Qarabag. Quando  os Cavaleiros tiveram de fugir da cidade fantasma

Qarabag. Quando os Cavaleiros tiveram de fugir da cidade fantasma


Agdam foi o local onde nasceu o adversário do Sporting na Liga Europa. A guerra de Nagorno- -Karabakh deixou o território sem vida. Por isso, muitos chamam ao Qarabag “Qaçqin Klub” – clube dos refugiados


Agdam é hoje uma cidade fantasma. “Ag” quer dizer branca; “dam” quer dizer casa: casa branca, portanto, fundada em meados do séc. xviii. Casa branca arrasada pela guerra do Nagorno-Karabakh, lembram-se? Karabakh, ou Qarabag, ou ainda Qarabagh. O nome voltou a surgir na imprensa portuguesa, desta vez por muito melhores motivos: o Qarabag Futbol Klubu irá jogar com o Sporting na fase de grupos da Liga Europa. Mas receberá os leões na capital do Azerbaijão, Baku. Sim, porque Agdam, o local onde foi fundado, deixou de ter vida.

A Guerra de Nagorno-Karabakh foi, sobretudo, um conflito étnico. O enclave com o mesmo nome situado no sudoeste do país era habitado por uma grande maioria de arménios que pretendiam passar a fazer parte da Arménia. Estávamos nos anos em que a União Soviética se dispersava em numerosas repúblicas. E o confronto entre azeris e arménios não se resolveu nem através das armas nem através de mediações: a área é internacionalmente reconhecida como fazendo parte do Azerbaijão mas, de facto, autointitula-se República de Artsakh e está controlada pela Arménia.

Agdam chegou a ter cerca de 40 mil habitantes. Hoje não passa de um monte de ruínas por entre as quais a vegetação foi encontrando espaço para medrar. A paisagem é de tal forma desoladora que muitos lhe atribuíram o epíteto de Hiroshima do Cáucaso. É o lugar onde o Qarabag foi fundado em 1951, embora nos anos 60 tenha adotado durante algum tempo o nome de Mehsul. As suas participações no campeonato regional do Azerbaijão nunca foram de molde a entusiasmar os adeptos. De tal forma que entre 1968 e 1977 abandonou a prova, renascendo mais tarde como Shafaq, único clube de futebol de Agdam.

Em 1993 chegou a guerra. O desporto fundamental do Nagorno-Karabakh passou a ser o tiro pela sobrevivência. Allah-verdi Bagirov, treinador do Qarabag, figura maior do desporto azeri, não fugiu ao apelo das armas: oficial do exército, morreu na guerra. De certa forma, eternizou-se…

 

Era moderna Pode dizer-se que o Qarabag entrou na era moderna a partir do momento em que saiu de Agdam e se instalou em Baku. Os primeiros tempos da mudança foram duros, a crise financeira enorme, a perda de um dos seus estandartes, o treinador Bagirov, insubstituível. Apesar de tudo construiu uma aura vencedora e tornou-se o primeiro clube do Azerbaijão a participar nas provas europeias.

Em 2001 passou a haver dinheiro.

Um conglomerado azeri de produção alimentar, a Azersun Holding MMC, investiu. Os irmãos Abdolbari Goozal e Hassan Goozal, iranianos de nascimento e curdos de origem, nunca esconderam a sua paixão pelo nobre desporto bretão, como gostavam de dizer os radialistas de antanho, sempre tão cheios de prosápia. Gurban Gurbanov foi a sua aposta para comandar a equipa. Admirador do estilo Guardiola, este antigo internacional veio contrariar a filosofia do futebol do Azerbaijão, que virava tendencialmente as costas à contratação de jogadores estrangeiros, preferindo manter-se fiel aos que iam surgindo nas camadas mais jovens. Para Gurbanov, não havia qualquer possibilidade de competir a nível externo sem o recurso ao recrutamento de jogadores com experiência internacional. Os resultados deram-lhe razão.

Em 2014, ao fim de 21 anos de jejum, o Qarabag tornou-se campeão azeri. As suas presenças nas fases eliminatórias da Liga Europa sucederam-se com regularidade. Mais: na época de 2014-15 atingiu a terceira ronda de qualificação para a Liga dos Campeões, garantindo a presença na fase de grupos da Liga Europa. Nunca até então um técnico tinha levado tão alto o nome do clube da cidade fantasma.

Na época passada, os Cavaleiros, como são conhecidos pelos adeptos, estiveram no Grupo C da Liga dos Campeões com Roma, Chelsea e Atlético de Madrid, tendo arrancado dois empates face aos espanhóis. O seu lema é a luta contra o medo. Afastado das suas origens, o clube não esquece o seu papel numa das guerras mais dolorosas dos últimos anos. Mesmo em Baku, a simpatia pelos karabakhs é grande, de tal forma que a Azersun Arena, situada em Surakhani, um dos bairros de Baku, recorda muitas vezes os dias de festa no Estádio Imarat, que viria a ser arrasado pelos bombardeamentos da aviação arménia.

Há quem, por carinho, se refira ao Qarabag como Qaçqin Klub, o clube dos refugiados. Lembram-se os antigos, como o goleador Kuseynov, desse tempo que já não há: “Em Agdam, o público era apaixonado pelo futebol bonito. E nós oferecemos-lhe esse futebol bonito e ofensivo que enchia os estádios. Mas, depois, a tranquilidade desfez-se. Continuámos a jogar, mas por obrigação. Sabíamos que a qualquer momento poderia cair uma bomba que destruísse a nossa vida.”