Tomás Taveira. “Sou modesto. Mas tenho pena que não haja dez Taveiras em Portugal”

Tomás Taveira. “Sou modesto. Mas tenho pena que não haja dez Taveiras em Portugal”


Primeira parte de uma grande entrevista de vida ao polémico arquiteto depois de décadas longe dos holofotes. A segunda parte será publicada na edição de segunda-feira  


Ao fim de décadas sem dar uma entrevista, Tomás Taveira aceitou receber o i no seu ateliê na Avenida da República e abrir a sua vida. Falou de tudo, mesmo dos episódios mais polémicos. O homem que nos últimos anos nem sequer olha para as Amoreiras e que acha que Portugal só tinha a ganhar se houvesse 10 arquitetos como ele garante que é preciso fazer cidade – algo que já não se faz desde o edifício do BNU, desenhado por si. Descrevendo-se como um arquiteto barroco e um homem simples, garante que está longe de estar morto. E justifica-o com os seus novos projetos.

Há muitos anos que não dá uma entrevista. Porquê?

É difícil responder. Resposta mais fácil: ninguém me pediu entrevistas.

Sabe que não é bem assim…

Já me tinha pedido e eu não respondi? Então peço desculpa (risos). Durante muito tempo não senti necessidade de me afirmar. Quando uma pessoa dá uma entrevista projeta um pouco do seu espírito, um pouco da sua cultura, um pouco do seu desejo de viver, daquilo que pensa do ambiente geral da sociedade. Depois há ainda uma outra razão: durante 15 anos, aproximadamente, não vivi em Portugal. Eu regressei há dois ou três anos. Vivi fora estando aqui: os projetos que tinha eram no Dubai, na Rússia, no Cazaquistão, na Argélia, no Brasil, em Angola, um inferno. Ficava dois ou três dias a comandar o ateliê, depois saía e voltava, estava mais oito dias e tinha de dar assistência à família – pouca, mas dava. E por isso vivi desligado do país, não desligado do ponto de vista da relação de cidadania, sei quem são os ministros – pelo menos aqueles que merece a pena, porque há uns gajos que não sei onde é que o Costa os foi desencantar… Conheci António Costa na barriga da mãe, trabalhava eu com o Teotónio Pereira na Rua da Alegria, nº 61, e a Maria Antónia morava com o Orlando da Costa no prédio em frente, portanto fui assistindo ao evoluir da barriga. Sempre tive boa relação com ela e com o Orlando da Costa. Ele era uma pessoa muito rígida, do PCP, e sabia que eu não era do PC. Hoje isto está tudo atenuado, um é PC, outro CDS, mas as pessoas não se ofendem, não se magoam, não se afastam, não criam barreiras. Mas naquela altura era diferente…

Polarizado?

Sim, havia um bocadinho disso. O Orlando da Costa escreveu um livro que se chama “Podem chamar-me Eurídice”. Naturalmente passado na clandestinidade. Não sei se sabiam – aliás nem sei se o Costa sabe… (risos), há muitas coisas que os pais fazem que os filhos acabam por não saber. Mas vale a pena ler esse livro.

Voltando à questão que lhe tinha colocado, porque decidiu agora dar uma entrevista?

Neste momento sinto necessidade de mostrar que estou vivo, que, além de vivo, estou mais operacional do que estava antigamente, porque agora já não tenho filhos a chatearem-me e os netos estão longe. O meu último neto vive nos Açores, é um puto fabuloso.

É o bebé que está ali naquela fotografia pendurada?

Não, aquela é a minha filha, que hoje já tem 44 ou 45 anos. Deixei de pôr mais fotografias porque me disseram uma vez que dava azar e se formos ver aqueles filmes em que há grandes confusões metafísicas metem sempre fotografias e coisas esquisitíssimas.

É supersticioso?

Completamente. Entro sempre com o pé direito, é uma superstição clássica, porque em miúdo a minha mãe disse-me para o fazer. Sabem de onde vem isto? Vem da velha tradição marxista da esquerda, não se podia fazer nada com a esquerda, porque podia denunciar uma inclinação. Mas tenho uma filha que é canhota e é feliz (risos) e nunca a contrariei, achei sempre giríssimo até.

Qual foi o momento em que começou a sentir que precisava de se afirmar?

Realizei muito recentemente que as pessoas não sabem quem eu sou.

Quem é que não sabe?

As pessoas não sabem. Uma coisa é saberem que há uma pessoa que fez as Amoreiras e que se chama Tomás Taveira outra é colar esse nome a uma imagem.

E não colam hoje em dia?

Não colam. Durante uns tempos largos tinha de ir a casa dar comida a um gatinho – eu tenho uma afinidade muito grande com os gatos, com cães também, mas com gatos é outra coisa. Ia sempre de metropolitano e ninguém olhava para mim. Noutros tempos até vinham pedir-me autógrafos. Quando eu realizei isto, colei esta circunstância a dois fenómenos. O primeiro foi a distância que eu mantive em relação ao país. O segundo é a alteração que se deu nos agentes económicos e nos agentes imobiliários. E na nova estrutura que comanda a construção na cidade. Hoje quem comanda a construção da cidade são os fundos [de investimento], que querem metros quadrados para vender a brasileiros, a etíopes, a chineses. Estão-se nas tintas para fazer cidade. Se pensarem bem desde as Amoreiras até hoje quais foram os edifícios construídos que fizeram cidade? Chegam a Nova Iorque têm Times Square, fez-se cidade. E aqui?

Com o Parque das Nações não se fez cidade?

Não, fez-se urbanismo. Fazer cidade não. Lembra-se de algum edifício no Parque das Nações? Lembra-se é de montes de edifícios que estão ali. Fazer cidade é aquilo que Sisto V fez em Roma traçando a velha Roma dos Papas e em cada cruzamento das avenidas que ele mandou abrir colocou ícones, um deles a Igreja de São Pedro. Isto é fazer cidade.

E a intervenção na Ribeira das Naus não é fazer cidade?

É uma boa pergunta. Fazer cidade é criar acontecimentos na cidade que sejam absorvidos como ícones pela sociedade. A sociedade identifica-se com a cidade através de ícones, não através de acontecimentos que são epifenómenos. Se for perguntar a meia dúzia de turistas – não à Madonna porque essa é pedra – contarão que gostam de andar aqui ou ali, não saem da Mouraria, do Chiado… Porquê? Porque se identificaram com aquele pedaço de cidade. Mas não é nada de verdadeiramente novo. Eu fiz o BNU, que foi eventualmente o último ícone da cidade de Lisboa. Fizeram-se duas torres na Avenida José Malhoa…

As Twin Towers.

Sim, não se fez cidade. Se eu lhe disser ‘desenhe aí as Twin Towers’ você não sabe, são duas torres que estão ali. Fazer cidade é carregar de significado certos pontos da cidade através de ícones e os ícones da cidade são basicamente ou grandes fontes ou edifícios. A Fonte Luminosa fez cidade. Toda a gente atacou, mas hoje a malta cala-se e não diz que foi o Salazar que a construiu, porque os comunistas e toda a malta vai para lá fazer festas e não interessa dizer isso. A Fontana di Trevi, um acontecimento, não é? Trinità dei Monti, aquela escadaria toda com a igreja lá em cima. Isto é fazer cidade. Aqui não, isso não aconteceu.

Porque é que na sua opinião não se está a fazer cidade?

Fundamentalmente toda a atividade económica saiu das mãos dos investidores, como a família Martins, que fez dois mil e tal fogos nas Olaias, mais não sei quantos quilómetros quadrados de escritórios e de comércio. Esta energia perdeu-se. Quando eu era miúdo quem fazia cidade eram os tomarenses, nunca investiguei porque chamavam tomarenses àquela malta toda que via a construir aqui na Praça do Chile, na Carlos José Barreiros, uma arquitetura característica fundamentalmente feita pelo Cassiano Branco, que era o rei dos patos bravos (risos) mas fazia uma arquitetura fabulosa. O primeiro ateliê que eu tive sozinho foi aqui na rua em frente, na Avenida Defensores de Chaves, num prédio desenhado por Cassiano Branco. Foi para mim uma glória. Hoje os fundos absorveram tudo quanto era crédito imobiliário mal parado, talvez um milhão de falências que envolviam créditos sobre imobiliário, que passou para a banca. A banca rapidamente colocou nos fundos para não pagar impostos, pelo menos durante três anos, e os fundos vão buscar um arquiteto ou uma arquiteta amiga, que pega no edifício, mete-lhe umas cozinhas novas, vai ao IKEA e compra dois sofás e um candeeiro, pinta tudo e engraxa a fachada e vende por uns milhões. Não é pela qualidade do que vende, mas pela pressão do mercado.

Acha que já podemos falar de uma bolha?

Já está no ar, tinha de ser.

Acha que se deve fazer cidade onde já existe cidade ou deve fazer-se apenas onde ainda não existe?

Devo dizer-lhe que fazer cidade é uma questão ética e artística e de energia dos donos da câmara, de quem lá manda. Pode levar dois ou três investidores, que têm uns quantos prédios e dizer: ‘Vocês vão-se juntar todos porque eu quero uma coisa a sério’. Mas essa energia não existe porque as próprias forças camarárias estão prisioneiras dos fundos. Os fundos têm um poder incomensurável. Querem ver um exemplo? Têm aqui nas Picoas um edifício, eventualmente o pior edifício do mundo. A história daquele objeto é simples: o primeiro projeto feito para ali foi feito por mim, no tempo em que aquilo era do Banco Português do Atlântico. Depois esteve parado durante uns anos e o banco não andou com o projeto e a dada altura aquilo aparece nas mãos de um senhor chamado Armando Martins que é dono, ou pelo menos tem muitos shares aqui no Atrium Saldanha. O Armando Martins, que é meu amigo há 50 anos ou mais, foi à câmara e deram-lhe autorização para fazer 12 pisos. Mas ele queria 14 pisos. E andaram neste impasse até que Armando Martins teve de entregar o terreno ao banco. Ficou sem o terreno, devia dinheiro, não sei se pouco ou muito.

Haveria uma hipoteca…

De certeza, teve de entregar, porque não lhe deram possibilidade de ele fazer dinheiro para pagar e ainda ficar com algum.

Mas esse não era um projeto seu, pois não?

Não. No meio eu fiz de facto um projeto para um luso-brasileiro, que vive em Santos, no Brasil, que queria deixar uma marca em Lisboa – há indivíduos assim, ‘maduros’ – e então eu fiz para ali um projeto, aqui para nós, espetacular.

Mas fez um projeto numa altura em que o terreno ainda era de Armando Martins?

Sim, ele ficou agastado e até me ligou a dizer: ‘Quem é que te deu autorização para estares a fazer projetos para um terreno que é meu?’ Eu respondi-lhe: ‘Armandinho, tu que és um indivíduo muito profissional não sabes tudo. Qualquer pessoa em Portugal pode meter um Projeto de Informação Prévia (PIP) para qualquer terreno’. É que antigamente para se meter um projeto tinha de se fazer prova de que se era dono do terreno. O brasileiro português foi à câmara – eu dessas coisas privo-me porque já sei que não dá – e foi-lhe dito que não. Não sei se o brasileiro ficou triste ou alegre mas desapareceu, deve ter ido para Santos.

Em que ano foi isso? 

Em 2013 ou 2014. É algo recente. 

Mas entretanto houve desenvolvimentos.

Sim, houve um fundo que comprou o terreno, ou melhor, que foi buscá-lo ao banco. O fundo é o ECS (António de Sousa e outros gajos assim pouco importantes) e o edifício ficou com aquela altura! 

Para si a altura não é um problema, mas porque acha que era quando apresentou o seu projeto e hoje não?

Para mim até pode ter o dobro. O problema é que o Armando Martins foi à falência porque o obrigaram a fazer 12 pisos e a seguir aparecem 18.

Porquê?

Olhe, porque há alguém que manda. 

Tem havido muitas vozes críticas ao trabalho de Manuel Salgado. Acha que esta torre traz problemas à cidade?

Não traz problema nenhum, 90% das pessoas que ali passam nem olham para lá. É um edifício anónimo. Não se fez cidade, fez-se um edifício. Por exemplo, o Sheraton quando apareceu fez cidade. Saiu de lá uma coisa fabulosa que era o hotel Avis, onde vivia o senhor Gulbenkian, que eu vi muitas vezes. A minha avó tinha uma adoração por ele e levava-me a passear para ali, para as grades – não entrávamos porque éramos malta de segunda, operários. Só para ver o senhor Gulbenkian. 

Andava sempre impecavelmente vestido, não era?

E sempre da mesma maneira, a estátua que está ali em baixo retrata perfeitamente o senhor Gulbenkian. Eu ando sempre mal vestido – hoje por acaso vim um bocado mais bem vestido porque vocês vinham cá. A minha mulher costuma dizer: ‘Você parece um sem abrigo’. (risos) Mas estava a falar daquele edifício [das Picoas]. Fazer cidade não é uma questão de tamanho. A Gioconda é uma coisinha deste tamanho, mas… A capela Sistina é aquela coisa enorme mas depois tudo se resume a duas imagens. A arte não é uma questão de dimensão, fazer cidade não é uma questão de dimensão, é uma questão de intencionalidade, de valor artístico.

Ali não há arte?

Há a arte de não fazer arte.

Mas a cidade não precisa desses edifícios mais anónimos? É porque se não às tantas era…

Um museu, era um museu de arquitetura. Claro que é impossível, mas é preciso fazer cidade. O que está a acontecer é que a cidade está a ser mumificada.

Acha que há uma espécie de embalsamento?

Nem mais, os edifícios estão a ser embalsamados: mete-se uma cozinha, uma casa de banho, umas canalizaçõezinhas um bocadinho melhores, engraxa-se a fachada, enverniza-se e já está. É como quem engraxa um cadáver e o empacota.

Mas não podemos esquecer que esses edifícios estavam altamente degradados…

Os que estavam. Eu vou contar a história que penso que seja a origem desta ideia de manter a fachada. Um dia, há muitos anos, eram duas ou três da manhã eu estava no gabinete do antigo presidente da Câmara de Lisboa, Nuno Krus Abecassis, e estava também um outro arquiteto com um cliente. O outro arquiteto disse qualquer coisa e o Abecassis, já cheio de sono, dá uma palmada em cima da mesa e diz: ‘Conserva a fachada!’ E o projeto foi aprovado com o ‘conserva a fachada’. A partir daí é a regra: conserva a fachada.

Foi o início.

Se calhar naquele caso até era de conservar a fachada, mas o problema é que se transformou em lei. Porque carga de água é que se quiser fazer uma coisa naquele edifício ali em frente tenho de conservar aquela fachada nojenta? Os fundos querem negócios e não chatices, e interessa-lhes aprovar o mais rapidamente possível. Nenhum fundo me encomenda projetos. No outro diz entrou-me aqui o Ricardo Oliveira, que eu adoro, e disse: ‘Oh Tomás, tu que estavas a fazer uma coisa para o Abel Pereira da Fonseca, para a Fundação Maria António Barreiro, empresta-me o projeto porque tenho aqui uns gajos para comprar.’ Eu emprestei o projeto. Passado uns dias ligou-me e disse que eles queriam conservar aquela porcaria toda. ‘Eles quem?’, perguntei. ‘Um fundo que quer comprar’.

E não há locais, como a Baixa ou bairros típicos, em que os edifícios antigos devem ser preservados para que não se quebre a harmonia nem se perca a história?

Principalmente nesses lugares era preciso fazer cidade, para criar cultura. Para os jovens como vocês perceberem o que é a arquitetura. Os vossos filhos não vão perceber o que é a arquitetura, pensam que é aquilo que ali está.

E não é?

Há uma fronteira difícil de delimitar. Eu fiz uma vez um projeto para uma aldeia alentejana, para o irmão do meu ex-sogro. Era tudo em aço. E foi aprovado. O presidente da Câmara disse: ‘Eu quero conhecer esse louco’. E lá fui almoçar a Mértola com o presidente da Câmara e com o dono do terreno, que acabou por não construir.

Porque fez o projeto em aço?

Para criar uma rotura, precisamente na fileira, correnteza de casinhas alentejanas e dar àquela cidade uma nova noção do que era arquitetura, algo de diferente que os levasse a pensar. Os velhos de 80 anos que estão lá à sombra? Sim, esses também. Como é que se aprende, como é que se dialoga e se dialoga com a cidade? Hoje quem dialoga com a cidade são eventualmente os turistas. Estão aqui todos contentes porque têm sol, boa comida, boa bebida e 30 variedades de cerveja. 

Disse já que passou muitos anos a trabalhar fora. Foi empurrado ou foi uma opção?

Aconteceu. Com o Euro 2004 fiquei um bocado famoso pelo mundo todo. Mas se o Sócrates não tivesse conseguido com o Carlos Cruz trazê-lo para cá eu tinha perdido uns milhões, porque pus o dinheiro e só fui pago a seguir. A partir daí comecei a ser chamado, e uma coisa puxa a outra. Comecei pelo Brasil, Angola e acabei por ir parar a São Petersburgo, onde ganhei o concurso para o estádio do Zenit – depois disso o primo do Medvedev tirou-me o projeto para entregar a um japonês que, coitado, morreu dois meses depois. Agora fiz um Palácio do Gelo no meio das montanhas no Cazaquistão, que é uma coisa deliciosa.

O que é delicioso, o Cazaquistão ou o palácio?

O Cazaquistão eu não conheço. Das cidades só conheço as ruas e quando há museus conheço os museus. Fui mais de 50 vezes a São Paulo, mas não conheço São Paulo.

Como arquiteto não gosta de ver as cidades e os seus edifícios?

Dos táxis, dos carros que nos transportam a gente vai vendo a cidade. Só houve uma vez que fui ver o Parque Ibirapuera e diverti-me à grande. Encontrei lá uma data de estudantes que descobriram que eu era arquiteto e perguntaram-me o que estava lá a fazer. Quando disse que estava a fazer o estádio do Palmeiras responderam: ‘Do Palmeiras, a gente mata-te já, porque nós somos corinthianos’. Depois fiz o estádio do Corinthians, que não andou para a frente. A seguir veio a Argélia, fiz um complexo grande para Batna que não andou para a frente porque a Argélia entrou em crise como o terrorismo e resolveram guardar o dinheiro todo para balas e levar também algum para casa. Estava a fazer uma cidade olímpica que estava quase pronta.

Quando faz um projeto para a Argélia, para o Cazaquistão ou para o Brasil molda-o a cada realidade ou qualquer um que lá chegue percebe ‘isto é Taveira’?

Depende, há projetos mais e projetos menos característicos, mas quem estiver consciente da arquitetura que estou a fazer no momento reconhece. Eles têm a arquitetura deles, nós a nossa. Se quiserem a deles vão buscar um arquiteto deles. Até hoje não me tenho dado mal. Algum dia que me dê mal dou um murro e acabou a conversa. Não há mais nada a fazer. E estou preparado para morrer amanhã ou depois, não tenho qualquer relação esquizofrénica com a morte.

Sente que já fez tudo o que queria ter feito na vida?

Eu nasci numa família muito pobre, o meu pai era agulheiro na Carris, a minha mãe era doméstica, o meu avô materno tinha sido morto pelo Salazar na célebre leva da morte em Badajoz – tinha sido um dos fundadores da Carbonária. Pelas fotografias parece-me um gajo porreiro, mas nunca o conheci. Tenho uma mãe muito presente (o meu pai trabalhava muito na Carris e a fazer biscates) e que foi quem me ensinou a 4.ª classe.

Não ia à escola?

Andei na escola n.º14 no Largo do Leão. Mas não tinha saída, porque o liceu era caríssimo e a única hipótese era a escola industrial (a comercial não me dizia nada), depois queria fazer uma carreira na Marinha mercante. A saída que eu tinha era ir para marinheiro. Depois da primária, fui fazer dois anos de ensino preparatório (na Escola Pedro Santarém) e queria ir para a escola Afonso Domingues, mas a minha mãe achou um ambiente de cortar à faca. Com isso fui para a escola Marquês de Pombal, ao pé do largo do Calvário. Aí tirei o curso industrial e, como o meu pai era da Carris, beneficiava do facto de esta dar preferência aos filhos dos funcionários. Por isso havia dinastias.

E em criança já tinha jeito para o desenho?

Desde miúdo que desenho muito bem. Qualquer tipo de coisa. E isso entronca no que vou dizer. Eu morava no n.º 2 do Largo do Leão e no n.º 4 morava o indivíduo que fazia os cenários do Monumental. Um grande amigo que faleceu há três anos, o Joaquim Pereira – o preto mais bonito que vi na minha vida. Era perfeito. A dada altura ele namorava com uma rapariga, a Helga Liné – uma loira que não sei se era de ascendência germânica, mas que falava muito bem português. Durante as férias eu ia para o pé do Joaquim Pereira enquanto ele estava a pintar e um dia a Helga Liné pergunta-me o que é que eu quero ser na vida. A minha resposta foi: ‘Marinheiro’. O Joaquim Pereira responde: ‘Tu não vais ser marinheiro, tu vais ser arquiteto porque desenhas melhor do que eu”. ‘Arquiteto?’, perguntei. Nunca tinha ouvido falar na palavra arquiteto. O que é facto é que depois ele arranjou-me um ateliê para eu praticar quando saía da Carris.

Que idade tinha?

Nesta altura tinha 14 anos. Estive na Carris até aos 18 anos. Depois fui para moço de recado de dois arquitetos muito famosos: o Formosinho Sanchez, que fez o Bairro das Estacas com o Rui de Atouguia, e o Maurício de Vasconcelos, que fez aquela casa na Gago Coutinho. E eu ia para lá para comprar o lanche e o petróleo para o aquecimento. E eles deixavam-me fazer uns desenhinhos. 

Encorajavam-no a desenhar?

Não!

Toleravam?

Nem isso. Eu era um corpo estranho, era o gajo que estava ali para afiar os lápis, para ir comprar o lanche, para atender o telefone se não estivesse lá ninguém. Nunca me ligaram nenhuma. O que é facto é que fui evoluindo e comecei a perceber que tinha de ser arquiteto. Porra, o Joaquim Pereira diz que tenho de ser arquiteto, eu tenho de o ser! Depois trabalhei como desenhador para tudo quanto era arquiteto bom em Lisboa. Era famoso como desenhador: trabalhei como o Alçada Batista, com o Laginhas, com o Teotónio Pereira, com o Portas, com essa gente toda. Quando entrei para a faculdade estava a trabalhar com o Portas. Houve um conjunto de acasos que aconteceram na minha vida e que me foram empurrando. Por isso costumo dizer: ‘Eu não vivi, a vida foi passando por mim’. Nada foi construído, foi tudo por acaso.

Não foi planeado?

Acabei o curso tarde, porque não precisava de ter curso. Tinha muito trabalho no Conceição Silva, tinha acabado de casar – tinha de montar casa –, a minha mulher estava grávida da nossa primeira filha. Mas a arquitetura foi-se tornando cada vez mais importante para mim e estudava que nem um louco – mas que nem um louco! – e candidatei-me a uma bolsa da Gulbenkian. Foi uma sorte brutal porque um dos gajos que decidia as bolsas era meu professor e o outro tinha estado comigo na tropa em Santarém.

Onde conheceu Herberto Helder…

O Herberto Helder e o Fernando Assis Pacheco. Eles eram super-amigos e eu… Eu fui sempre um personagem menor. Nunca fui o centro das atenções.

Isso incomodou-o nalgum momento ou trouxe-lhe alguma desvantagem?

Desvantagens terá trazido, como se vê agora. O governo entrega tudo ao Souto Moura e ao Siza e não entrega a mim.

Sente-se injustiçado?

Não é injustiçado. As pessoas têm direito a fazer o que querem, a dizer o que querem, a entregar o que querem a quem querem. Agora, conto-lhe outra história. Em dada altura havia um japonês que eu conhecia bem de Los Angeles, que me telefonou a dizer: ‘O júri do prémio Pritzker vai a Portugal ver a tua obra, portanto tens de estar aí’. O júri veio a Portugal no avião do Jay Pritzker e instalou-se no hotel Ritz. Tinham que ir ao Porto ver o Siza mas havia um nevoeiro louco, não se via puto, zero, então alugaram uma limusine e foram para o Porto ver a obra do Siza. Quando vieram do Porto recebo um telefonema do motorista da limusine. ‘Arquiteto, você já ganhou o prémio’. ‘Como é que sabe isso?’. ‘Sei inglês, ouvi as conversas todas para cima e para baixo, ouvi isto, ouvi aquilo’. 

Mas não ganhou.

Quem é que ganha? O Siza. Porquê? Porque o Jay Pritzker é judeu e o Siza também.

Isso deve ter sido um grande balde de água fria para si, ou não?

Veja bem: um indivíduo que nasce operário, filho de operários, que vivem no lumpen e chega onde eu cheguei… São tudo bênçãos! Já nada me toca.

O que não quer dizer que não tenha ambição…

Tenho ambição de ser um grande arquiteto, ainda maior do que sou – porque acho que sou um grande arquiteto, e sei mais do que estes gajos todos juntos, porque estudo todos os dias. Volto a repetir: fui sempre produto do acaso. Mas fui aproveitando os acasos. Agora é diferente. Hoje a arquitetura anda um bocadinho como a moda e quer andar à moda. Só que a Zara já faz a moda toda da Dolce & Gabbana e desses índios assim.

Nos últimos anos tem andado à procura dos acasos?

Vou apanhado ideias. É preciso fazer um aeroporto? Então faço um aeroporto. É preciso fazer um estádio? Eu faço um estádio. Tenho que estar numa posição muito mais proativa do que antigamente.

Antes as coisas vinham ter consigo…

Antigamente tocava o telefone era um cliente. Há um bocado tocou o telefone e por acaso era um cliente. Mas não tenho muitos clientes. E depois só quero coisas grandes. Já não faço certos trabalhos. Aqui há tempos um tipo importante dizia-me: ‘Você põe-se nessa posição aristocrática’. E eu disse-lhe: ‘Você nunca conheceu Van Gogh, pois não?’. ‘Hã?!’. ‘Pergunto: conheceu Van Gogh?’. ‘Não’. ‘Se o tivesse conhecido ia-lhe pedir para pintar uma retrete?’. O gajo ficou ofendido. Eu sou modesto – esta entrevista é a entrevista de uma pessoa modesta, ou não?

Mas que está muito consciente do que vale…

Mas sou modesto! Não estou aqui a dizer que sou o maior. Mas tenho pena que não haja dez Taveiras. Muita pena, porque eu teria mais trabalho.

E Portugal saía a ganhar?

Não sei, mas acho que sim. Hoje li uma coisa n’A Bola. A propósito de o Braga estar em primeiro lugar e estar toda a gente entusiasmada. Vem lá uma noticiazinha, a dizer ‘o problema é que nós temos um estádio impossível, onde não se pode estar, onde não se pode jogar, muito bonito, mas…’. Chamam àquilo bonito? Se aquilo é bonito a madre Teresa de Calcutá é a miss mundo.

Na altura houve até elogios internacionais. Como explica isso?

Se eu quiser elogios também arranjo. O voleibol e o basquetebol eram desportos sem expressão. Porquê? Porque eram jogados ao ar livre. Um tipo fazia um lançamento e se entrasse era um milagre. O basquetebol transforma-se numa indústria quando fecham os pavilhões. Hoje todos os estádios estão a ser transformados em recintos suscetíveis de serem fechados. Só havia um, Gelsenkirchen. Agora há dez. O arquiteto não está em causa, mas o estádio de Braga é de analfabeto, de um indivíduo que nunca estudou o desporto. O estádio foi inaugurado num Portugal-Suécia. O nosso guarda-redes era o Ricardo. O Ibrahimovic remata à baliza, o Ricardo lança-se e a bola bate-lhe nas costas. Toda a gente notou mas ficou calada. Também ninguém disse que tinha sido frango – porque não tinha sido. Simplesmente veio uma rabanada e a bola desviou. Bateu-lhe nas costas! Opai de um amigo, que foi assistir a esse jogo, fugiu ao intervalo. ‘Porra, ia morrendo, estou aqui com uma pneumonia, um frio louco que eu apanhei’. Aquilo é Braga. Em parte nenhuma do mundo se fazia uma coisa daquelas. Aquilo é de um indivíduo que perdeu a noção do poder que tem.

Não há outras obras do Souto Moura de que goste?

Acho o Siza um grande arquiteto. O Souto Moura não é arquiteto.

Porquê?

É um produto do Siza. O Souto Moura existe porque o Siza o foi promovendo. Não estou a dizer que seja este o caso, mas costumo dizer que há uma grande diferença entre ser arquiteto e ter o curso de arquitetura. Um gajo que tem o curso de arquitetura sabe o que é o pilar, o que é a viga, o que é a janela, o que é a porta, sabe que tem elevadores, escada. O arquiteto inventa. E a única invenção dele [Souto Moura] é este desastre.

Qual é, na sua opinião, o melhor estádio do Euro 2004? É um dos seus?

Não há o melhor estádio. O estádio do Dragão é muito bem desenhado. Eu ajudei o Manuel Salgado porque pus a trabalhar com ele um holandês que sabia de estádios que nunca mais acaba. Mas tem um defeito brutal: aquele buracão virado a norte. Dou-me muito bem com o Jorge Nuno [Pinto da Costa] e uma vez disse-lhe: ‘Você gasta tanto dinheiro em gajos que só trocam os pés, ponha ali um vidro’. 

E o Estádio da Luz?

É um estádio muito correto. Até porque foi feito sobre um anteprojeto meu. Depois eles encheram os pneus ao estádio, passaram de 50 mil para 68 mil, e foi assim que eu perdi o projeto. Havia ali muitos interesses, até da Somague, que agora faliu. Quanto mais dinheiro houvesse ali para se meter mais se roubava. O gajo mais puro daqueles todos era o Vilarinho, que saiu rapidamente.

Alguma vez, no Euro 2004 ou noutra circunstância, sentiu que a corrupção era generalizada?

Nunca senti a corrupção.

Nunca sentiu a corrupção em Portugal?

Só muito recentemente. Hoje toda a gente rouba!

Toda a gente rouba ou sabemos que toda a gente rouba? Há uma diferença.

Hoje qualquer um rouba. Perdeu-se completamente o controle.

E no tempo de Sócrates não se roubava?

O Sócrates foi, para mim, a primeira pessoa que instrumentalizou parte da sociedade para roubar. Sou amigo do embaixador da Venezuela, uma pessoa que a dada altura prendeu o Chávez. Um dia vou almoçar com ele e digo-lhe: ‘Porque é que nunca me convidas para a Venezuela? Há lá tanto trabalho para fazer, há zonas fabulosas para fazer resorts turísticos’. Ele riu-se: ‘Só vai à Venezuela quem o Sócrates deixa’. Nesse dia eu percebi: ‘Estamos lixados’. Quando uma pessoa muito importante toma uma atitude desta natureza, convida centenas, milhares de pessoas à volta a entrarem em esquemas esquisitos.

A Operação Marquês surpreendeu-o ou já desconfiava?

O que me surpreende é o Pinho ser um ladrão e vir um juiz que diz: ‘Não é nada ladrão, vai para casa’. Ainda estou para dizer que maldito sorteio foi aquele [que ditou que Ivo Rosa fica responsável pelo processo Marquês]. Aprendi ontem com um gajo que não gosta nada de mim nem eu dele, o Miguel Sousa Tavares, que este superjuiz só aceita provas evidentes. O senhor telefona para mim a dizer: ‘Vamos assaltar o banco’. No dia seguinte o banco é assaltado. Mas ninguém viu. Não há prova. Do Sócrates só há escutas. Portanto vai logo para a rua, como o Pinho.

Muita gente não conhece os seus trabalhos fora da arquitetura. Por exemplo, poucos sabem que fez os cenários da SIC. Há uma parte do seu trabalho que passou ao lado do grande público?

Nunca me passou pela cabeça que fosse interessante divulgar isso.

E como é que se lembraram de o convidar para um trabalho que à partida nada tinha a ver com arquitetura?

Ninguém sabia fazer. Eu introduzi um outro tipo de cenário completamente diferente, o cenário digital.

Como surgiu esse convite?

O Emídio Rangel, de quem eu era muito amigo, em dada altura telefona-me para eu meter uma cunha para uma jovem entrar na Faculdade de Arquitetura. Diga-se de passagem que não foi difícil. E telefono ao Emídio: ‘O assunto está resolvido. Já agora diga-me uma coisa. Como é que isso está a correr?’, porque faltavam poucos meses antes da data de a SIC ir para o ar. ‘Não me diga nada! Não sabemos que imagem vai sair. A malta vai ligar a televisão e ninguém sabe o que vai aparecer ali’. Eu desatei-me a rir. ‘Isso é a coisa mais simples do mundo’. Nessa altura eu dava aulas em Los Angeles de set design, stage design, essas coisas. ‘Temos de falar’. Mas dois dias depois eu ia para Marraquexe com a rapariga com quem eu vivia, uma alemã. Estava a fazer o check-in numa barraquinha quando toca o telefone.

Era o Rangel. 

‘Você tem de vir já para Lisboa resolver este problema’. ‘Desculpe, eu prometi a uma senhora que a trazia a Marraquexe, você vai aguentar, quando eu chegar a Lisboa falo consigo’. Quando voltei fiz uma série de colagens de ‘N’ ambientes, telejornais, programas que ele já tinha preparado. Havia lá um indivíduo que passava a vida a dizer: ‘Em televisão não há vermelhos’. ‘Ai não? Então é vermelho’. ‘Em televisão não há amarelos’, dizia ele. ‘Ai não? Então vamos pôr amarelo’ (risos) Mas era um gajo porreiro. Depois tive outro problema: quem construísse os cenários. E sabem quem é que construiu os cenários?

Quem foi?

O ajudante do Jorge Jesus, o Raul José. Eu ia muitas vezes almoçar ao Pátio Alfacinha com o Germano e essa malta, e pedi-lhes ajuda. E eles destacaram o Raul José, que eu não conhecia. O Pátio Alfacinha ganhou muito dinheiro, eu não ganhei puto. Depois fizeram um contrato comigo, mas mexeruco. Nunca fui comerciante. Mas conheci lá gente interessantíssima. Divertíamo-nos loucamente.

Faziam paródias?

Não, em conversa. Bocas. E havia as coisas mais loucas que se possa imaginar. Fiz um cenário supererótico para a Alexandra Lencastre, para o na “Cama Com…”. Aquilo deu uma bronca… Foram tempos com uma certa graça. Depois aquilo começou-se a adulterar muito, começou a haver muita gente com poder, muita gente a querer mandar. Quando quiseram fazer a SIC Notícias eu tinha o cenário todo pronto, começaram-me a chatear e fui-me embora. ‘Não vou discutir, vocês é que são os donos da bola’.