No Primeiro Livro dos Reis, Antigo Testamento, o sábio rei Salomão é chamado a julgar quem é a verdadeira mãe de uma criança que duas mulheres reclamam como sua. Não dispondo dos atuais testes de ADN, Salomão opta pela solução mais eficaz e aquela que revelará sem sombra de dúvidas o instinto maternal: manda cortar a criança ao meio e distribuir as metades pelas duas peticionárias. Obviamente, a verdadeira mãe revela-se quando abdica da sua petição e roga ao rei pela sobrevivência do filho, mesmo que isso implique atribuir a tutela da criança à mãe falsa. A história de Salomão é exemplar porque nos revela que podemos saber a verdade por dedução comportamental (uma verdadeira mãe jamais permitiria a morte de um filho com o intuito de vencer uma querela). Também da mesma forma podemos ser bons juízes da estética arquitetónica aplicando o mesmo princípio salomónico: descobrir o valor de um edifício implica colocar como hipótese a sua destruição imaginada (abstendo-nos de considerar, obviamente, perdas humanas e materiais) e avaliar o sentimento de dor ou perda decorrente dessa ação. Como se viu recentemente com o incêndio na Catedral de Notre-Dame de Paris, quando confrontadas com a perda de algo que genuinamente estimavam, as pessoas exigiram a sua reconstrução integral em detrimento de substitutos modernos ou melhorados (propostos por alguns arquitetos delirantes).
Da mesma maneira que a verdadeira mãe da história de Salomão não quereria um filho substituto ou melhorado, também os cidadãos de Paris apenas querem o que sempre tiveram e amaram. Não existe mérito ou valor intrínseco no conceito de “contemporaneidade”, como alguns querem fazer crer; como tal, não há porque considerar como evidente (ou desejável) que uma intervenção vanguardista em Notre-Dame possa trazer um valor acrescido. Veja-se o caso da destruição das Torres Gémeas em Nova Iorque: o que hoje ainda se chora são as mais de duas mil pessoas que pereceram na catástrofe. Pela perda da arquitetura banal, desinteressante e monótona das torres, ninguém de bom gosto verteu uma lágrima – ou sequer exigiu que se procedesse à sua reconstrução integral. Só a arquitetura verdadeiramente bela e genuína permanece connosco mesmo depois de “morta”. É este o caso das ruínas de Palmira, do Fórum Romano, da Acrópole, de Pompeia e, no caso português, de Conímbriga, do Convento do Carmo ou de edifícios tão resilientes como a Igreja de São Domingos – a qual, mesmo com o interior consumido por um fogo em 1959, conserva maior beleza do que a maior parte dos edifícios-caixote que povoam as nossas cidades e subúrbios. Se, julgada de forma individual, a estética arquitetónica pode ser vista como um conjunto de considerações subjetivas, julgada de forma coletiva, ela existe enquanto quadro de valores objetivos: à primeira podemos chamar opinião, à segunda chamamos cultura. A cidade atual, feita de objetos desoladores concebidos em ateliês de arquitetos premiados e seus aduladores, é cada vez mais uma mescla desconchavada a que podemos chamar cidade de opiniões; para que reconquistemos algum semblante de beleza e coesão, próprio de uma “cidade de cultura”, é necessário redescobrir e aplicar a sabedoria salomónica: os edifícios que se possam erradicar sem qualquer sentimento maternal de perda são aqueles que nunca fizeram ou farão qualquer falta; não se enraízam na História, desprezam o seu contexto e, como tal, nenhum cidadão digno de uma cultura deverá lamentar o seu fim.
Mestre em Ordenamento
do Território e Planeamento Ambiental
Escreve quinzenalmente