A quem grita, indignado, “eu não sou racista” ou “Portugal não é um país racista”, recomendo vivamente fazer o Teste de Associação Implícita da Universidade de Harvard sobre racismo, disponível online em https://implicit.harvard.edu/implicit/takeatest.html. É um bom exercício para se perceber como as palavras são muitas vezes uma expressão vazia quando as atitudes demonstram exatamente o contrário.
Há racismo em Portugal, sim. E xenofobia. Esta última, parcialmente. Viesse daí uma horda de escandinavos lourinhos e a receção seria não menos que hospitaleira. Ou mesmo dos novos brasileiros endinheirados aterrados em Lisboa, atraídos como traça pela luz à cidade ufana de artigos de revistas. Com estes, os braços abrem-se. Seja escura a tez da pele e o caso muda de figura: agarram-se as senhoras às bolsas finas e os homens enchem o peito de (acham eles) coragem.
Não fosse assim e Mamadou Ba, dirigente de uma organização que luta contra o racismo e trabalha para ajudar outros, não seria perseguido na rua por membros de um partido político nem tinha de pedir proteção policial por temer pela sua integridade física.
Há racismo na escola, no trabalho, no aluguer de casa, nos transportes públicos, nas piadas, há racismo até na forma como se esconde o racismo em forma de indignação. E mesmo na forma simpática da interação nas relações sociais quotidianas: quantas vezes não ouvimos perguntar a um negro numa conversa “de onde és?”, como se a cor da pele implicasse uma naturalidade diferente.
Se fosse essa uma questão essencial seria até eu menos português, porque já nasceram eles por aqui e eu fui nascer imigrante noutro lado.
As pessoas não são racistas, mas… preferiam não alugar a casa a um brasileiro ou dar o emprego a um negro. E mesmo a justiça, que devia ser igual para todos, ainda tem preferências cromáticas. E nem sequer o caso muda de figura por a ministra da Justiça ser negra – o que é, aliás, interessante, sendo Francisca Van Dunem a primeira negra ou negro a chegar à chefia de um ministério em Portugal, aos 45 anos da Revolução dos Cravos.
Os partidos políticos parecem um anúncio do Omo, as televisões são para brancos e nos serviços de informação, que me lembre, contam-se pelos dedos os jornalistas negros (e quase todos ou mesmo todos na TVI). No funcionalismo público vê-se aqui e ali uma tez mais escura, sem nunca se tornar um hábito. Nos bancos parece pior – deve ser porque nunca se deixa um negro ao pé do dinheiro, por causa da tentação.
Lisboa até pode ser uma cidade africana, como nos garante Kalaf Epalanga, mas só quando a noite cai, para a música, para a dança. Ao raiar do sol, os negros regressam aos seus bairros na periferia da cidade. Ao Bairro da Jamaica, à Quinta do Mocho, Cova da Moura, Amadora, Cacém. Os negros são tolerados desde que se mantenham “negros”, isto é, sabedores da sua posição, cumprindo as suas tarefas e morando nos seus lugares.
Podem construir as nossas casas, limpar os nossos escritórios, mas queremos que sejam eles a julgar as nossas causas, a defender-nos num processo? Podem marcar o golo da nossa equipa, ganhar as nossas medalhas de ouro, mas deixamo-los lidar com os nossos investimentos financeiros? Cuidar do nosso filho doente? Aquilo que muitos brancos pensam quando são atendidos por um médico negro é: vou querer uma segunda opinião.
As coisas estão a mudar, é certo, mas mais devagar do que deveriam. Bem mais devagar. Ainda hoje, quando um aluno negro tem boas notas é caso para desconfiança (será que copiou?) ou para servir de exemplo de como a escola está aberta a todas as cores e credos, de como Portugal pode agitar a bandeira da integração.
E depois temos a nossa polícia. As forças de segurança pública deveriam estar treinadas para recorrer à violência só em situações extremas, saber de psicologia, ler pessoas e conjuntos de pessoas – avaliar o grau de perigosidade. Mas, a julgar pelos incidentes que se multiplicam, a sua forma de avaliação é ligeiramente toldada pela questão da pele. A generalização é um defeito, e antes de dizer que a polícia portuguesa é racista, digamos que há polícias racistas e, depois, há o erro da perceção. A introdução do fator negro na equação acaba por afetar o resultado.
Depois, não admira que os ânimos se exaltem e que muita gente de pele negra se revolte ou que não tenha para com a polícia a atitude indulgente que todos os portugueses não racistas gostavam que eles tivessem. Um negro ou é subserviente ou é uma ameaça – estes parecem ser os dois únicos prismas das forças da ordem.
Como refere o “Público”, as queixas contra a polícia chegadas à Inspeção-Geral da Administração Interna em 2018 foram as mais numerosas em sete anos. Mas as 860 queixas resultaram em apenas 30 inquéritos, dos quais só 24 foram convertidos em processos disciplinares e apenas dois acabaram em pena de suspensão de agentes. Uns míseros 0,4%. Ainda se estranham porque os polícias não são especialmente bem-vindos em certos bairros?
Como dizem nas reuniões de alcoólicos anónimos, a primeira decisão para lidar com um problema é reconhecer a sua existência: quanto mais tempo adotarmos o comportamento da avestruz, mais difícil se torna. Não basta essa frase estranha, ouvida amiúde como argumento de defesa, “eu até tenho um amigo negro” para o cenário mudar como um bater de calcanhares no Kansas. O racismo existe apesar do discurso negacionista. É preciso ir além das palavras.