“Dies Irae” – O dia da ira


Em Portugal, quando se aborda o bem e o mal, o certo e o errado, um dos vícios de raciocínio frequentes é confundir religião com moral, moral com ética e com as regras de conduta social


No noite de domingo fiquei espantado – como se alguma coisa ainda pudesse espantar-me, designadamente nas eleições brasileiras, um momento “mais do que Tiririca” –: a celebração de uma mini-missa da IURD em direto, com o eleito presidente do Brasil no centro das atenções, agradecendo a Deus (e, vá lá, aos médicos… mas a estes por Deus os ter lá colocado) tudo e mais alguma coisa, de ter escapado à facada com que foi atingido até ter sido eleito. Nunca vi uma coisa assim num país laico e pensei imediatamente no “Dies Irae”, um trecho curto mas muito intenso do “Requiem” de Mozart. “Dies Irae” – dia da ira – é um hino em latim que vem do séc. xiii, atribuído a Tomás de Celano e usado por muitos compositores, sempre de submissão à ira divina: Deus e o poder divino, e a culpa da existência do Homem, tendo de Lhe agradecer tudo e mais alguma coisa, a tal inerente culpa que tem enchido a nossa moral. Culpa por tudo e por nada. Culpa por existir.

A moral e a cultura da Europa foram muito influenciadas pela moral provinda do judaísmo e do cristianismo. Com tudo o que isso também tem de bom, de sentirmo-nos mal ao fazer as coisas mal, ao termos em atenção os outros, ao entendermos que os nossos atos podem ter consequências.

Todavia, quando se aborda o bem e o mal, o certo e o errado, um dos vícios de raciocínio que frequentemente se tem, por exemplo no nosso país, é confundir religião com moral, moral com ética e com as regras de conduta social. A religião, nomeadamente a religião católica (falo desta por ser maioritária no nosso país, mas a minha opinião aplica-se a qualquer uma), poderá defender princípios morais e sociais indiscutivelmente democráticos e humanistas – não é isso que está em causa. No entanto, já não é líquido que a inversa seja verdadeira, ou seja, que para defender esses princípios se tenha de ser católico ou professar uma religião.

Mais: causa espanto, para não dizer que é um autêntico abuso, conotar ética com catolicismo, como se chega a fazer por exemplo ao nível das comissões de ética, seja dos hospitais, seja de outras instituições. A ética não é propriedade exclusiva de nenhuma religião nem de ninguém. Assumir que uns são automaticamente os “puros” (e que, portanto, podem fazer toda a espécie de malandrices que estarão perdoados) e que outros, os “sem alma”, teriam à partida um handicap e só através de muito esforço alcançariam o “perdão” é uma atitude repugnante e de inaceitável arrogância intelectual. Creio (ou espero… se calhar é melhor usar este verbo), no entanto, que este tipo de pensamento, que poderá existir ainda nas gerações mais velhas, seja já um assunto resolvido nos mais novos, nascidos e criados num ambiente democrático, o que não aconteceu com os outros, que viveram a infância e a adolescência envoltos no “cheirinho a Igreja”, como escreveu Eça de Queiroz em “A Relíquia”.

Muito mais importante do que as opções religiosas de cada um, as quais deverão permanecer no foro da intimidade e da privacidade, importa no entanto veicular – através do exemplo, da vivência e da educação – princípios e valores humanistas, numa salutar convivência democrática. Mais importante do que ir à missa ou rezar o pai-nosso é aprender a respeitar os outros, seja a que nível for, prescindindo de comportamentos arrogantes e de superioridade. Mais importante do que se dizer católico, budista ou protestante, é sentir que o destino dos outros e da sociedade em geral não nos é indiferente e que temos a obrigação de contribuir para o bem comum. Quantas vezes estas noções, básicas e fundamentais, são esquecidas na educação das crianças para dar lugar a uma série de símbolos, rituais e liturgias que não passam muitas vezes, afinal, de modas ou de “branqueamentos” da consciência para se repetir, no dia seguinte, com toda a displicência, atitudes e comportamentos que negam aquilo em que se diz acreditar? Não será este tipo de vivências e exemplos, pejados de incoerências e inconsistências, que influenciarão negativamente os mais novos?

Tenho visto, por exemplo, nos últimos anos, práticas de colégios assumidamente confessionais que dariam, (quase) caricaturando, um passaporte direto para o Inferno. A superioridade moral e a arrogância de quem julga ter a caução de Deus chega a níveis insuportáveis, como é também discutível a inclusão de disciplinas de ensino religioso na escola pública e laica, mesmo que opcionais e fora do horário letivo.

A confusão entre a laicidade e as opções religiosas observa-se em todo o lado: se se fala de defesa da família é-se conotado com a direita e o catolicismo. Confunde–se matrimónio (um sacramento) com casamento (um ato civil); defende-se que padrinhos, só se houver batismo.

Creio que todos ficaríamos melhor – ateus, agnósticos, crentes e, dentro destes, os das religiões monoteístas e das outras – se fosse clara e evidente a separação entre a vida civil e as opções religiosas… e, já agora, se não se confundisse também religião com espiritualidade, filosofia, ética, humanismo, encantamento, estética ou contemplação.

Termino sugerindo aos leitores que ouçam, quando puderem, um magnífico trecho do “Gloria” de Vivaldi, mas que assenta bem a todos, crentes, agnósticos ou ateus, católicos, protestantes, anglicanos, muçulmanos ou judeus. Animistas ou testemunhas de Jeová. A todos. “Et in terra pax hominibus”. Que haja paz na terra… pouco importa aquilo em que acreditamos, em termos de religião, e que deve apenas dizer respeito à nossa pessoa, à nossa intimidade.

“A César o que é de César, a Deus o que é de Deus” – acho que já ouvi isto em algum lado e parece que foi dito por alguém cujo nome tantos invocam em vão… e os tempos nunca estiveram tão assustadores, curiosamente quando tantos voltam a invocar os fervores religiosos culpando os que consideram incréus, ateus ou agnósticos por aquilo que foi uma evolução democrática e filosófica da humanidade. Aguardemos o que se vai passar, mas eu, otimista militante, sinto ventos gelados a aproximarem-se, e não é do anticiclone dos Açores…

 

Pediatra

Escreve à terça-feira