Cheerleaders. O regresso às origens para abafar as polémicas

Cheerleaders. O regresso às origens para abafar as polémicas


Duas equipas da NFL resolveram desafiar as convenções instituídas e contrataram homens para uma função sempre associada ao sexo feminino – apesar de o inventor do conceito, ainda no século XIX, e de os seus maiores precursores serem elementos masculinos


A notícia caiu como uma bomba no seio da NFL no passado mês de março: na temporada 2018/19, a iniciar a 6 de setembro, pela primeira vez nos seus 98 anos de história a liga profissional de futebol americano iria contar com cheerleaders… masculinos. O passo foi dado pelos Los Angeles Rams, que anunciaram a contratação de Quinton Peron e Napoleon Jinnies, dois bailarinos profissionais, para se juntar às 38 raparigas que compõem a “brigada dos pompons” da equipa. Peron e Jinnis submeteram-se a rigorosos castings, que envolveram dança, teste teórico de conhecimento de futebol americano, longas entrevistas e até mesmo testes antidrogas, e passaram com distinção.

“Estava a ver um jogo de basquetebol dos Lakers e quando entraram as cheerleaders pensei: ‘Por que razão não posso estar ali também? Já fiz coreografias para muitas equipas profissionais, então porque não eu?’”, revelou Quinton Peron, garantindo ter dançado “com o coração” nos testes. “Nunca tinha feito um casting assim. Estou habituado a receber um telefonema ou um email pouco depois, ou não receber nada sequer. Estes duraram três semanas, com vários ensaios e um muito extenso processo de entrevistas. Foi incrível, e valeu a pena”, frisou Napoleon Jinnies. Emily Leibert, a líder da claque, garantiu que os dois foram escolhidos não apenas pelo talento mas também pela personalidade e atitude: “São inteligentes, eloquentes e estão mais do que qualificados para serem embaixadores da equipa. Mas, acima de tudo, são dançarinos incríveis. Trazem tanta energia… E a exibição deles tem qualquer coisa de magnético, porque não se consegue tirar os olhos de cima.”

A notícia rapidamente se difundiu pelos meios de comunicação e inspirou também Jesse Hernandez, outro bailarino profissional, que resolveu tentar a sua sorte nos Saintsations, a equipa de cheerleaders dos New Orleans Saints. Em boa hora. “A minha mãe passou-me o link com a história deles e disse-me: ‘É a tua vez de brilhar’”, revelou o jovem de 25 anos, que competiu com 50 mulheres para 34 vagas. “Já fui o único rapaz em várias situações de dança. Vejo as raparigas como se fossem minhas irmãs”, completou Jesse, que se tornou o primeiro homem na história dos Saintsations: “É o início de uma caminhada para muita gente. Pode significar uma mudança para o mundo e abrir portas para outros bailarinos masculinos. E era exatamente isso que eu queria conseguir.”

Algumas equipas, como os Baltimore Ravens e os Indianápolis Colts, já tinham homens inseridos nas claques há algum tempo. Estes, porém, não fazem as partes dançáveis, entrando apenas em ação para tarefas como segurar, elevar e atirar ao ar as cheerleaders enquanto estas desempenham a coreografia. Peron, Jinnis e Hernandez irão muito além, cumprindo exatamente as mesmas funções das colegas femininas: movimentos de ginástica, dança e tudo o resto que caracteriza este desporto.

As regras para elas… e eles A opção tomada pelos Rams e pelos Saints foi arrojada e desafiou as convenções instituídas no futebol americano – das outras 30 equipas, 24 têm uma equipa de cheerleaders exclusivamente feminina e seis não possuem claque oficial. Ainda assim, há quem a veja como uma tentativa de branquear/amenizar as inúmeras polémicas ocorridas na modalidade nos Estados Unidos na última temporada. Dos protestos dos atletas afro-americanos a reclamar contra a desigualdade de tratamento – correram mundo as imagens de jogadores ajoelhados e em silêncio enquanto tocava o hino norte-americano no início das partidas –, exacerbados pelos sempre polémicos tweets de Donald Trump, aos estudos sobre os problemas cerebrais de que muitos antigos atletas vão sofrendo ao longo dos anos, passando pela divulgação das rígidas (e sexistas) regras a que as cheerleaders de algumas equipas têm de se submeter, foram muitas as dores de cabeça que assolaram o departamento de relações públicas da NFL.

Em junho, de resto, cinco cheerleaders processaram os Houston Texans, queixando-se dos escassos salários e de um ambiente de trabalho hostil. Pouco depois, o “New York Times” escreveu que as cheerleaders dos Washington Redskins foram forçadas a apresentar-se em topless durante uma sessão de fotos na Costa Rica em 2013, num evento onde estava presente a direção da equipa. Antes, em março, Bailey Davis, ex-cheerleader dos Saints, já tinha apresentado queixa junto da Comissão para a Igualdade de Oportunidades no Emprego, depois de ter sido demitida por ter publicado fotos nas redes sociais a confraternizar com os jogadores fora do ambiente de trabalho e, noutra ocasião, em lingerie, o que ia contra as regras da equipa.

Apesar de, à partida, a função das cheerleaders ser vista como secundária no desporto – dedicam-se basicamente a proporcionar alguns minutos de animação antes do início e nos intervalos das partidas –, a verdade é que a mesma exige uma dura rotina de trabalho e está igualmente sujeita a rígidas regras. Por exemplo, as cheerleaders dos Carolina Panthers, mais conhecidas como TopCats, têm de chegar aos estádios onde vão atuar pelo menos cinco horas antes do início do jogo, apresentar-se com piercings e tatuagens completamente cobertos e só voltar a trocar de roupa depois de terem saído do estádio – há multas instituídas para quem se engane no material a levar para os treinos, por exemplo. Os livros de regras das claques femininas incluem ainda vários pontos sobre higiene pessoal, nomeadamente como é que devem estar depiladas, que peso e “tipo de corpo devem ter”, a proibição de usar calças de fato de treino em público, os vernizes e joias que podem usar, mas também o tipo de contacto que podem ter com os jogadores das equipas: não estão autorizadas a tirar fotografias nem sequer falar com eles, pedir autógrafos ou segui-los nas redes sociais, estando inclusivamente proibidas de entrar num restaurante se lá estiverem jogadores da NFL ou obrigadas a sair imediatamente do estabelecimento caso algum entre. Se, por acaso, a tentativa de contacto partir dos próprios atletas, as cheerleaders estão instruídas a bloqueá-los automaticamente. Segundo revelou Leslie Levy, representante das cheerleaders dos Oakland Raiders, as equipas tentam controlar a forma como as integrantes das claques vivem fora do trabalho, nomeadamente através das redes sociais.

Além dos desempenhos nos jogos de futebol americano – a nível profissional mas também em campeonatos universitários –, as claques devem ainda contribuir em ações de solidariedade. E sem receber nada em troca, obviamente. Nalguns casos, cada uma das integrantes da claque paga centenas de dólares pelos uniformes, embora receba pouco mais do que o ordenado mínimo norte-americano – os valores variam de estado para estado: na Carolina do Norte, por exemplo, o salário mínimo é de 7,25 dólares à hora, o que perfaz cerca de mil dólares por mês (o equivalente a 800 euros). A rotina de exercícios e treinos ocupa de 30 a 40 horas por semana – e ainda assim a profissão de cheerleading é vista como um part-time: as cheerleaders da NFL estão obrigadas a ter um emprego a full-time (que pode ser o de estudante).

A desigualdade de géneros foi outro dos aspetos bastante focados neste ano. Além de ser encarada como uma função menos profissional, a profissão de cheerleader tem uma conotação sexualizada, fruto dos uniformes utilizados e das coreografias. Ao ser despedida dos Saints, Bailey Davis explicou que a equipa tem regras diferentes tendo em conta os géneros – por exemplo, as cheerleaders estão proibidas de seguir os jogadores nas redes sociais, mas o contrário é permitido. A equipa justifica a existência destas desigualdades com uma intenção de proteger as cheerleaders… dos jogadores. Em abril, dezenas de atuais e antigas cheerleaders da NFL, mas também da NBA e da NHL, assumiram ser “frequentemente” vítimas de assédio sexual por parte dos fãs e até dos jogadores; as queixas em relação ao assunto é que são praticamente inexistentes, pois estas sentem que essas situações são “normais” e “esperadas” devido à sua profissão, mas também por medo de perderem o emprego.

Até Reagan pegou nos pompons Este desporto continua a ser predominantemente praticado por raparigas/mulheres. Nas universidades dos Estados Unidos, porém, perto de 50 por cento dos seus praticantes são já rapazes, num cenário pouco visto nas décadas mais recentes mas bastante normal nos primórdios do desporto.

Aliás, o cheerleading – ainda não há designação em português para o desporto – nasceu precisamente por ação masculina: em 1898, Johnny Campbell, acérrimo adepto dos Minnesota Gophers, decidiu que a equipa precisava de algum apoio e encorajamento vindo das bancadas. Ato contínuo, virou-se para o resto do público e inventou cânticos e movimentos de apoio, sendo por isso unanimemente considerado o primeiro cheerleader de sempre.

A partir daí, muitos foram os que seguiram o seu exemplo – à época, o cheerleading era apelidado de “yell leader squad”, o que traduzido para português significa qualquer coisa como “equipa de líderes do grito”. Nos anos 40, Lawrence Herkimer fundou a Associação Nacional de Cheerleaders, inventou o icónico salto que seria batizado de Herkie precisamente em sua homenagem e patenteou também os pompons, que se tornariam um símbolo da função de cheerleader – em 1965, Fred Gastoff inventou os pompons de vinil, que ainda hoje são usados um pouco por todos os estádios e campus universitários norte-americanos.

Há até vários casos de personalidades masculinas famosas que desempenharam a função de cheerleader numa dada altura da sua vida. George W. Bush, por exemplo, foi mesmo o chefe da equipa de cheerleaders na Academia Phillips em Andover, Massachusetts, nos anos 60. Os atores Jimmy Stewart, Kirk e Michael Douglas, Steve Martin e Samuel L. Jackson também passaram pelo papel, tal como os futuros presidentes Dwight D. Eisenhower, Franklin D. Roosevelt e Ronald Reagan.

A ascensão das mulheres cheerleaders começou a desenhar-se com a Primeira Guerra Mundial, simplesmente devido ao facto da maioria dos homens norte-americanos ter sido obrigado a alistar-se no exército. As mulheres preencheram o vazio e o público e os atletas gostaram tanto do resultado final que o encorajaram cada vez mais – embora nalguns casos a ideia tenha sido recebida com hostilidade, havendo até escolas que proibiram o cheerleading feminino. Em 1954, um grupo de adeptas dos Baltimore Colts decidiu criar uma claque, comprando os próprios uniformes e utilizado pompons feitos em casa, tornando-se a primeira claque oficial na NFL – e sem receber qualquer remuneração. Com o passar dos anos, as claques começaram a proliferar e as coreografias tornaram-se cada vez mais radicais, sendo inseridos novos elementos como os pompons, as pinturas e os uniformes atrevidos, e o fenómeno ganhou expansão mundial quando a ESPN começou a transmitir competições da modalidade, cuja federação internacional, fundada em 2004, tem na atualidade mais de 116 países associados e alegadamente três milhões de praticantes por todo o mundo.

Apesar de cumprirem, em teoria, as mesmas funções, os cheerleaders masculinos tendem a concentrar-se em movimentos diferentes das femininas. O foco passa menos pela flexibilidade e pelas piruetas e mais por movimentos que requerem mais força, tanto nos braços como nas pernas. Há até cânticos bastante conhecidos que exaltam esse aspeto, como este: “Qualquer homem consegue segurar a mão de uma cheerleader, mas só a elite consegue segurá-las pelos pés!”. Há tradições que ainda persistem nos dias de hoje, como a das Universidades do Utah e de Brigham Young, cujas equipas competem para ver quem consegue segurar durante mais tempo uma cheerleader no ar com apenas um braço.

Apesar do número crescente de cheerleaders rapazes, ainda são frequentes os relatos de discriminação, preconceito, bullying, comentários jocosos e insultuosos e até maus-tratos que sofrem por escolher praticar uma modalidade ainda vista como mais adequada para raparigas. Até nesse sentido, a medida tomada pelos Los Angeles Rams e pelos New Orleans Saints pode contribuir para uma mudança de paradigma não só na NFL como em todas as modalidades – a edição de 2018 da Fórmula 1, por exemplo, viu encerrada a longa tradição das “grid girls”, as modelos contratadas para segurar as placas a identificar os pilotos nas largadas de cada corrida. Para já, em termos desportivos, a aposta das duas equipas vai dando os seus frutos: os Rams lideram a divisão NFC a oeste, com os saints a seguir em primeiro a sul.