25 de Setembro de 1946. A terrível invasão dos chicharros!!!

25 de Setembro de 1946. A terrível invasão dos chicharros!!!


Abundava o peixe, escasseava a carne. Os habitantes de Lisboa preocupavam-se. Mas carapau era mato e, de repente, abriu-se o frigorífico de um talho no Bairro Alto…


Começou cedo! Vinham de Sesimbra e de Peniche, enchendo camionetas. Também de barco, como bons peixes que são, os chicharros. Quantidades verdadeiramente imemoriais. “Todo o dia, até à hora a que escrevemos, continuam chegando a Lisboa novas remessas daquele peixe, em quantidades que se calcula devam ter atingido 100 toneladas”.

A terrível invasão dos chicharros!

Sabe-se como o nobre pescado, da família dos carangídeos, mais prosaicamente conhecido por carapau – quando é um pouco mais pequeno –, não só não faz mal a uma mosca como, pelo contrário, faz bem à saúde da gente. E, nesse dia de Setembro, o povo andava na rua jubiloso. Na Ribeira Nova, preço da tabela -–3$00 para as varinas; 3$60 para o público em geral. Era tanta a quantidade que se dispensavam atropelos e discussões.

“Esta abundância verdadeiramente excepcional e inesperada de chicharro foi, em boa verdade, o que valeu hoje à população de Lisboa”, podia ler-se num periódico. E não apenas Lisboa, Lisboa. Também à população dos arredores da capital.

Os chicharros pareciam os hunos de Átila – tomavam conta do Império!

E tal como aconteceu com os hunos, não vinham sozinhos: seis toneladas de peixe grosso, trinta e três caixas de sardinha, dez caixas de sarda.

Um cheiro a mar subia pelas sete colinas da cidade…

“Estes dois dias seguidos de abundância de chicharro é que vieram salvar de apuros uma grande parte da população de Lisboa, tanto mais que tinha havido escassez na lota de Santos e não chegaram dois barcos esperados da Costa e de Cabo Branco”, revelava outro jornal. Acrescentando dramaticamente: “Da falta de carne nem vale já a pena falar pois grande parte da população há semanas que não a consegue provar”.

Trazem-me o peixe, levam-me a carne. Rai’s partam a minha sorte! – exclamaria o Evaristo do “Páteo das Cantigas”.

A espera foi curta. Muito curta.

Reparem nesta notícia surgida no dia seguinte: “Graças aos Serviços de Fiscalização da Intendência, houve hoje inesperadamente festa em muitos lares do populoso Bairro Alto. É que a firma Ferreira & Caetano Lda., com talho na Travessa da Queimada, 42, foi abastecida de carne e miudezas de porco, fornecidas pelo sr. Fernando Paulo Vieira Pinto, com guia de trânsito passada pela Junta dos Produtos Pecuários”.

A burocracia desemperrava.

Os açougues agradeciam as postas vindas de Alguber, concelho do Cadaval.

Depois da invasão dos chicharros, era a vez dos porcos.

A história conta-se numa penada.

Pela abertura do talho, de manhã, os clientes viram-se perante umas miudezas e um bocados de cabeça à venda. Mais nada. Gerou-se o burburinho. Reclamavam os fregueses. O proprietário respondeu à bruta: contentassem-se com o que estava na vitrina e era um pau.

Houve um mais aborrecido que chamou a polícia.

Como por milagre, o balcão passou a ter à vista umas bifanas e umas entremeadas. O fiscal não foi de modas: mandou abrir o frigorífico e depressinha.

Houve um bruaá!

Estava cheio de carne do lombo. Noutra dependência do talho, ainda mais carne a ser salgada. Ao todo 420 quilos.

O proprietário é chamado à mestra palmatória. Não explica decentemente qual a ideia do aforro suíno mas, depois de uns abanões, lá pegou no facão e dispôs-se a cumprir a função de talhante: talhar.

Passavam os porcos de grosso a retalho.

Vendido ao valor da tabela, já se vê.

“Espalhem a notícia/ Do mistério da delícia…”, cantaria o Sérgio Godinho.

Espalharam.

Num instante a Travessa da Queimada ficou cheia de gente à procura de um bife, pelo menos. A Travessa da Queimada, a Rua da Barroca, a Rua Diário de Notícias e por aí fora.

A polícia reforçara-se, entretanto. Perante o caudal da populaça, meteu mãos à obra e à ordem: organizou duas filas em direcção à porta do açougue. Lá dentro, o talhante não parava de talhar.

Donas de casa, mães de família, arreganhavam o sorriso satisfeito.

Um edital descansava os lisboetas: tinham sido abatidos no Matadouro Municipal, para distribuição no dia seguinte, 38 bois, 4 vitelas, 1150 carneiros, 175 cabras e 9 cavalos. De fazer crescer água na boca.