O admirável mundo chinês do Martim Moniz

O admirável mundo chinês do Martim Moniz


A zona do Martim Moniz é uma verdadeira Chinatown. Supermercados, lojas de roupa, spas, cabeleireiros, agências de viagens – tudo feito pelos chineses para os chineses. A língua é a barreira mais evidente que separa a comunidade chinesa dos portugueses 


Basta pôr um pé no Centro Comercial da Mouraria, em Lisboa, e o cenário muda. É como entrar num mundo diferente. Quatro andares de lojas indianas, africanas e chinesas – sobretudo chinesas. Às 11 da manhã, a agitação já é geral. “Quanto custa?” é o que mais se ouve. Nos corredores já se veem pequenas mesas onde o garfo e a faca são substituídos pelos típicos pauzinhos chineses. Os trabalhadores das lojas não têm hora para o arroz chau chau e o cheiro denuncia-os. Logo no primeiro andar está uma pequena loja que só vende ganga – casacos, calças, camisas, é o paraíso da ganga. Lá dentro está Eric, concentrado no telemóvel, enquanto não entram clientes. 

Apesar de ter apenas 22 anos, é o dono do espaço. Decidiu abrir a loja por tradição. Os pais têm várias lojas e, como diz, é a vida. “Normalmente, um de nós só consegue ter uma loja, isso chega para nos concentrarmos nela e passar a vida”, conta. Em Portugal há 18 anos, Eric gosta de estar cá, tem amigos portugueses, frequentou escolas portuguesas e, agora, o seu futuro “passa por aqui”. Além disso, tem muitos amigos chineses cá, o que faz com que se sinta perto das tradições. 

Os chineses são a quinta comunidade estrangeira com mais residentes no nosso país. Em todo o território nacional há mais de 23 mil pessoas que deixaram a China e escolheram Portugal para viver. E a tendência é para aumentar, já que no ano passado se verificou uma subida de 3,1% em relação a 2016.

Tanto o Centro Comercial da Mouraria como a Rua da Palma são uma verdadeira Chinatown em Portugal. Não há zona mais chinesa do que esta. Mercearias só com comida oriental onde a única coisa portuguesa que se vê na montra é a cerveja – “só para atrair clientela”, dizem os comerciantes -, sapatarias e até um spa e um cabeleireiro, tudo direcionado para a comunidade chinesa. No cabeleireiro, por exemplo, a comunicação é muito difícil quando se fala português ou inglês. A língua dominante é mesmo o mandarim e, quando o cliente não fala o mesmo dialeto, a conversa é dada como terminada.

 

Os muros que isolam a comunidade

Passear no Martim Moniz ou na Mouraria é uma aventura e a única dificuldade é mesmo a incompatibilidade da língua. Há, de facto, um fenómeno curioso dentro da comunidade chinesa: a geração mais nova fala abertamente sobre os motivos da sua vinda, sobre gostar ou não de estar no nosso país; os mais velhos cortam de imediato a comunicação. Inês Andrade, diretora da Associação Renovar a Mouraria, refere exatamente que “os mais jovens já começam a adquirir um estilo de vida um bocadinho mais ocidental”, mas os pais muitas vezes criam barreiras. E aqui assenta a cultura de perfeccionismo que é característica desta comunidade, além de falarem uma língua que tem um alfabeto diferente. “Os chineses são tão perfeccionistas que não falam com medo de falar mal. Têm vergonha, têm uma cultura de perfeccionismo. E tudo o que eles fazem tem precisamente essa questão”, diz Inês. A Associação Renovar a Mouraria tem um jornal anual onde, neste momento, colaboram duas chinesas e, conta a responsável, já tiveram até “a história de uma família chinesa na capa”.

O jovem Eric, por exemplo, tem muitos amigos portugueses e não tem vergonha de falar. Já os pais, diz o jovem, “não têm muitos amigos portugueses, têm mais o hábito de estar com a comunidade chinesa, com as famílias, e o problema é a dificuldade em falar português”. 

A não ser para pedir informações sobre os produtos que vendem, é muito difícil saber mais sobre os chineses que vivem em Portugal. Mesmo nos restaurantes, nos chamados “chineses clandestinos” que enchem as estreitas ruas adjacentes à Rua da Palma, a comunicação entre empregado e cliente é muito difícil, quase impossível, ao ponto de o empregado dar uma caneta para o cliente escrever. Acontece com o menu, com as reservas, tudo truques para evitar a comunicação. É certo que a tendência é de mudança, mas os muros ainda são altos, sobretudo quando se fala dos mais velhos. Mas também é verdade que no país não há incentivos para aprender a falar português. Os cursos ou são pagos ou são ministrados por associações, como é o caso da Renovar a Mouraria, onde as comunidades da zona aprendem português. 

Os chineses acabam por aprender a falar português pela força do hábito, ou então nunca aprendem. Muitos estão em Portugal há mais de 20 anos e falam muito pouco. E aqui há outro fator importante. Na estrutura social, o conceito de grupo, com a estrutura familiar no lugar central desse grupo, é a característica mais marcante da sociedade chinesa. O lugar central da família reflete-se nas atividades económicas, onde se espera que os filhos ajudem na atividade dos pais e, quando estes cheguem a uma idade avançada, os filhos continuem o negócio familiar. 

Em relação aos vistos gold para Portugal, os chineses lideram a tabela. No ano passado, 538 pessoas oriundas da China obtiveram o regime especial de autorização de residência para atividade de investimento. 

Este cenário é próximo de Chen. Novamente dentro do Centro Comercial da Mouraria, na loja 230, o jovem de apenas 20 anos ajuda os pais no negócio. Não quis ir para a faculdade exatamente por causa da língua. Na escola, não gostava de português. Os verbos são o mais difícil de uma língua que Chen ainda não domina, apesar de estar no país há seis anos. Fora a gramática, tinha sempre boas notas a Matemática, conta Chen, enquanto atende uma cliente que procura um vestido de festa. 

 

“De segunda a segunda, 24 horas por dia”

A cultura da comunidade chinesa não é só de perfeccionismo, é também de trabalho. Inês Andrade refere isso como um ponto que pode prejudicar as relações sociais dos chineses em Portugal. “São comunidades que estão vocacionadas para o trabalho intenso, vivem para o trabalho. Aí têm muito menos disponibilidade para trabalhos extra aquilo que é o seu dia-a-dia laboral. De segunda a segunda, 24 horas por dia.” E quais são as consequências de tanto trabalho? Naturalmente, a falta de tempo para outras atividades. “Normalmente, os miúdos chineses não vão porque os pais estão a trabalhar e não os podem levar. São este tipo de detalhes que demonstram a falta de participação deles numa vida social mais normal segundo os nossos padrões”, explica a diretora da Associação Renovar a Mouraria. 

Mas este cenário não é regra. No último andar do Centro Comercial da Mouraria, no fundo do corredor, onde as lojas já estão despidas e só há paredes, está uma agência de viagens chinesa. Aliás, no meio de tantos carateres, só a imagem de um avião denuncia o que realmente se vende ali dentro: viagens.

Lá dentro, Tracy é uma das trabalhadoras. Escolheu um nome inglês para ser mais fácil. Mas, em relação às festas de aniversário, Tracy faz questão de levar sempre a filha a todos os eventos. “Em casa falamos chinês, na escola fala português. Ela tem muitos amigos, tem sempre os aniversários”, acrescenta. Em Portugal há nove anos, Tracy sente que os portugueses recebem bem quem vem de fora para trabalhar. Além disso, fala da comida: “Os portugueses têm comida mais saborosa, é mesmo muito boa. Em casa fazemos comida chinesa, mas quando vamos jantar fora comemos comida portuguesa.” 

Nos primeiros dois anos, Tracy não falava português, foi aprendendo com o tempo. “É uma língua muito, muito difícil. A minha filha já sabe mais do que eu”, diz. Além das festas de aniversário, a chinesa de 39 anos admite que tem muitos amigos portugueses. O esforço é grande, mas compensa.

 

Como derrubar o muro?

Na Rua da Palma, a proprietária da única mercearia que quis contar a sua história e não teve medo de falhar nas palavras enquanto conversava foi Susana. O nome é português, mas garante que é chinesa todo o ano. “Foi uma amiga minha portuguesa que me deu o nome quando vim para Portugal.” Apesar da disponibilidade para falar, Susana nunca para de trabalhar. Atende clientes enquanto fala da data lunar – outro festejo que acontece todos os anos na Praça Martim Moniz, além do Ano Novo chinês. À porta tem um jornal. “O jornal é semanal e é oferta. Nem toda a gente leva, agora tudo tem internet, telemóvel. É muito triste, mas é assim”, diz Susana. 

Fala do jornal “Sino”. Para um português, as únicas coisas percetíveis são, de facto, as imagens, mas para a comunidade chinesa em Portugal é como ter um pedaço da China cá. O “Sino” estava perto de Susana, mas mudou-se recentemente para a Expo. Cresceu, a redação aumentou e foram obrigados a sair da Rua da Palma. 

Imprensa escrita, televisão e até rádio. No “Sino” é tudo direcionado para a comunidade chinesa e para quebrar as barreiras entre chineses e portugueses. São cerca de 40 pessoas que trabalham para que tudo funcione da melhor maneira. Têm estúdios de rádio e de televisão e uma pequena redação onde também trabalham portugueses que, obviamente, têm formação em mandarim. Joana Xu é a tradutora do jornal. De dupla nacionalidade, já nasceu em Portugal e garante que o jornal é uma forma de quebrar as barreiras entre portugueses e chineses. Neste momento estão a preparar um novo conteúdo, chamado “Janela da China” que será transmitido no “Porto Canal”. O canal chinês é traduzido para português, tanto para os chineses aprenderem português como para os portugueses se aproximarem da China. O objetivo é juntar as duas comunidades.

É o admirável mundo chinês, uma espécie de segundo mundo em Portugal. As barreiras ainda são muitas – a língua, as longas horas de trabalho – e separam os chineses dos portugueses. Chegar ao Martim Moniz, à Rua da Palma ou à Mouraria é entrar no verdadeiro universo da China.