A importância de um avô morto


Como a memória de um parente que nunca conhecemos, desaparecido há mais de 50 anos, nos ajuda a pensar que entre toda a ambição, ser decente anda muito desvalorizado


Mais de 50 anos depois da sua morte o meu avô continua a ser um exemplo de ser humano decente. Nessa existência para lá da existência que é a memória dos outros, mantém-se parecido aos primeiros esquissos que fui desenhando na cabeça de neto que nunca o chegou a conhecer. Com os pormenores das histórias dos outros – principalmente do filho que o tem venerado ao longo dos tempos com o mesmo entusiasmo – construí para mim uma foto tipo passe na carteira para me lembrar do que realmente vale a pena e já agora do que também sou.

António Rodrigues, esse avô minhoto de bigodes recurvados nas pontas e cachecol a fazer de gravata da única foto que dele conheço, volta e meia irrompe nas conversas do meu pai entronizado no seu papel de referência fundamental para a formação de caráter. Normalmente, a introdução chega sempre em jeito de “o meu pai nunca me bateu”, algo excecional no Portugal dos anos 1940/50, onde o recurso ao castigo físico não só era comum como figurava entre as profilaxias recomendadas para a construção de caráter. Os homens faziam-se com a pele curtida do bater.

Criança, jovem, adulto fui ouvindo as mesmas invariáveis histórias sobre o meu avô, senhor de uma sabedoria que se estendia muito para lá dos estudos que não teve e do mundo que não viu assim tanto (tirando os 22 meses que passou emigrado em França e o trabalho nos campos da Galiza, onde se ensinava mais a ser explorado que a emancipar pensamentos), embora capaz de deixar marcas tão profundas nos outros que ainda hoje, mais de meio século passado, a sua figura surge nas conversas de forma tão intensa que emociona.

Este texto surgiu de um desses momentos, o de ver o meu primo, senhor já de respeitável idade (e outro desses homens cuja capacidade de olhar, ver e refletir o mundo vai muito para lá das habilitações escolares), com os olhos marejados de lágrimas, voz embargada, a relembrar o único homem que realmente respeitou ao crescer – e dos poucos ao longo da vida.

Uma vez, ainda criança, para evitar retaliações de uma qualquer tropelia resolveu esse meu primo dormir num caniço, esperando que o dia trouxesse a acalmia que lhe evitaria castigos, decisão essa que ao mesmo tempo multiplicava as preocupações e as hipóteses de punição. Procuraram-no por todo o lado, mas teve a sorte de ter sido o avô a encontrá-lo no caniço. No escuro, estendeu a mão para sentir os pés do neto e acalmar angústias. Confirmado que tudo estava bem, fechou a porta e deixou o neto a salvo de qualquer mortificação.

Um gesto singelo num momento tão banal que teria sido desses que rapidamente a memória descarta para abrir espaço ao que realmente importa. Para o meu primo, porém, continua a ser uma das recordações mais gratas da sua infância e parte importante daquilo que é hoje.

Quando o meu avô morreu, o meu pai havia acabado de emigrar para a Alemanha. Nesses tempos de comunicações e viagens mais difíceis, a notícia da morte só chegou em carta uma semana depois do funeral e isso deixou marcas. Em jeito de emoção que ainda hoje, volvido mais de meio século, lhe traz lágrimas aos olhos.

Como a preto e branco só os filmes antigos e a boa fotografia, sei que o meu avô teria gradações de cinzento que a memória tratou de apagar. Como imagino que a sua personalidade dolente, amante da conversa e de uns copos de vez em quando, ter-se-á valido da minha avó ao seu lado, mulher enérgica, decidida e de caráter forte, para não se ver obrigado a mais rispidez de comportamentos. Os dois funcionariam bem como soma melhor que a junção das partes.

Relativização racional que, no entanto, não ensombra em nada a memória do que foi esse homem capaz de emocionar mais de meio século depois quem o recorda.

“A vida quotidiana é também uma soma de instantes”, escreveu Mario Benedetti num poema, “algo assim como partículas de pó/ que continuarão a cair num abismo/ e no entanto cada instante/ ou seja, cada partícula de pó/ é também um abundante universo/ com crepúsculos e catedrais e campos de cultivo/ e multidões e cópulas e desembarques/ e bêbados e mártires e colinas/ e vale a pena qualquer sacrifício/ para que esse abrir e fechar de olhos/ abarque finalmente o instante universo/ com um olhar que não se envergonhe/ da sua reveladora/ efémera/ insubstituível/ luz.”

O meu avô António Rodrigues foi essa efémera insubstituível luz, um abrir e fechar de olhos no quotidiano universal que conseguiu, partícula de pó, deixar marcas tão indeléveis que hoje um neto que nunca o conheceu, muito tempo após o seu desaparecimento, sentiu-se impelido a escrever este texto, onde reconhece (ou espera) haver nele o suficiente para fazer jus à sua memória.

Ambicionar, desejar, querer não são em si verbos negativos, apesar de muitos os transformarem em ações de soma zero, onde os ganhos de uns redundam na perda de outros. Tal como não almejar muito na vida não demonstre necessariamente falta de ânimo. Mas se a minha ambição se resumir a ser um ser humano decente, tal como o meu avô, acredito que é já uma meta alta para alcançar.
 


A importância de um avô morto


Como a memória de um parente que nunca conhecemos, desaparecido há mais de 50 anos, nos ajuda a pensar que entre toda a ambição, ser decente anda muito desvalorizado


Mais de 50 anos depois da sua morte o meu avô continua a ser um exemplo de ser humano decente. Nessa existência para lá da existência que é a memória dos outros, mantém-se parecido aos primeiros esquissos que fui desenhando na cabeça de neto que nunca o chegou a conhecer. Com os pormenores das histórias dos outros – principalmente do filho que o tem venerado ao longo dos tempos com o mesmo entusiasmo – construí para mim uma foto tipo passe na carteira para me lembrar do que realmente vale a pena e já agora do que também sou.

António Rodrigues, esse avô minhoto de bigodes recurvados nas pontas e cachecol a fazer de gravata da única foto que dele conheço, volta e meia irrompe nas conversas do meu pai entronizado no seu papel de referência fundamental para a formação de caráter. Normalmente, a introdução chega sempre em jeito de “o meu pai nunca me bateu”, algo excecional no Portugal dos anos 1940/50, onde o recurso ao castigo físico não só era comum como figurava entre as profilaxias recomendadas para a construção de caráter. Os homens faziam-se com a pele curtida do bater.

Criança, jovem, adulto fui ouvindo as mesmas invariáveis histórias sobre o meu avô, senhor de uma sabedoria que se estendia muito para lá dos estudos que não teve e do mundo que não viu assim tanto (tirando os 22 meses que passou emigrado em França e o trabalho nos campos da Galiza, onde se ensinava mais a ser explorado que a emancipar pensamentos), embora capaz de deixar marcas tão profundas nos outros que ainda hoje, mais de meio século passado, a sua figura surge nas conversas de forma tão intensa que emociona.

Este texto surgiu de um desses momentos, o de ver o meu primo, senhor já de respeitável idade (e outro desses homens cuja capacidade de olhar, ver e refletir o mundo vai muito para lá das habilitações escolares), com os olhos marejados de lágrimas, voz embargada, a relembrar o único homem que realmente respeitou ao crescer – e dos poucos ao longo da vida.

Uma vez, ainda criança, para evitar retaliações de uma qualquer tropelia resolveu esse meu primo dormir num caniço, esperando que o dia trouxesse a acalmia que lhe evitaria castigos, decisão essa que ao mesmo tempo multiplicava as preocupações e as hipóteses de punição. Procuraram-no por todo o lado, mas teve a sorte de ter sido o avô a encontrá-lo no caniço. No escuro, estendeu a mão para sentir os pés do neto e acalmar angústias. Confirmado que tudo estava bem, fechou a porta e deixou o neto a salvo de qualquer mortificação.

Um gesto singelo num momento tão banal que teria sido desses que rapidamente a memória descarta para abrir espaço ao que realmente importa. Para o meu primo, porém, continua a ser uma das recordações mais gratas da sua infância e parte importante daquilo que é hoje.

Quando o meu avô morreu, o meu pai havia acabado de emigrar para a Alemanha. Nesses tempos de comunicações e viagens mais difíceis, a notícia da morte só chegou em carta uma semana depois do funeral e isso deixou marcas. Em jeito de emoção que ainda hoje, volvido mais de meio século, lhe traz lágrimas aos olhos.

Como a preto e branco só os filmes antigos e a boa fotografia, sei que o meu avô teria gradações de cinzento que a memória tratou de apagar. Como imagino que a sua personalidade dolente, amante da conversa e de uns copos de vez em quando, ter-se-á valido da minha avó ao seu lado, mulher enérgica, decidida e de caráter forte, para não se ver obrigado a mais rispidez de comportamentos. Os dois funcionariam bem como soma melhor que a junção das partes.

Relativização racional que, no entanto, não ensombra em nada a memória do que foi esse homem capaz de emocionar mais de meio século depois quem o recorda.

“A vida quotidiana é também uma soma de instantes”, escreveu Mario Benedetti num poema, “algo assim como partículas de pó/ que continuarão a cair num abismo/ e no entanto cada instante/ ou seja, cada partícula de pó/ é também um abundante universo/ com crepúsculos e catedrais e campos de cultivo/ e multidões e cópulas e desembarques/ e bêbados e mártires e colinas/ e vale a pena qualquer sacrifício/ para que esse abrir e fechar de olhos/ abarque finalmente o instante universo/ com um olhar que não se envergonhe/ da sua reveladora/ efémera/ insubstituível/ luz.”

O meu avô António Rodrigues foi essa efémera insubstituível luz, um abrir e fechar de olhos no quotidiano universal que conseguiu, partícula de pó, deixar marcas tão indeléveis que hoje um neto que nunca o conheceu, muito tempo após o seu desaparecimento, sentiu-se impelido a escrever este texto, onde reconhece (ou espera) haver nele o suficiente para fazer jus à sua memória.

Ambicionar, desejar, querer não são em si verbos negativos, apesar de muitos os transformarem em ações de soma zero, onde os ganhos de uns redundam na perda de outros. Tal como não almejar muito na vida não demonstre necessariamente falta de ânimo. Mas se a minha ambição se resumir a ser um ser humano decente, tal como o meu avô, acredito que é já uma meta alta para alcançar.