Eu, psicopata, me confesso


Gatos maltratados, estudos científicos e o amargo do café. Quem é mais sábio? Diz o poeta que não é o homem que inventou a bomba atómica, mas sim a criança que inventou a lagartixa


Ele há estudos assim. Um, recente, da Universidade de Innsbruck relaciona o consumo de café sem açúcar com a psicopatologia. De acordo com as conclusões dos cientistas, depois de entrevistas a mais de 1000 adultos, que incluíram ainda testes de personalidade para encontrar traços antissociais, como sadismo, narcisismo e psicopatologia, o gosto por sabores amargos está ligado a comportamentos psicopáticos.

O estudo até estabelece uma relação direta entre comidas amargas e “sadismo quotidiano”, o que me deixa em maus lençóis, porque além de só conseguir beber café sem açúcar, a verdade é que adoro rabanetes e água tónica – com ou sem gin –, dois dos alimentos apontados como exemplo daqueles que passam pelos dias praticando o sadismo. Talvez considerar o aipo enjoativo e não ir muito à bola com a toranja me tenha salvo de amargar ainda mais a vida de pessoas e animais. Mas quem sabe?

Confesso que, em criança, algumas vezes brinquei, de forma de que não me orgulho, com o gato da minha tia-avó, a quem lançava pelo ar num exercício aparentemente sádico, mas que no fundo pretendia comprovar a afirmação repetida de que os gatos caem sempre sobre as patas. O que me coloca no mesmo campo dos cientistas da Universidade de Innsbruck, embora de forma rudimentar e infantil, é certo.

Desde então tenho tentado redimir-me desse começo pouco auspicioso do meu relacionamento com o mundo, não praticando o mal com animais – quando o meu gato morreu, admito que cheguei a verter algumas lágrimas, ou até mais do que algumas.

Voltando ao estudo científico. Aparentemente, esta não é a primeira vez que se encontra uma relação direta entre o sabor e a personalidade. Mesmo assim, imagino que Christina Sagioglou e Tobias Greitemeyer estejam entusiasmados com os resultados do estudo – são investigadores, vivem para testar hipóteses e concluir a partir dos resultados se a premissa se comprova pela experiência.

A minha experiência com o gato da minha tia também ficou comprovadíssima, mesmo tendo em conta que os testes não foram tão minuciosos quanto gostaria, pois o animal, a certa altura, começou a mostrar comportamentos menos gregários – cada vez que me via, punha-se a milhas e nunca mais o encontrava, apesar dos esforços.

Mas confesso que fico sempre perplexo com esta necessidade de compartimentar a existência humana, de deduzir personalidades, traços de comportamento pelos sinais exteriores, pelos gestos; de adivinhar o que somos ou poderemos vir a ser pela forma como lavamos os dentes ou se deixamos a tampa da sanita para baixo ou para cima. Como se todos fôssemos uma coleção de tiques, de gestos que mostram as cartas que temos na mão, como no póquer.

Vamos começar a olhar de lado para quem não gosta de doces? Para quem se delicia com o amargo dos limões e tira prazer da sensação que a acidez lhe causa no corpo, entre o arrepio e o prazer? Pode o empregado da pastelaria recusar um galão com café de máquina sem açúcar se não for acompanhado pelo menos de um queque, uma madalena ou um bolo de arroz? O amargo na escolha vai trazer-nos amargos de boca sociais?

Há um poema de Manoel de Barros que fala destas coisas da natureza, da ciência e de sabedorias que a certa altura diz “não era mister de ser versado em Kant para se/ saber que os passarinhos da mesma plumagem/ voam juntos./ Nem era preciso ser versado em Darwin para se/ saber que os carrapichos não pregam no vento./ Que, apois:/ Sábio não é o homem que inventou a primeira/ bomba atómica./ Sábio é o menino que inventou a primeira/ lagartixa.”

À ciência devemos grande parte do que somos como sociedades desen-volvidas, virtude e defeito dessa eterna busca do cientista de descobrir tudo, de saber tudo. Explicar o que se passou, o que se passa e adivinhar o que se vai passar. A ciência tenta ocupar, com o poder da experimentação, o espaço da oração, aspira a ser total. Religião com deus experimental.

Ligar o nosso pequeno comportamento quotidiano à pauta de uma sinfonia já escrita, por genes e influências de planetas e marés, não será uma espécie de determinismo laico? Não nos reduz a seres amarrados pelos gestos instintivos? Será que somos mesmo todos iguais, nós que bebemos café amargo? Sonhamos todos com arrancar asas a borboletas?

O arrepio causado pelas migalhas da madalena na colher de chá, engatilhando memórias involuntárias de infância, explicam-se pela doçura de Proust? E que ligação haverá entre o escritor “em busca do tempo perdido” e a senhora de penteado esmerado que mexe o chá e come uma madalena na Pastelaria Versailles?

Às vezes. a ciência comporta-se como o dito poeta, na “Biografia do Orvalho”, que não sabe “se são as patas da formiga que tentam abraçar o sol” ou se são as “suas frases que desejam fazer esse trabalho”. A ciência lida mal com o mistério da ignorância ou a ânsia do indeterminado. E, por vezes, deixa-se levar por uma inalienável vontade de descobrir até as linhas com que se cose o ridículo.

Uma equipa de cientistas portugueses venceu o ano passado um Ignobel, os prémios entregues aos mais estapafúrdios ou, digamos, curiosos estudos científicos, por uma investigação sobre o poder da saliva para limpar superfícies sujas. Ninguém duvida que a conclusão afirmativa seja um desenvolvimento científico, porque vem provar aquilo que todos nós já sabíamos. Como ninguém duvidará que a saliva que voa da boca de um indivíduo para o olho de outro está muito para lá da mera transmissão de fluidos entre seres vivos. Mas será que a ciência terá de se ocupar também disso?