leva muitas vezes a situações extremas. Mas um roubo é um roubo”.

Esta trabalhadora garante que a cadeia para a qual trabalha – e há já várias a nível nacional que funcionam desta forma – coloca produtos para quebra ao final do dia, dando a possibilidade aos mais necessitados de irem buscar a comida. “Além deste gesto de boa vontade, o Lidl contribui com vários alimentos para a Refood, um movimento que ajuda os mais necessitados”, conta-nos.

Pobreza é realidade nas escolas

Nas escolas públicas, a pobreza é ainda uma realidade nos dias de hoje. Quem o garante é Joana Pedrosa, uma professora que já deu aulas em várias escolas de Lisboa. “Já convivi e continuo a conviver com casos de pobreza nas escolas públicas portuguesas. É uma realidade por vezes encapuzada, mas eminente e sem solução, no meu ver, à vista”, disse ao i. E conta-nos que há alunos cujo único par de sapatos que têm em casa “são uns chinelos”.

Mas as situações mais graves estão relacionadas com as refeições na escola. “No campo da alimentação, posso referir que existem alunos que têm como única refeição quente aquela que é fornecida pela cantina escolar. Além disso, recebem também o reforço alimentar a meio da manhã e a meio da tarde”. Há ainda situações de “falta de cuidados de saúde evidenciada, principalmente, pela dificuldade de acesso a consultas de rotina na especialidade de estomatologia ou medicina dentária”, diz Joana Pedrosa. “Em termos escolares, a falta de material é por demais evidente e constante”, conta a professora.

Ainda segundo a docente, as escolas estão sob tutela do Ministério da Educação e, portanto, dependentes do Orçamento do Estado para cada ano letivo, mas tentam sempre arranjar forma de ajudar os alunos mais necessitados. “Há escolas que conseguem estabelecer, dentro da comunidade em que se inserem, parcerias ou protocolos que lhes permitam alargar o auxílio a famílias mais carenciadas com filhos em idade escolar. Não é fácil identificar as situações mais flagrantes, pois muitas vezes elas são escondidas ou por vergonha ou por falta de conhecimento do auxílio prestado nestas situações”, explica ao i. 

A professora avança ainda que o Ministério da Educação ajuda as famílias mais carenciadas com o Serviço de Ação Social Escolar (SASE). “É importante salientar que os apoios prestados estão associados à alimentação, livros e material escolar, tecnologias de apoio e transporte”.

A opinião é partilhada por Carlos Sousa Dias, subdiretor do Agrupamento de Escolas Amadora Oeste e que trabalha na Escola Secundária Seomara da Costa Primo. “Infelizmente, continuam a ser muitas as famílias e os alunos que recorrem à escola para pedir ajuda, dando a conhecer a situação de vulnerabilidade e de exclusão social em que vivem”, contou-nos o professor, com base em informações disponibilizadas pelo Gabinete de Apoio ao Aluno e à Família (GAAF).

Para “manter a relação de confiança e proximidade com os alunos e as famílias” que confidenciam à escola situações frágeis, não foi possível a Carlos Sousa Dias contar-nos algum caso específico. Mas garante que “de forma genérica, é muito comum os encarregados de educação pedirem a ajuda da escola para que possam ser garantidas as refeições diárias dos seus educandos na escola, uma vez que os seus orçamentos familiares não permitem assumir esta despesa”.

Para suportar estas situações e ajudar os alunos e os pais da melhor forma, a escola conta com os serviços técnico--pedagógicos do agrupamento, o GAAF, que se dedica diariamente ao acompanhamento dos alunos e famílias. “Procura respostas adequadas às situações/problemas, intervém e encaminha. Cria e desenvolve diversas atividades de valorização pedagógica e acolhe alunos em situação de risco/perigo”, esclarece.

Hospital como porto de abrigo

Isabel (nome fictício) trabalha há dez anos na maternidade de um hospital da Grande Lisboa e já assistiu a situações muito complicadas. Costumam ser encaminhadas e analisadas pelas assistentes sociais do hospital, mas as enfermeiras tentam dar todo o apoio.

“Quando percebemos que o bebé não tem enxoval, que a mãe está um pouco chorosa ou alheia ao que se passa à sua volta, reportamos o que se está a passar. Por norma, a assistente social arranja sempre um saco com roupa ou alguma coisa”, explicou ao i.

Segundo Isabel, existe pelo menos um caso “de mês a mês” em que a mãe fica retida no hospital. “Só têm alta quando o caso estiver orientado. Temos bebés que ficam na maternidade um ou dois meses porque, muitas vezes, não têm para onde ir. Só depois de a assistente social se coordenar com a comissão de proteção de menores, de todo o processo ter sido analisado – se as outras crianças da família vão à escola, se estão institucionalizadas – e de estarem garantidas as condições de segurança, os bebés vão para casa ou para uma instituição”, explica a enfermeira.

“Um caso que me chocou há pouco tempo foi o de uma mãe que pariu de madrugada no hospital e ao final do dia quis ir para casa porque tinha de ir trabalhar para pagar a renda. Ela dizia que ou ia trabalhar ou ficava sem casa. Acabou mesmo por ir e o bebé ficou no hospital”, recorda Isabel.

Nídia Zózimo, médica no Hospital de Santa Maria, revelou que existem doentes que já se deslocaram mais de 700 vezes àquele hospital de Lisboa. A razão oficial era para procurarem ajuda profissional, mas é provável que queiram apenas um lugar para descansar.

“Temos doentes que já vieram ao hospital mais de 700 vezes e não são da área [de Lisboa]. Provavelmente, no dia em que não vêm aqui, vão a outro lado. Nunca ficam internados, vêm na realidade queixar-se de qualquer coisa para poderem passar a noite e comer algo. Destes, alguns nunca foram internados. Vêm porque sabem que aqui têm onde dormir e que podem sempre comer umas bolachas ou qualquer coisa”, disse ao i.

A médica refere também os casos de reinternamentos que ocorrem por falta de medicação ou ajuda por parte de familiares ou instituições: “Temos muito doentes que têm alta e, passados dois ou três dias, estão aqui outra vez porque não cumpriram a medicação. Isso acontece porque não têm apoio em casa ou porque não tiveram dinheiro para comprar medicação. Situações destas são muito frequentes”.