Meio século, um pouco mais, faz um bom tempo desde que nos foi apresentado um verdadeiro protagonista nesse cada vez mais espantoso filme de Fernando Lopes. Belarmino Fragoso, um antigo pugilista, com aquele cheiro de sonho e desespero misturados, mais intenso a cada golpe trocado com o cineasta, no “duelo subterrâneo” que foi a fita de 1964. O tipo da Mouraria que puxava lustro aos melhores sapatos nos Restauradores já só tinha a evidência da derrocada, sendo certo que podia ter sido “um dos melhores da Europa”, vê-se devolvido à miséria. Deu tudo à “nobre arte” do boxe, como se lhe referia, e depois de ter sido campeão nacional e ter vencido no estrangeiro alguns dos nomes mais sonantes da modalidade, foi enganado pelo manager, e acabaria por morrer como servente de um estabelecimento prisional de Lisboa, em 1982. E se podia ter sido outra dessas lendas ou epigramas no rodapé da vida lisboeta, continua presente, e como notou João Bénard da Costa, a sua lição mantém-se tão útil como antes: “A de que o respeito por cada um implica o respeito também pela sua mentira, que é a consequência moral do respeito pela sua liberdade”.
Meio século, um pouco mais depois, do mesmo barro, surge-nos um outro protagonista, igualmente impactante. Talvez menos trágico, mas não menos admirável. Na nobreza discreta que o distingue, Albertino Lobo surge-nos como esse herói calmo que, sem nunca ter lido Rudyard Kipling, com a pacatez dos seus gestos, a nublada tensão perscrutadora do olhar, parece recitar mudamente alguns dos versos do mais célebre do poeta britânico, levando-nos a acompanhar o seu drama inspirados pela sua força serena.
Este pescador que vive com a família numa antiga comunidade piscatória à beira do Tejo era há anos um conhecido de Leonor Teles. E antes mesmo do furor que se seguiu à inesperada vitória em Berlim – tendo a sua segunda curta (“Balada de um Batráquio”) sido distinguida com o Urso de Ouro, em 2016, fazendo dela a mais jovem vencedora de sempre do prémio -, já a cineasta se havia decidido quanto ao protagonista do documentário dedicado à sua terra, Vila Franca de Xira. E declarou, numa entrevista concedida ao jornal “Público”, que esta primeira longa acabou por “protegê-la” dos potenciais efeitos nocivos de um prémio tão mediático: “Comecei a rodar em Outubro de 2015, estava em plena rodagem quando a Balada ganhou Berlim. Se não o estivesse a fazer, poder-me-ia ter sentido um bocado perdida, do tipo ‘o que é que eu faço agora?’ Mas como já sabia o que ia fazer, simplesmente continuei a fazê-lo.”
Se era previsível que o sucesso daquela curta poderia assombrar Leonor Teles, sendo evidente para quem a viu que a sua “frescura irreverente” não seria o suficiente para fazer cair sobre ela uma espécie de maldição – como uma promessa feita em seu nome por outros -, é também notório que, com a abordagem paciente, até comovente de tão respeitosa que faz neste documentário, a escolha do seu protagonista prova que tem um sentido claro dos seus limites, tanto quanto a uma capacidade de fazer algo mais do que andar à procura de coitadinhos, de vítimas de injustiças. E isto para entregá-las a esse vício contemporâneo para um consumo de enredos que puxem pela corda da nossa piedade, e, assim, nos levem a sentir-nos melhor com nós mesmos. Por isso, este pescador e a sua vida não são uma tábua de salvação para a cineasta, como também não há propriamente um duelo, antes uma combinação perfeita entre uma história humana e a competência igualmente humana para a contar.
Fosse “O Velho e o Mar” um documentário, o velho nem tão velho nem tão só, e fosse o mar um rio, teríamos não uma analogia, mas um paralelo firme para o que a cineasta conseguiu neste retrato da vida de Albertino e da sua família. Acompanhamos, pois, no decorrer das quatro estações, o quotidiano, que inicialmente nos parece duro, austero, para logo se nos tornar próximo, como se também nos sentássemos à mesa com a família Lobo. E rapidamente fica claro que esta não está ali como cordeiro sacrificial para proporcionar-nos piedosas contemplações.
Se Albertino enfrenta uma ameaça ao seu meio de sustento, depois de lhe ser retirada a licença de pesca, sem que seja percetível a inflexão, o documentário ao invés de espremer o drama, mostra-nos como a rede familiar é o bastante para segurar um homem. Ali, onde a resistência torna os homens paisagem, não há da parte deste protagonista sinal de desespero, nem a sua resignação se confunde com um cruzar de braços, mas torna-se evidente como a própria dureza do ofício fez dele um sobrevivente, alguém que sabe como a vida se ganha, e como, à semelhança das marés, basta deixar que a um dia suceda o outro.
O homem que concerta as redes com aquela perícia que nos lembra o apuro artístico adquirido sem se pensar nisso, repetindo mil vezes a mesma acção, Albertino não busca o seu grande peixe, não está em causa uma lenta e desgastadora batalha, assumindo contornos épicos, mas o fio que mantém seguro não deixa de ser o da própria vida, e tal como Santiago (o protagonista do livro de Hemingway), também dele poderíamos ouvir essa frase: “Um homem pode acabar destruído, mas não vencido”.
Com a retidão própria de quem não passou a vida a deixar-se abalar pela insatisfação contemporânea, a ideia de que devia ter feito mais da sua vida, devia ter tentado dominar algum sonho, naquele rio como em terra, na maior distância do seu barco, Albertino adquire o perfil de um verdadeiro herói. Homem de uma bondade natural, que ama os seus e gosta de os ter junto a si, se em terra parece pequeno, um rapaz envelhecido, no rio os olhos são os mais castanhos, o próprio resto é de um barro seco, como se envolvesse um ícone, e é então que ressalta um vigor no tal rapaz que traz o silêncio habituado às imortais intrigas do mar. E se o novo mundo se desfez de tal modo do velho que ameaça não ter amanhã, se está a erodir o seu modo de vida, Albertino parece saber que aquilo que o ameaça, não é uma injustiça pessoal, mas algo como a fome. Quando uma das filhas lhe pergunta se alguma vez passou fome, ele diz que não, e depois lembra-a de que a fome não é coisa pela qual passemos, mas algo que passa pelos homens. Se a diferença é tão subtil que pode parecer negligenciável, serve-nos de chave para perceber como este homem aprendeu a humildade, e tal como Santiago sabe que esta não carrega menos orgulho do que outras, mais arrogantes, atitudes.
A lição que nos oferece este documentário passa por nos fazer ver a humildade como uma forma de sustento humano, essa que compreende os limites do que um homem é capaz de fazer e suportar sozinho, e o quanto “o seu ser, o valor e humanidade do seu ser, depende de uma comunidade com os outros e com a natureza”. Isto foi escrito por uma crítico nas páginas do “Times”, em 1952, o ano em que “O Velho e o Mar” foi publicado.
Com “Terra Franca” é Leonor Teles quem se liberta das redes que sobre ela foram lançadas, da imagem de “miúda reguila”, um filme que a ocupou durante três anos (um para a preparação, outro para a rodagem e mais um para a montagem). E se, aos 25 anos, o domínio dos aspetos técnicos (particularmente ao nível da fotografia) são demonstrativos de uma perícia invulgar em alguém tão novo, o que há de prodigioso neste filme é a clareza da visão de uma realizadora que, sendo jovem, não se deixa abalroar por sonhos nem grandes promessas.