Manuel Vilas. O grande bastardo espanhol

Manuel Vilas. O grande bastardo espanhol


Romance aclamado pela imprensa, Em Tudo Havia Beleza (Ordesa), de Manuel Vilas, oferece-nos um longo lamento em que a história pessoal se cruza com a história política e social de Espanha.


Editado em Espanha em finais de 2018 e, em Portugal, em fevereiro deste ano, Em tudo havia beleza (Ordesa), de Manuel Vilas e com tradução de Vasco Gato, foi rapidamente considerado como um dos livros do ano e incensando pela crítica do país vizinho – por cá, a receção foi equivalente, apesar de ter ocorrido uma clivagem entre entrevistas e notícias de um lado e, do outro, o trabalho crítico escasso.

Mesmo que o unanimismo tenha sido quebrado por Javier Marías, que, num âmbito mais geral, veio criticar essa tendência recente da literatura em transformar a pequena tragédia pessoal em matéria literária, isso não impediu que Ordesa, título original espanhol, fosse encarado como uma catarse pessoal – a referência à tragédia clássica é, como facilmente se percebe, totalmente despropositada – ou como um romance de abrangência sociológica, ao mostrar uma Espanha que teima em não desaparecer, uma Espanha onde a miséria e a pobreza são a condição que engole o futuro e o passado – a ausência de esperança parece ser a condição desta pobreza.

E, de facto, neste longo lamento, neste monumento fúnebre aos pais que se estende por quase 400 páginas, onde a história pessoal – os problemas com o álcool, o divórcio, etc., –  se entrecruza com a história familiar e, à distância, com a história de Espanha, há tanto de elegia, de oração fúnebre pela morte dos pais, como de apontamento sociológico que se dissemina um pouco por todo o texto, conferindo-lhe esse tom de retrato de uma determinada Espanha.

“Na realidade, tudo isto tem a ver com a pobreza. Era a pobreza – como éramos pobres – que me fazia tremer de medo. E deu-me para chamar ternura ao medo. Se os meus pais tivessem tido dinheiro, tudo me teria corrido melhor. Mas não tinham nada, absolutamente nada. A confissão da pobreza em Espanha parece uma imoralidade, algo repudiável, uma afronta. E, no entanto, é o que quase todos fomos”.

Este elemento sociológico, no entanto, é no mínimo ambíguo. É certo que ele se encontra presente, que podemos reduzir Ordesa a um trabalho de luto interminável conjugado com um retrato de um passado espanhol que, por cá, foi igualmente uma realidade bastante forte – e ainda o é, se sairmos para os subúrbios das cidades ou para o interior, onde a catástrofe sempre foi declarada permanente e onde a história é desde há muito uma sucessão de pesadelos. Mas Ordesa consegue escapar a este realismo manco, que parece mediado pela televisão, consegue escapar a uma espécie de miserabilismo mais pessoal que social (dado que o sujeito nunca é coletivo) que se instalou na forma decadente do romance a que se chama ficção. 

De facto, para lá de qualquer pequena tragédia pessoal, para lá de qualquer tendência em espelhar dramas mais ou menos atuais, Ordesa remete para uma tradição bastante determinada – que não aquela da autobiografia. E esta encontra no pequeno livro de Genet sobre o artista plástico Alberto Giacometti um dos seus momentos maiores, onde o “santo”, no epíteto que lhe dá Jean Paul Sartre, recusa à obra de arte qualquer relação ao futuro ou ao presente.

“Nunca, nunca, a obra de arte se destina às novas gerações. Ela é oferenda ao inúmero povo dos mortos. Que a acolhem. Ou rejeitam. Mas os mortos de que falo nem vivos foram. Ou então esqueci-os. Porque foram-no suficiente para que os esqueçam, já que a vida teve como fim levá-los a cruzar esta tranquila margem de onde aguardam – ido daqui – um sinal reconhecível.”

Não há, de facto, momento algum em que este “inúmero povo dos mortos” não se faça sentir nestas quase 400 páginas cheias de fantasmas que teimam em não desaparecer, mesmo que muitas vezes estes se concentrem na figura do pai e da mãe, que surgem como a metonímia para esta muralha de esquecimento para a qual se escreve – e, tantas e tantas vezes, a partir da qual se escreve.  

“Eu sabia o significado que o carro tinha para ele. Era um pouco de raízes materiais no mundo, uma propriedade. A alma do meu pai vinha de muito longe no tempo, da velha noite planetária, alma de homens sem raízes – homens vivos ou mortos, ia dar ao mesmo -, era daí que vinha a alma do meu pai; almas que não se enraizavam, que eram de uma beleza extrema e de uma volatilidade extrema”

É interessante notar, de facto, como a escrita, em Ordesa, contraria um dos preceitos de grande parte da literatura contemporânea, que, tendo como alvo a ficção do leitor médio, só pode produzir uma universalidade de aeroporto, vazia e de plástico. Pelo contrário, esta tradição bastarda, de que não há memória, estes filhos renegados do progresso e da história que, da política, só conhecem a revolta, o desastre e o colapso, coloca uma grande dose de atrito na engrenagem desse leitor que, de Singapura a Paris, a ficção gosta de criar. E nem a morte parece escapar a esta fúria dos bastardos:

“O envelhecimento é o nosso futuro. Disfarçamo-lo com palavras como «dignidade», «serenidade», «honestidade», «sabedoria», mas qualquer idoso renunciaria a tais palavras desde que lhe tirássemos cinco anos de cima, ou até cinco meses. (…) As pessoas morrem sempre, todos acabamos por morrer. Todos os fracassados da terra, todos os pobres e todos os analfabetos cobram assim a sua vingança sobre os que acumularam êxitos, poder, conhecimento, cultura e sabedoria”. 

Escrever para os danados da terra, este “inúmero povo dos mortos” que nunca foram vivos, é também afirmar que estes bastardos são aqueles que morrem mais porque são aqueles em que a morte os devolve à “velha noite planetária” ao qual sempre pertenceram – numa das passagens mais interessantes: “provém da noite avarenta de pão e carne do campesinato ibérico, da noite dos loucos e dos atrasados mentais, e nos seus genes há apenas terror e angústia e erro.” E se a morte é a sua vingança, o seu riso, tal como o lixo é a sua forma particular de luxo, a sua exuberância – “gostava de atirar os copinhos de plástico barato para um cesto de papéis gigantesco. Gostava de contaminar o mundo com lixo, é o luxo dos pobres.” – é porque são, na verdade, lixo e esquecimento, supranumerários de qualquer história.

 Um dos momentos mais interessantes é quando comparece Iván Maráez, o Couve-Flor. São poucas páginas, logo ao início, em longos traços e naquele discurso que interpela os mortos (que se oferece a eles) que preenche grande parte do livro. Couve-Flor, “o grande bastardo espanhol de todos os tempos”, aluno de Manuel Vilas – ficção ou realidade interessa pouco -, faz parte destas existências minúsculas, com as suas pequenas tragédias, as fúrias, as trapaças, aquela esperteza que parece nascer do sangue dos danados, vidas que são um mal-entendido lançadas contra a história, a quem não coube nada a não ser retornar à “velha noite planetária”. 

 “Anos depois, li na imprensa a morte do Couve-Flor. Estampara o carro contra um muro. Um carro velho, mas roubado. Poderia ter roubado um carro novo e não um velho, mas o couve flor tinha estilo, e sobretudo tinha sentido de humor. De certeza que o grande filho da puta roubou o carro ao Horcas”. São estas figuras que vão comparecendo ao longo do romance, vindos das profundezas da terra, para deixar em traços largos notícias destas existências insignificantes, bastardas e sem sentido. Sem redenção – interessa-lhe essa “Espanha irredimível” -, sem retirar nada destes seres que caminham para um esquecimento profundo, Ordesa não nos ensina dada, não nos dá nada. Ou então apenas isto: que nunca, em momento algum, aprendemos finalmente a viver.