Oito anos depois das revoltas populares que destronaram ditadores e derrubaram regimes, os povos argelino, sudanês e marroquino voltaram a sair à rua. Não foram bem-sucedidos na primeira tentativa e, agora, voltaram à carga. Há quem acredite que está em curso uma segunda Primavera Árabe, outros são mais cautelosos e defendem que pode ser o início de um novo ciclo e outros ainda acham que se trata de uma consequência prolongada no tempo das revoltas populares de 2011.
O Presidente argelino, Abdelaziz Boutlefika, já se viu forçado a abandonar o poder, tanto por pressão da rua como dos militares, e o fim do seu consulado está a inspirar o mundo árabe. No Sudão do Norte, manifestantes conseguiram no final da passada semana o afastamento do Presidente Omar al-Bashir, no poder há 30 anos, depois de pelo menos 50 pessoas terem morrido devido à repressão das autoridades. E, em Marrocos, os professores saíram à rua para exigir o “fim da ditadura”, não esquecendo os jordanos que marcharam contra a corrupção no seu país. Tudo no último mês e meio. E nada faz prever que a situação acalme no futuro próximo.
“Estamos a viver as consequências da Primavera Árabe, que se transformou num grande inferno. O que temos neste momento é uma clarificação de situações, quer na Líbia como na Argélia”, considera Maria João Tomás, especialista no Norte de África e Médio Oriente, professora na Universidade Autónoma de Lisboa e vice-presidente do Observatório do Mundo Islâmico. No seu entender, no caso de Marrocos tudo indica serem “manifestações pontuais”.
Ao contrário das reações iniciais de 2011, quando a Primavera Árabe avançou que nem uma onda, as de agora são mais cautelosas. Uns preferem ignorar até ser impossível, outros receiam uma espécie de repetição da história primeiro como tragédia e depois como farsa e outros tantos continuam a ver esperança nas revoltas populares. Os manifestantes sabem os riscos que enfrentam, mas mesmo assim não desistem – a história já mostrou que qualquer revolução pode evoluir para guerras civis, golpes de Estado e crises humanitárias sem precedentes. As guerras civis líbia, síria e iemenita e o golpe de Estado no Egito ainda ecoam na memória de muitos, principalmente de quem as viveu ou delas esteve próximo.
Depois da euforia, a ressaca Hoje, o balanço da Primavera Árabe está longe de ser positivo. O general Abdel Fatah al-Sissi é ditador no Egipto, apoiado pelos militares, há muito a espinha dorsal do regime. À vitória eleitoral da Irmandade Muçulmana, em 2013, respondeu com um golpe de Estado – o partido islamita ameaçava os interesses económicos dos militares – e com repressão renovada contra toda a oposição, independentemente de ser ou não islamita. As monarquias no Golfo Pérsico parecem mais fortes que nunca e a Arábia Saudita interveio militarmente para esmagar os rebeldes Houthis no Iémen, dando origem à maior crise humanitária das últimas décadas.
Na Síria, Bashar Al-Assad, apoiado pela Rússia e Irão, ganhou a guerra civil e fez frente ao Estado Islâmico. Manteve-se no poder e, pelo meio, o país ficou reduzido a escombros, com milhões de deslocados, refugiados e mortos. O Estado Islâmico formou-se e foi derrotado no terreno, mas não destruído – e a Europa é um dos seus alvos.
Na Líbia, o ditador Muhammar Khadaffi respondeu com balas aos protestos e uma guerra civil foi o resultado natural. Uma guerra de movimento, com carrinhas de caixa aberta e onde as fronteiras fluíam de tempos a tempos e qualquer pessoa podia ser inimiga – o ditador contratou mercenários e tribos para levarem a cabo a guerra por si. À crescente destruição e carnificina, o Ocidente respondeu com uma intervenção militar da NATO, ora com unidades de operações especiais no terreno ora com bombardeamentos. Com o ditador capturado e morto pelos rebeldes, a Líbia transformou-se num país sem Estado, onde as mílicias, das quais muitas jihadistas, criaram feudos e contestaram a autoridade dos dois governos, um sediado em Bengazi e outro em Trípoli. Em 2014, mais uma guerra civil aconteceu e, recentemente, o general Khalifa Haftar, de Bengazi, avançou com uma ofensiva militar para conquistar Trípoli e unificar sob a sua figura todo o país, ainda que se alie a milícias para alcançar o seu objetivo.
Fê-lo ignorando os pedidos das Nações Unidas e as condenações de tantos países, entre os quais os Estados Unidos e Reino Unido, sendo apoiado pela Rússia e França. “A Rússia apoia o Haftar para poder controlar a Líbia e alguns poços petrolíferos de fornecimento à Europa”, explica Maria João Tomás, acrescentando que “o que está em causa neste momento é sempre o mesmo: o controlo dos hidrocarbonetos, seja petróleo ou gás”.
Resta a Tunísia. Com avanços e recuos, lá conseguiu uma transição pacífica de regime: caiu o ditador Ben Ali, viveram-se momentos de instabilidade política, formou-se um governo de unidade nacional e eleições legislativas foram realizadas em 2014. Mas a economia continua a não dar bons sinais: desemprego galopante, greves, protestos, inflação, escassez de bens, queda do turismo. Em troca de um empréstimo do Fundo Monetário Internacional, o governo encetou uma política de austeridade que poucos tunisinos aceitam: não foi para isto que a revolução se fez, dizem. E é verdade: foi a decrépita situação económica e falta de oportunidades de vida que levaram o jovem tunisino e vendedor de rua Mohamed Bouazizi a imolar-se. A Polícia confiscara-lhe a sua banca de fruta, a única fonte de rendimento que tinha, e, sem alternativas de vida, abdicou da sua vida em protesto. Certamente que nunca imaginou o impacto que a sua ação teria.
Houve regimes que, aprendendo com o que acontecia ali mesmo ao lado, conseguiram sobreviver. Foi o caso do marroquino e argelino. Prometeram reformas económicas e alguma abertura política, numa tentativa de evitar o escalar da tensão nas ruas. Quem não aceitava as concessões, não tinha outra opção que não acabar na prisão ou fugir do país.
Mas as causas estruturais, nomeadamente económicas e políticas, que desencadearam as revoltas populares mantiveram-se. “Sem dúvida que os fatores estruturais que motivaram os protestos de 2011 e o contágio para diferentes países mantêm-se”, considera Isabel Alcario, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais. E acrescenta que nos “últimos anos sempre houve alguns, ainda que de pequena dimensão e de natureza socio-económica e política”. Para a investigadora especialista no Norte de África, não se pode considerar que houve um corte entre 2011 e os protestos de hoje, mas sim uma dinâmica de continuidade, sendo ainda cedo para se poder falar de uma segunda Primavera Árabe.
Sortes diversas Agora, Marrocos volta a ter manifestações – também as teve em 2016 e 2017 –, mas, explica Maria João Tomás, “o regime está sólido, ninguém quer afastar o Rei”. E a situação económica no país também está a melhorar, com vários projetos de infraestruturas a serem desenvolvidos, estimulando a economia marroquina e reafirmando a sua importância geoestratégica como ligação do Norte de África à Europa. Mas a questão política e a repressão do regime continua a levar muitos marroquinos às ruas, com o último motivo a ser a condenação a 20 anos de prisão de 42 líderes dos protestos de há uns anos.
O mesmo não se pode dizer da Argélia. O regime de Bouteflika reagiu à Primavera Árabe aumentando os gastos públicos para melhorar as condições de vida dos argelinos – deu senhas de petróleo, por exemplo – e prometeu alguma abertura política, o que veio efetivamente a fazer com a reforma constitucional de 2015/2016. O défice não parou de subir e chegou mesmo aos 10% do PIB, com a economia, fortemente centralizada nos militares e burocratas do regime, a não conseguir desenvolver-se como desejado. O desemprego aumentou, principalmente o jovem, que já está nos 30% numa população composta por 70% de jovens até aos 30 anos. A queda do preço do petróleo no mercado internacional apenas veio acentuar a atrofia económica, levando a cortes nos gastos e a uma cada vez maior dependência das reservas de divisa – calcula-se que nos próximos dois anos o regime fique sem divisas. Em suma, Bouteflika apenas conseguiu ganhar uns anos de longevidade e o povo saiu à rua quando o chefe de Estado anunciou que se iria candidatar a um quinto mandato, depois de já estar há 20 anos no poder.
Ao fazê-lo, Bouteflika assumiu politicamente que a reforma da Constituição de nada serviu para abrir o regime, pois uma das reformas principais era a limitação de mandatos para promover a renovação da classe governante. Provocou a raiva dos argelinos e pagou por isso: abandonou o poder, afastado por quem, como o chefe das Forças Armadas, o tenente-general Ahmed Saed Galah, semanas antes era cliente seu. Agora, os militares querem ser senhores e donos da situação. Os militares são a espinha dorsal do regime argelino e veem-se agora a braços com uma contestação nas ruas que contesta diretamente o seu poder: os manifestantes exigem que regressem às casernas.
O número dois do regime, Abeldaker Bensalah, também de idade avançada, substituiu Bouteflika como Presidente interino, mas os protestos não deram qualquer sinal de abrandar, bem pelo contrário. Rompendo com a rotina das manifestações às sextas-feiras, milhares de estudantes foram para as ruas protestar contra uma nomeação que, dizem, não é mais do que uma tentativa de mudar o rosto do regime para os militares continuarem a mandar nos bastidores. A Polícia respondeu com canhões de água, gás lacrimogéneo e gás pimenta – a primeira vez que o fizeram em dois meses de manifestações – e a tensão voltou a subir. Ninguém sabe o que esperar, e um cenário de guerra civil não pode ser afastado.
Mas uma coisa é certa: os militares não estão dispostos a abandonar o poder e tudo farão para o manter – nenhuma classe governante abandona pacificamente o poder. “Os militares vão tentar tomar conta da situação”, prevê Maria João Tomás, dando como precedente o que Al-Sissi fez no Egipto com o golpe militar. E, se assim for, certamente que terão o apoio do Ocidente – o gás natural argelino é fundamental para a independência energética da Europa face à Rússia e Estados Unidos.
Efeito de contágio Caso a situação na Argélia descambe e uma guerra civil ecluda, então uma intervenção militar, à semelhança da da NATO na Líbia, não pode ser afastada. Em causa estão interesses e recursos energéticos vitais para França, Espanha e até Portugal. Se tal acontecer, então a Argélia pode tornar-se, mais uma vez, apetecível para os jihadistas – recorde-se que entre 1991 e 2002 houve uma guerra civil no país entre militares e jihadistas que causou mais de 200 mil mortos.
A Líbia, mesmo ali ao lado, está inundada de armas e repleta de organizações jihadistas; a Tunísia também e entre 15 mil a 20 mil militantes do Estado Islâmico procuram novos teatros de operações onde possam tentar instaurar o califado que perderam há bem pouco tempo. Além disso, a África subsariana está repleta de mercenários e de armas – muitos dos mercenários que combateram por Khadaffi vieram dessa zona e depois foram para o Mali.
No Sudão, meses de protestos obrigaram o presidente sudanês a abandonar o poder. Não por vontade própria, mas por ter sido obrigado a isso pelos militares, que, pelas primeiras horas da manhã, tomaram conta da emissão televisiva estatal, libertaram todos os presos políticos no país e detiveram o chefe de Estado no palácio presidencial. Tanques invadiram as ruas e milhares de pessoas foram para as ruas festejar. Celebra-se o fim da governação de Omar al-Bashir, mas não se sabe o que aí vem – se uma junta militar, eleições livres e democráticas ou ainda mais instabilidade política com violência a ser a sua principal caraterística. Por agora, o país está sob estado de emergência, a Constituição foi suspensa e um conselho militar foi formado para garantir a governação, anunciou na televisão o ministro da Defesa sudanês, Awad Mohamed Ahmed Ibn Auf.
O Sudão é o terceiro maior país de África. Faz fronteira com muitos outros Estados, entre os quais Chade, Etiópia, entre outros, podendo, explica Isabel Alcario, “dar origem a um efeito de contágio”. Além disso, o país é permeável ao jihadismo, com várias organizações a atuarem no seu território e outras a poderem criar lá raízes, dando origem a ainda mais instabilidade, tanto no país como na região, e há oleodutos petrolíferos que passam por lá, a que se soma o facto de as refinarias mais importantes na zona se localizarem no Sudão.
As revoltas voltaram ao Norte de África e um novo capítulo na história destes países começou.