Quando uma tragédia se abate sobre vastas regiões do país, como aconteceu a 17 de junho e a 15 de outubro do ano passado, o mínimo que se pode exigir a um regime democrático de qualidade é que se planifiquem quanto antes as políticas públicas que evitem a repetição das tragédias e simultaneamente se criem as condições para a melhoria de vida das populações afetadas.
Recordo que já o Presidente da República, no seu discurso a 17 de outubro do ano passado, logo após a segunda tragédia humana provocada pelos fogos florestais em menos de quatro meses, sublinhava que “as regiões afetadas foram das mais esquecidas pelo poder central” e que “os portugueses que viram as suas vidas destroçadas foram aqueles sem poder político ou eleitoral e que se encontram mais afastados dos gabinetes e das ruas onde se encontra o poder em Lisboa”.
Ora, uma democracia de qualidade tem de olhar para o interesse geral do país e criar as condições para que todos possam dar, através do seu esforço, o seu contributo para a prosperidade de Portugal .
Chegados ao final do mês de fevereiro, quando a primavera já se anuncia, depois de um Orçamento do Estado para 2018 que nada fez para recuperar a atividade económica destas populações martirizadas, a que assistimos agora em termos de medidas por parte do Estado para relançar a confiança das populações mais afetadas ?
Cito três exemplos paradigmáticos:
– A direção da ASAE resolveu fazer um programa de inspeções reforçadas às regiões mais afetadas pelos incêndios do ano passado, complicando ainda mais, duma forma punitiva, a vida dessas populações, o que até foi objeto duma salutar declaração pública de repúdio pelo próprio sindicato dos funcionários da ASAE;
– Um incendiário florestal apanhado em flagrante delito o ano passado foi recentemente condenado, após provas irrefutáveis da prática do crime, a quatro anos de prisão com pena suspensa. Leu bem, caro leitor: “com pena suspensa”…
– Num folheto enviado há poucos dias aos proprietários florestais exige-se “cortar as árvores 50 metros à volta de todas as casas “ e acrescenta-se que “este ano, as multas são a dobrar”.
Façamos uma reflexão estratégica do que estes exemplos revelam sobre o que se está a passar.
Num país onde há poucos meses morreram queimados 120 cidadãos, o governo nem sequer anunciou que ia legislar para instituir penas mais severas para os incendiários e para poder dar mais meios e prioridade à investigação deste tipo de crimes.
Pelo contrário, envia a sua polícia de atividades económicas para as microempresas e os produtores familiares das regiões e das populações massacradas o ano passado, não para os apoiar, não para os promover, mas sim para os reprimir!
E em relação à anunciada via repressiva da chamada “limpeza da floresta”, a incongruência é também total.
É que a determinação do “corte das árvores a menos de 50 metros de todas as casas” é totalmente incompreensível.
Desde logo, porque a medida não se pode obviamente aplicar a todo o território nacional.
Basta pensar nas casas da serra de Sintra, dos concelhos de Oeiras e Cascais, do Bom Jesus em Braga, do Bairro de Caselas em Monsanto, e em tantas urbanizações e zonas de lazer espalhadas por todo o litoral português.
Então esta intimação aplica-se apenas a quem?
A “quem vive nas tais regiões mais esquecidas do poder central e se encontra longe dos gabinetes e das ruas onde se encontra o poder em Lisboa”, como referiu o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa no seu discurso de outubro do ano passado?
Mas ainda mais grave do que isso: num país onde não se tomaram medidas para escoar os milhões de toneladas de biomassa semiardida que continuam espalhadas por vastas zonas do Portugal interior, o que se vai fazer a estas novas quantidades de biomassa que o governo pretende agora que seja cortada sem ter antes criado qualquer tipo de incentivo ao seu necessário escoamento?
Nem isentando de IVA a biomassa para queima, nem permitindo a dedução em IRS das despesas com o corte da biomassa, nem reduzindo o IRC das empresas destas regiões, nem criando circuitos logísticos e parques onde esta biomassa possa ser armazenada com um mínimo de segurança.
E não esqueçamos que a biomassa, depois de cortada, seca mais depressa do que se permanecer em ciclo vegetativo – o que aumenta exponencialmente o risco de incêndio já no próximo verão.
E como as queimadas são proibidas a partir de finais do mês de abril, e infelizmente as centrais de biomassa são ainda muito poucas, todo este esforço dos pequenos proprietários, todas estas multas anunciadas, toda esta desorganização adicional do tecido produtivo destes 40 mil quilómetros quadrados de território servirão apenas para criar as condições para que tragédias ainda maiores possam vir a ocorrer.
Ou seja, será o massacre dos já massacrados pela calamidade dos fogos do ano passado.
De facto, a democracia portuguesa está muito longe de ter a qualidade que devia.
Professor do Instituto Superior Técnico
Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”