Robert Mapplethorpe. Máquinas, molduras e vestidos

Robert Mapplethorpe. Máquinas, molduras e vestidos


Resta qualquer coisa como um mês para ver Robert Mapplethorpe em Serralves, pretexto para esta reflexão sobre o seu trabalho fotográfico


Numa passagem de “Vida Tranquila”, Marguerite Duras fala de um homem que nos convida a “fazer qualquer coisa de definitivo. Talvez a deixar todo o nosso pudor, toda a nossa dignidade, como um vestido sujo”.

A dignidade, nas fotografias de homossexuais masculinos entregues a práticas sadomasoquistas que se encontram nas salas reservadas de Serralves, pode ser pensada como esse vestido que os homens tiram e põem, utilizando os códigos da abjeção imposta a mulheres (na pornografia) e aos animais (na indústria das carnes). O homem, grande despidor de dignidades alheias, é o único que pode simular a perda da sua própria, que pode divertir-se à custa dela, debruá-la, torcê-la, sujá-la, pois para ele tudo se passa no campo do jogo e da inconsequência.

O homem como ser íntegro, recoberto por uma velatura de graça (recorrendo à linguagem teológica que Giorgio Agamben traz para a sua reflexão sobre nudez), uma veste inconsútil de que nada nem ninguém poderá verdadeiramente despi-lo, faz-se à custa de uma Eva que expie todos os pecados. Ao longo da História, não apenas as mulheres, mas também os não ocidentais e os animais foram e têm sido aqueles para quem a dignidade é contingente, uma veste emprestada e a qualquer momento rasgada pela ordem patriarcal.

Segundo Agamben, o truque consiste em manter aguçados os dentes de uma máquina antropológica, mecanismo político e metafísico que produz o ser humano através de um constante labor de exclusão da animalidade. Esta máquina triturou ou absolveu, ao longo dos séculos, todos os “outros” do homem branco ocidental – apenas os animais não humanos, vida nua por excelência, permanecem ainda no limiar das oposições através das quais o homem se define.

É a partir dessa última fronteira, espreitando a abjeção animal, que as fotografias sadomasoquistas de Mapplethorpe querem ser interpeladas – e só essa pretensão justifica o medo que a sua exibição pode ainda hoje causar. Representar corpos masculinos submetidos à força e ao prazer de outrem, penetrados, pendurados por ganchos como carcaças de talho, é necessariamente subversivo no que revela de empatia para com todos aqueles que não usufruem do privilégio intrinsecamente masculino de não serem humilhados e violentados, tanto mais que advém de homens que abdicaram de uma quota-parte do seu.

Se outro magma, bem mais rico e sinuoso, se move por sob a superfície destas imagens, impossíveis de armadilhar com boas intenções e beatitude identitária, elas só existem mediante olhares sócio e historicamente situados. E hoje, em 2018, o que vemos não são já contraculturas minoritárias, marginais, cuspindo na cara da ordem estabelecida, mas uma excentricidade benévola, desprovida de qualquer ameaça ou carga política.

A moldura (ou framing, no polissémico inglês de Judith Butler) formada pelas operações de poder que determinam o que a cada momento pode ou não ser considerado uma vida e sob que condições, remete agora estes homens de volta à sossegada parede da sala de estar, sem dissimetrias, sem desarranjos. Se, por altura da retrospetiva “Robert Mapplethorpe: The Perfect Moment”, pouco tempo após a morte do artista, em 1988, o homoerotismo e o sadomasoquismo de parte da obra de Mapplethorpe traziam agarrada a pestilência da sida, fazendo com que tanto o fotógrafo como os retratados fossem remetidos a uma fantasmática comunidade de párias (havia a crença de que todos aqueles homens tinham morrido de sida em consequência do seu modo de vida, e quem os olhasse teria, por contágio, o mesmo destino), hoje, só com alguma imaginação podemos reclamar para estas imagens qualquer potência contaminadora, o que as deixa finalmente livres.

E o que temos, afinal? A experiência visual de 2018, fabricada por contingências históricas e transações de poder diferentes do que eram há mais de 30 anos, facilita um reconhecimento: trata-se ainda e sempre da glorificação do corpo masculino, favorecida pela limpidez formal de Mapplethorpe – que proporciona a todos os seus temas, sejam eles corpos anónimos, celebridades ou flores, o tratamento apolíneo que remete para uma ideia de Antiguidade Clássica -, por oposição à dessacralização de mulheres e animais operada ainda e sempre pelo simbólico, pela linguagem, pela publicidade.

Aqui, é por referência à misoginia enquanto elixir sexual e à redução do animal à condição de vítima – corpos de uma inocência que, “pela inexorável lógica que governa todos os termos relacionais, sugere culpa” (Susan Sontag) – que a gloriosa humanidade destes homens se produz. Dir-se-ia, regressando à metáfora fornecida por Duras, que é preciso possuir um sentido entranhado de dignidade para se arriscar perdê-la, como uma rapariga que no calor da brincadeira rasga o vestido.