Pela segunda vez na sua história, Portugal e Marrocos encontram-se numa fase final de um campeonato do mundo. A primeira foi desastrosa para os portugueses. Recentemente publiquei um livro com todas as crónicas dos jogos da seleção nacional em Mundiais: “Memórias da Nação Valente”. O episódio de Guadalajara vem lá, neste tom triste.
Alcácer-Quibir é um nome afiado e doloroso. Está-nos espetado na memória como um ferro no alto do qual drapeja a bandeira negra da derrota.
Chovia nessa tarde de Guadalajara.
A batalha não durou quatro horas como a que criou a lenda do Desejado. Durou apenas noventa minutos, assim mesmo, por extenso.
Ninguém luziu por entre o nevoeiro português, espesso, quase sólido. No deserto das ideias, na escassez do talento, não há quem se revolte contra os ventos do destino.
E, no entanto, amanhecera otimista esse dia 11 de junho de 1986. Camões comemorara-se na véspera. Esse Camões que não sobreviveu a Alcácer-Quibir.
Uma esperança iniludível: a vitória sobre Marrocos daria o apuramento para os oitavos-de-final; um empate poderia, ainda assim, servir, dependendo do resultado do Inglaterra-Polónia; e até a derrota, se por uma margem mínima e no caso de a Polónia vencer a Inglaterra, não nos condenava a regressar a casa: é que os quatro melhores terceiros classificados dos seis grupos da primeira fase também seguiam em frente.
Marrocos, tão apenas Marrocos.
Nenhum mostrengo lá no fim do mar, imundo e grosso, voando três vezes em redor da nau lusitana.
Era só Marrocos.
A superioridade da seleção portuguesa estava anunciada contundentemente, quase por unanimidade.
Ainda assim, a desconfiança foi-se espalhando com o decorrer das horas, com o aproximar das quatro da tarde, das quatro em ponto da tarde na cidade fundada por Cristobal de Oñate.
Desconfiava-se do árbitro: Alan Snoddy, um executivo bancário de Belfast.
Carlos Manuel acusaria no fim: “O árbitro não assinalou um penálti claro. Julgo que terá ficado rancoroso por termos ganho à Inglaterra. Como norte-irlandês que é, estaria a puxar pelos ingleses.”
Não é certo, não é certo: esqueceram–se de lhe perguntar se era católico ou protestante.
Protestar, protestavam os nossos: falta evidente sobre Sousa na grande área marroquina.
Mais uma vez queixas. Grandes penalidades por marcar.
Lamentos: habituais lamentos.
Pesadelo José Torres, o homem que sonhava, pensara muito.
O Bom Gigante não foi imune às pressões. Os dois empates (ambos por 0-0) impostos pelos marroquinos à Polónia e à Inglaterra faziam da seleção comandada pelo brasileiro José Faria a grande surpresa do grupo 6, e o último lugar da Inglaterra, com apenas um ponto à entrada para a última jornada, provocava sensação.
José Torres mudou a equipa para o encontro decisivo do Estádio 3 de Marzo: deixou Diamantino de fora e deu a faixa direita a Jaime Magalhães; dispensou o trinco (André) e fez a vontade a Futre, colocando-o a jogar no apoio a Fernando Gomes.
Um laivo de atrevimento não visto até aí.
E José Torres ignorava as “tréguas” propostas por José Faria na véspera: “O empate era um bom resultado para os dois.”
Um convite explícito à não agressão. A deixar correr o tempo…
Mas Portugal dispunha-se a cair sobre o seu adversário.
De timorato passava a temerário.
Muitos dos jogadores marroquinos eram amadores, rapazes pobres que tinham aprendido a jogar à bola nos becos poeirentos de Rabat, de Fez, de Casablanca e Marraquexe. Apenas três jogavam em clubes fora do país.
Tinham a alma rebelde dos beduínos.
Portugal não teve alma: foi uma equipa vazia, sem chama, sem entusiasmo, arrastando-se penosamente ao longo desses 90 minutos de martírio.
Ao minuto 17, Khairi tem um remate forte e rasteiro, de fora da área, e bate Damas pela primeira vez; nove minutos depois, Krimau foge pela direita, passa para Labd que, por sua vez, centra para o ponto exato no qual Khairi, sem deixar a bola tocar o relvado, desfere novo remate forte e colocado: 2-0.
Um descalabro total. A seleção portuguesa era um desastre completo, uma tristeza imensa, um fracasso monumental. Torres faz, no segundo tempo, as substituições desesperadas: troca Álvaro por Rui Águas e Sousa por Diamantino. Entre uma e outra, Krimau isola-se frente a Damas e pica-lhe a bola sobre o corpo.
Nunca Marrocos tivera uma vitória tão brilhante, tão pletórica. Os portugueses resistem como podem à humilhação: Diamantino, a 11 minutos do fim, marca o golo do adeus com um remate perfeito, em arco, fazendo a bola passar sobre a cabeça de vários defesas marroquinos e do guarda-redes Zaki.
Como era incontida a alegria africana!
Nas bancadas quase vazias, alguns milhares de marroquinos exultavam à chuva.
O futebol português era agora conhecido em todo o mundo mais pelos tristes acontecimentos de Saltillo do que pelo jogo apresentado dentro das quatro linhas, e tais comportamentos faziam lembrar as palavras sábias de Jorge de Sena, no seu poema “L’Été au Portugal”: “Que Portugal se espera em Portugal?/ Que gente ainda há-de erguer-se desta gente?/ Pagam-se impérios como o bem e o mal/ – mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?”
O homem que sonhava acordava para o seu maior pesadelo.