O preço que a vida tem


O caso da barragem de Brumadinho é reflexo do que acontece às empresas quando não são controladas, dão preço à vida humana e calculam se vale a pena investir em segurança ou pagar indemnizações pelas mortes


As empresas existem para dar lucro aos seus acionistas. Produzam chinelos, automóveis ou minério de ferro. A única preocupação deve ser a de fazer bem o seu negócio, garantir os lucros de hoje e aumentar os de amanhã. E só devem ter em conta o meio onde estão inseridas por causa da imagem (e do impacto que possa ter no nível de lucro dos acionistas) e do esgotamento de recursos que torne difícil ou impossível a atividade da empresa num futuro próximo.

Nesse mundo liberalizado ideal, o Estado reduzir-se-ia à insignificância e as empresas garantiriam por si a fiscalização da sua atividade. Quanto mais depressa os negócios se livrarem dos entraves públicos de leis e fiscalização de controlo, melhor poderão concentrar-se no seu objetivo primordial: gerar riqueza. Primeiro para os seus acionistas e, em consequência, para a sociedade. Ao Estado cabe aligeirar os trâmites, distribuir subsídios e isenções fiscais e sair da frente, para deixar passar quem realmente trabalha.

A rutura da barragem de Brumadinho, no estado brasileiro de Minas Gerais, mostra ao que nos leva a autofiscalização, o objetivo único do lucro e um Estado incapacitado, indiferente ao papel de controlo da atividade empresarial para melhor servir o todo da população. Brumadinho é um exemplo do ultraliberalismo posto em prática em forma de tragédia.

Três anos depois da rutura de Mariana, o maior desastre ambiental do Brasil, que deixou também um saldo de 19 mortos, o rebentamento da barragem de resíduos da mina de minério de ferro de Córrego do Feijão não é uma surpresa, apenas a constatação de que a Vale, uma das maiores empresas mineiras do mundo, conhecedora dos riscos que enfrentava, preferiu não agir.

A empresa, privatizada em 1997, no governo de Fernando Henrique Cardoso – e onde o Estado não tem mais que uma golden share que lhe permite garantir a manutenção da sede no Brasil e pouco mais -, distribuiu em 2016 1,8 mil milhões de reais (429 milhões de euros) de dividendos aos seus acionistas. Ou seja, um ano depois da morte e destruição de Mariana, a empresa cumpria o seu papel de dar mais dinheiro aos seus acionistas, ao mesmo tempo que o investimento descia a pique: de 14,2 mil milhões em 2013 para 2,2 mil milhões em 2018, uma tendência constante de descida que não se alterou sequer com o desastre.

A Vale percebeu o que se passou em Mariana, podia ter aprendido com esse erro trágico e investido na segurança, mas não o fez. Agora, depois de um desastre que aponta para mais de 300 mortos (121 confirmados e 226 desaparecidos, cuja esperança de serem encontrados com vida é quase nenhuma), garante que vai fechar dez barragens semelhantes à de Brumadinho – não se sabendo se trata de um ato de relações públicas se de uma intenção real.

No final do ano passado, a Vale entrou com um pedido para aumentar a capacidade do complexo de Paraopeba, que inclui a mina de Jangada e a mina de Córrego do Feijão, em 88%. Apesar dos pareceres negativos dos ambientalistas, o projeto foi aprovado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento.

“Desde o rompimento de Mariana, nada foi feito para evitar que esse tipo de desastre aconteça”, afirmou o procurador encarregado do processo do desastre de 2015, Carlos Eduardo Ferreira Pinto. “Era lógico que isso iria acontecer”, acrescentou.

Mesmo tendo em conta que o presidente da Vale, Fabio Schvartsman, assumiu a presidência em 2017 com o lema “Mariana nunca mais”, a empresa pouco ou nada fez para minimizar os riscos de um novo desastre numa das suas barragens de resíduos. Melhor, tudo indica que fez contas e resolveu continuar a jogar. Sem aprender nada com o rutura da barragem de Mariana, a empresa de mineração preferiu os cálculos de risco e probabilidades, pesados em função de investimento e indemnizações: o que custa mais, gastar dinheiro a investir em segurança ou pagar as indemnizações em caso de desastre tendo em conta as probabilidades de esse desastre realmente vir a acontecer?

No princípio dos anos 1990 começou a falar-se muito em ética empresarial, a ideia de que as empresas, além de geradoras de lucro, tinham responsabilidades sociais que iam para lá da sua atividade económica. Fosse em relação ao meio ambiente, fosse em relação às comunidades onde estão inseridas, fosse em relação ao bem-estar dos seus trabalhadores. Muito caminho se foi percorrendo desde então e existem realmente setores onde essa ética prevalece. Noutros, não. E a tendência nos tempos atuais parece ser de menos ética e mais lucro.

Deixadas em paz, em autocontrolo, muitas empresas descontrolam–se. Com falta de receitas, os Estados reduzem os seus orçamentos e, com isso, a sua capacidade fiscalizadora. E nesse silogismo socrático da essência humana, a conclusão vem em jeito de tragédia. Seja Mariana e Brumadinho, seja nas demais que estão para vir. É abrumado.
 


O preço que a vida tem


O caso da barragem de Brumadinho é reflexo do que acontece às empresas quando não são controladas, dão preço à vida humana e calculam se vale a pena investir em segurança ou pagar indemnizações pelas mortes


As empresas existem para dar lucro aos seus acionistas. Produzam chinelos, automóveis ou minério de ferro. A única preocupação deve ser a de fazer bem o seu negócio, garantir os lucros de hoje e aumentar os de amanhã. E só devem ter em conta o meio onde estão inseridas por causa da imagem (e do impacto que possa ter no nível de lucro dos acionistas) e do esgotamento de recursos que torne difícil ou impossível a atividade da empresa num futuro próximo.

Nesse mundo liberalizado ideal, o Estado reduzir-se-ia à insignificância e as empresas garantiriam por si a fiscalização da sua atividade. Quanto mais depressa os negócios se livrarem dos entraves públicos de leis e fiscalização de controlo, melhor poderão concentrar-se no seu objetivo primordial: gerar riqueza. Primeiro para os seus acionistas e, em consequência, para a sociedade. Ao Estado cabe aligeirar os trâmites, distribuir subsídios e isenções fiscais e sair da frente, para deixar passar quem realmente trabalha.

A rutura da barragem de Brumadinho, no estado brasileiro de Minas Gerais, mostra ao que nos leva a autofiscalização, o objetivo único do lucro e um Estado incapacitado, indiferente ao papel de controlo da atividade empresarial para melhor servir o todo da população. Brumadinho é um exemplo do ultraliberalismo posto em prática em forma de tragédia.

Três anos depois da rutura de Mariana, o maior desastre ambiental do Brasil, que deixou também um saldo de 19 mortos, o rebentamento da barragem de resíduos da mina de minério de ferro de Córrego do Feijão não é uma surpresa, apenas a constatação de que a Vale, uma das maiores empresas mineiras do mundo, conhecedora dos riscos que enfrentava, preferiu não agir.

A empresa, privatizada em 1997, no governo de Fernando Henrique Cardoso – e onde o Estado não tem mais que uma golden share que lhe permite garantir a manutenção da sede no Brasil e pouco mais -, distribuiu em 2016 1,8 mil milhões de reais (429 milhões de euros) de dividendos aos seus acionistas. Ou seja, um ano depois da morte e destruição de Mariana, a empresa cumpria o seu papel de dar mais dinheiro aos seus acionistas, ao mesmo tempo que o investimento descia a pique: de 14,2 mil milhões em 2013 para 2,2 mil milhões em 2018, uma tendência constante de descida que não se alterou sequer com o desastre.

A Vale percebeu o que se passou em Mariana, podia ter aprendido com esse erro trágico e investido na segurança, mas não o fez. Agora, depois de um desastre que aponta para mais de 300 mortos (121 confirmados e 226 desaparecidos, cuja esperança de serem encontrados com vida é quase nenhuma), garante que vai fechar dez barragens semelhantes à de Brumadinho – não se sabendo se trata de um ato de relações públicas se de uma intenção real.

No final do ano passado, a Vale entrou com um pedido para aumentar a capacidade do complexo de Paraopeba, que inclui a mina de Jangada e a mina de Córrego do Feijão, em 88%. Apesar dos pareceres negativos dos ambientalistas, o projeto foi aprovado pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento.

“Desde o rompimento de Mariana, nada foi feito para evitar que esse tipo de desastre aconteça”, afirmou o procurador encarregado do processo do desastre de 2015, Carlos Eduardo Ferreira Pinto. “Era lógico que isso iria acontecer”, acrescentou.

Mesmo tendo em conta que o presidente da Vale, Fabio Schvartsman, assumiu a presidência em 2017 com o lema “Mariana nunca mais”, a empresa pouco ou nada fez para minimizar os riscos de um novo desastre numa das suas barragens de resíduos. Melhor, tudo indica que fez contas e resolveu continuar a jogar. Sem aprender nada com o rutura da barragem de Mariana, a empresa de mineração preferiu os cálculos de risco e probabilidades, pesados em função de investimento e indemnizações: o que custa mais, gastar dinheiro a investir em segurança ou pagar as indemnizações em caso de desastre tendo em conta as probabilidades de esse desastre realmente vir a acontecer?

No princípio dos anos 1990 começou a falar-se muito em ética empresarial, a ideia de que as empresas, além de geradoras de lucro, tinham responsabilidades sociais que iam para lá da sua atividade económica. Fosse em relação ao meio ambiente, fosse em relação às comunidades onde estão inseridas, fosse em relação ao bem-estar dos seus trabalhadores. Muito caminho se foi percorrendo desde então e existem realmente setores onde essa ética prevalece. Noutros, não. E a tendência nos tempos atuais parece ser de menos ética e mais lucro.

Deixadas em paz, em autocontrolo, muitas empresas descontrolam–se. Com falta de receitas, os Estados reduzem os seus orçamentos e, com isso, a sua capacidade fiscalizadora. E nesse silogismo socrático da essência humana, a conclusão vem em jeito de tragédia. Seja Mariana e Brumadinho, seja nas demais que estão para vir. É abrumado.