Depois de, na semana anterior, ter aflorado o alcance do Princípio da Presunção da Inocência como princípio indispensável do processo penal de consagração absoluta quer nos ordenamentos jurídicos internos, quer na letra dos mais importantes Tratados internacionais, por conseguinte extensivo às relações entre Estados, e depois da valoração da prova indiciária por associação à prova direta como facto indiciante que permite a elaboração de um facto-consequência em virtude de uma ligação racional e lógica, sem que para isso se caia na diabolização de uma qualquer acusação, mas antes num prudente equilíbrio entre a prova apresentada, a objetividade da sua análise, a segurança da Comunidade, a presunção de inocência em confronto com determinados tipos de crimes, sobretudo aqueles de maior complexidade, de maior organização e sem limite de fronteiras deve, agora, analisar-se a reação política dos Estados envolvidos, e dos seus parceiros, face aos dados e à realidade que dispunham que consubstanciaram a sua tomada de decisão.
A expressão “highly likely” utilizada pelo governo britânico para associar o uso do agente nervoso “Novichok” à Federação Russa está na base daquele que constitui o maior escândalo diplomático de que há memória. Na verdade, “Novichok”, era produzido na União Soviética, em concreto na zona do Uzbequistão, “pela mão” do General Anatoly Kontsevich – ironicamente, mais tarde, nomeado por Yeltsin para chefiar o desarmamento químico russo – no período compreendido entre 1971 e 1993, altura em que, com o envolvimento dos EUA, a fábrica que o produzia foi desmantelada. Este indício apontaria para que a Rússia, como lembrou May, poderia estar envolvida no ataque ao ex-espião.
Convém recordar que Skripal, capturado pela inteligência russa (FSB) em 2004 e condenado por alta traição por alegadamente ter colaborado com os serviços de intelligence britânicos, se estabelece no Reino Unido depois de uma troca, nunca confirmada, de espiões ao abrigo do programa “Illegals” que constituiu o corolário de uma investigação do FBI (Operação Ghost Stories) sobre a infiltração de espiões russos em departamentos-chave do governo e de multinacionais norte americanas.
A posição de May, imediatamente secundada pelos principais aliados, fazia sentido. A possibilidade de envolvimento russo no envenenamento de Skripal, considerando o seu histórico e a sua alegada proximidade a Christopher Steele (ex agente do MI6 que investigou em 2006 a morte por envenenamento de Alexander Litvinenko e que recentemente, em 2016, liderou o “Projeto Carlos Magno”, que criou a convicção do envolvimento russo em diversas eleições de estados europeus) traduziam os condimentos necessários para a suspeita. Porém, passadas três semanas de investigação, a ausência de provas irrefutáveis e algumas das dúvidas lançadas no seu decurso começam a beliscar o argumento britânico.
É certo que o necessário, mas complexo mundo da “espionagem” num contexto de segurança global e de resposta às neoameaças que extravasam as fronteiras tradicionais e se expandem a setores tão diversos como o ambiente, a tecnologia ou a indústria, e das investigações que decorrem da sua ação têm tempos próprios muitas vezes incompagináveis com o tempo da ansiedade política e pública que normalmente causam. Não é segredo para ninguém que a Rússia tem uma agenda política própria no que diz respeito à Europa e à sua organização – veja-se a situação ucraniana e dos países do Báltico – mas também não é segredo nenhum que o frenesim securitário de alguns países do ocidente leva facilmente a que se cometam alguns excessos. Vejam-se os casos do incendiário “Relatório Chilton” sobre o envolvimento do Reino Unido na guerra do Iraque com conclusões duríssimas de manipulação de opinião envolvendo o governo de Tony Blair e a inteligência britânica e os mais recentes casos do hactivismo institucional com recurso a empresas de comunicação estratégica como como a Cambridge Analytica e a Strategic Communication Laboratories.
Deputado do PSD, Investigador universitário, Escreve à segunda-feira