Os gremlins da extrema-direita


O que leva a Europa próspera com mais de 70 anos sem guerra a deixar grassar assim entre as suas pedras a erva daninha da extrema-direita? Será que como o escorpião não pode fugir à sua essência? 


Europa uniu-se, aprofundou as suas relações, prosperou, construiu um bloco sólido capaz de negociar com as grandes potências do mundo, algumas delas autoritárias, de igual para igual, alcançou o grande desígnio de passar mais de sete décadas sem guerra generalizada, ao mesmo tempo que via construir e derrubar o muro de Berlim e desagregar-se a Jugoslávia e, principalmente, a União Soviética. Os europeus têm acesso à saúde, à educação, à cultura, vivem em países relativamente seguros, onde se fomenta a liberdade de pensar, onde se tem direito a dissentir, mesmo para afirmar as coisas mais tontas e/ou mais perigosas.

Uma Europa que contrasta com a Europa que se arrastou para a Grande Guerra e com a Europa que Hitler levou para a Segunda Guerra Mundial. Uma Europa de nações que abdicou de parta da sua soberania para edificar um modelo continental capaz de trazer paz e prosperidade aos europeus. E conseguiu.

De onde saiu então esta ameaça da extrema-direita? Entre que pedras foi grassando esta erva daninha? Que necessidade imperativa está a fazer com que das franjas sombrias onde sempre estiveram assumam agora a luminosidade do palco central? Será apenas pelo medo aos migrantes que cruzam o Mediterrâneo e se instalam no continente? Migrantes que a estagnada demografia europeia deveria receber de braços abertos pela vida que trazem?

Tenho à minha frente uma fotografia – publicada num jornal espanhol – de três mulheres, aparentemente prósperas, burguesas, óculos de sol, bandeira de Espanha segura entre as três. Poderia ser num qualquer palco desportivo, nos Jogos Olímpicos, na passagem da caravana da Volta a Espanha em bicicleta, não fosse estarem de braço esticado no ar, palma da mão estendida para baixo e até seríamos capazes de imaginar três mães apoiando os filhos num jogo de polo aquático. No entanto, são franquistas em plena torreira do Vale dos Caídos a manifestar-se contra a exumação e transladação do corpo do ditador dessa vala comum de republicanos transformada em mausoléu de evocação do franquismo.

Essas três mulheres que exibem orgulhosas a saudação romana tornada tristemente célebre pelo nazismo não se escondem, não afirmam nas sombras sem se identificar a adesão aos ideais do franquismo; essas três mulheres posam para a fotografia de um jornal orgulhosas, altivas, crentes na sua defesa de uma ditadura que matou milhares, condenou outros milhares ao exílio, roubou crianças a pais considerados subversivos para as entregar a famílias conservadoras. Segundo a Associação de Juízes para a Democracia, Espanha é o segundo país no mundo com maior número de desaparecidos cujos restos mortais nunca foram recuperados ou identificados, a seguir ao Camboja de Pol Pot e dos campos da morte.

A Espanha é um país desenvolvido, onde a direita até tem governado, logo nem sequer podem apontar o dedo à esquerda como causadora de males terríveis que justifiquem o extremismo de assumir a defesa do futuro por um qualquer tumulto do presente. De onde vem então essa emergência da extrema-direita? E porque assume agora o centro do palco?

Nunca tive muita fé no ser humano em geral. Acredito em pessoas, acredito que há gente capaz e foi essa gente que nos trouxe o progresso que nos fez sair das cavernas desenvolver o fogo e a roda que nos cerceou os instintos selvagens construindo sociedades de respeito pelos direitos dos outros que nos impôs grilhões para impedir-nos de exercer violência sobre outrem. Se mesmo assim conseguimos matar-nos uns aos outros a este ritmo, imaginem se as regras não existissem!

Mas o ser humano é o melhor e o pior deste planeta, o seu animal mais desenvolvido e o primata mais sanguinário. A extrema-direita ideológica não é mais do que o lado obscuro da mente humana; os nossos pensamentos mais recônditos; aquilo que todos nós somos e reprimimos para não ser. Abomina o outro, seja o outro a esquerda, seja o outro o estrangeiro, seja o outro de cor diferente, seja o outro o outro, qualquer que seja. A extrema-direita coloca a pureza no centro do seu pensamento e o puro não admite cá misturas.

Normalmente, esses pensamentos sadomasoquistas andam confinados às masmorras onde o sol não entra. Não porque sejam poucos, mas porque requerem certas condições de luz para realizar a sua fotossíntese, processo em que, ao contrário das plantas, não libertam oxigénio, mas gás venenoso que tende a envenenar tudo ao redor e multiplicar-se.

É como no “Gremlins”, o filme de Joe Dante dos anos 80. Os mogwais são bichos peludos simpáticos que não podem estar sujeitos a luz forte, contacto com a água e jamais devem ser alimentados depois da meia-noite. A luz forte irrita-os, a água pode matá-los e a alimentação depois da meia-noite transforma-os em Gremlins que destroem tudo à sua volta entre gargalhadas sinistras.

A extrema-direita manteve-se na Europa ao longo destes 70 anos como mogwais – aqui e ali com alguns gremlins, mas dentro de um certo grau de tolerância. Só que alguém tem andado a alimentá-los depois da meia noite ultimamente e os gremlins andam multiplicar-se – o episódio de Cheimnitz é só mais um exemplo – e a marchar à luz do sol e, tal como os mogwais, os gremlins também ficam irritados com a luz do sol.


Os gremlins da extrema-direita


O que leva a Europa próspera com mais de 70 anos sem guerra a deixar grassar assim entre as suas pedras a erva daninha da extrema-direita? Será que como o escorpião não pode fugir à sua essência? 


Europa uniu-se, aprofundou as suas relações, prosperou, construiu um bloco sólido capaz de negociar com as grandes potências do mundo, algumas delas autoritárias, de igual para igual, alcançou o grande desígnio de passar mais de sete décadas sem guerra generalizada, ao mesmo tempo que via construir e derrubar o muro de Berlim e desagregar-se a Jugoslávia e, principalmente, a União Soviética. Os europeus têm acesso à saúde, à educação, à cultura, vivem em países relativamente seguros, onde se fomenta a liberdade de pensar, onde se tem direito a dissentir, mesmo para afirmar as coisas mais tontas e/ou mais perigosas.

Uma Europa que contrasta com a Europa que se arrastou para a Grande Guerra e com a Europa que Hitler levou para a Segunda Guerra Mundial. Uma Europa de nações que abdicou de parta da sua soberania para edificar um modelo continental capaz de trazer paz e prosperidade aos europeus. E conseguiu.

De onde saiu então esta ameaça da extrema-direita? Entre que pedras foi grassando esta erva daninha? Que necessidade imperativa está a fazer com que das franjas sombrias onde sempre estiveram assumam agora a luminosidade do palco central? Será apenas pelo medo aos migrantes que cruzam o Mediterrâneo e se instalam no continente? Migrantes que a estagnada demografia europeia deveria receber de braços abertos pela vida que trazem?

Tenho à minha frente uma fotografia – publicada num jornal espanhol – de três mulheres, aparentemente prósperas, burguesas, óculos de sol, bandeira de Espanha segura entre as três. Poderia ser num qualquer palco desportivo, nos Jogos Olímpicos, na passagem da caravana da Volta a Espanha em bicicleta, não fosse estarem de braço esticado no ar, palma da mão estendida para baixo e até seríamos capazes de imaginar três mães apoiando os filhos num jogo de polo aquático. No entanto, são franquistas em plena torreira do Vale dos Caídos a manifestar-se contra a exumação e transladação do corpo do ditador dessa vala comum de republicanos transformada em mausoléu de evocação do franquismo.

Essas três mulheres que exibem orgulhosas a saudação romana tornada tristemente célebre pelo nazismo não se escondem, não afirmam nas sombras sem se identificar a adesão aos ideais do franquismo; essas três mulheres posam para a fotografia de um jornal orgulhosas, altivas, crentes na sua defesa de uma ditadura que matou milhares, condenou outros milhares ao exílio, roubou crianças a pais considerados subversivos para as entregar a famílias conservadoras. Segundo a Associação de Juízes para a Democracia, Espanha é o segundo país no mundo com maior número de desaparecidos cujos restos mortais nunca foram recuperados ou identificados, a seguir ao Camboja de Pol Pot e dos campos da morte.

A Espanha é um país desenvolvido, onde a direita até tem governado, logo nem sequer podem apontar o dedo à esquerda como causadora de males terríveis que justifiquem o extremismo de assumir a defesa do futuro por um qualquer tumulto do presente. De onde vem então essa emergência da extrema-direita? E porque assume agora o centro do palco?

Nunca tive muita fé no ser humano em geral. Acredito em pessoas, acredito que há gente capaz e foi essa gente que nos trouxe o progresso que nos fez sair das cavernas desenvolver o fogo e a roda que nos cerceou os instintos selvagens construindo sociedades de respeito pelos direitos dos outros que nos impôs grilhões para impedir-nos de exercer violência sobre outrem. Se mesmo assim conseguimos matar-nos uns aos outros a este ritmo, imaginem se as regras não existissem!

Mas o ser humano é o melhor e o pior deste planeta, o seu animal mais desenvolvido e o primata mais sanguinário. A extrema-direita ideológica não é mais do que o lado obscuro da mente humana; os nossos pensamentos mais recônditos; aquilo que todos nós somos e reprimimos para não ser. Abomina o outro, seja o outro a esquerda, seja o outro o estrangeiro, seja o outro de cor diferente, seja o outro o outro, qualquer que seja. A extrema-direita coloca a pureza no centro do seu pensamento e o puro não admite cá misturas.

Normalmente, esses pensamentos sadomasoquistas andam confinados às masmorras onde o sol não entra. Não porque sejam poucos, mas porque requerem certas condições de luz para realizar a sua fotossíntese, processo em que, ao contrário das plantas, não libertam oxigénio, mas gás venenoso que tende a envenenar tudo ao redor e multiplicar-se.

É como no “Gremlins”, o filme de Joe Dante dos anos 80. Os mogwais são bichos peludos simpáticos que não podem estar sujeitos a luz forte, contacto com a água e jamais devem ser alimentados depois da meia-noite. A luz forte irrita-os, a água pode matá-los e a alimentação depois da meia-noite transforma-os em Gremlins que destroem tudo à sua volta entre gargalhadas sinistras.

A extrema-direita manteve-se na Europa ao longo destes 70 anos como mogwais – aqui e ali com alguns gremlins, mas dentro de um certo grau de tolerância. Só que alguém tem andado a alimentá-los depois da meia noite ultimamente e os gremlins andam multiplicar-se – o episódio de Cheimnitz é só mais um exemplo – e a marchar à luz do sol e, tal como os mogwais, os gremlins também ficam irritados com a luz do sol.