O que é a América?


Uma população que vive um sonho quase que por uma obrigação inconsciente, debilmente disfarçada e intrinsecamente desacreditada. No fundo, muitos são os americanos que (já) não acreditam no sonho fundador, que apenas vêm a sua miragem – o que não quer dizer que desistam de o perseguir.


Muitos foram aqueles que ensaiaram uma resposta a esta difícil pergunta. Por defeito de fabrico, o primeiro nome que me vem à memória é Alexis de Tocqueville, talvez não tão preocupado com a América per se, mas antes com a observação de como funcionava uma democracia, o que ditou uma escrita e um método descritivo, analítico e filosófico. Diferentes são, por exemplo, os quadros de Hopper ou os registos fotográficos do dinamarquês Jacob Holdt, estes focados em temas como o racismo, a família e a religião, ou as “superfícies americanas” do nova-iorquino Stephen Shore, que escolheu a paisagem em si mesma e objetos do dia-a-dia, como cinzeiros sujos ou símbolos tipicamente americanos, como os famosos diners. Nos livros, no cinema, seja qual for a sua fonte artística, parece vir tudo ou, pelo menos, o suficiente para construir um imaginário europeu sobre a América, com elementos que nos seduzem (como a vaga ideia do sonho americano), outros que assustam (como o padrão das cidades hipermodernas resumido pelos Chemical Brothers em “New York I love you, but you’re freaking me out”), ou que até criam em alguns de nós, europeus, uma sensação de superioridade civilizacional que seria inevitável tendo em conta o lado mais brutal e violento da história dos EUA e os seus alicerces, como o massacre dos índios ou a escravatura.

Nestes tempos em que quase todos os dias nos chegam notícias vindas dos EUA que tanto gostamos de comentar e de partilhar nas “redes”, por vezes partindo de uma perceção difusa e preconceituosa dos EUA, todos os registos e relatos sobre aquele país constituem instrumentos úteis e didáticos para compreendermos a atualidade americana e o mais recente acontecimento que surpreendeu o mundo: a eleição de Trump. Procurando algumas respostas dentro do tempo que o dia-a-dia me permite, recentemente tive o privilégio de “acompanhar” a jornalista e crítica literária Isabel Lucas pela sua “Viagem ao sonho americano”. Nesta aventura que relata, viaja do Alasca ao Texas, percorrendo 97 mil quilómetros num ano por uma América pré-trumpista e prestes a ir a votos. Isabel Lucas deixa-se guiar por um original critério: conhecer a geografia de 16 romances norte-americanos, as raízes e o ambiente social, cultural e económico dos seus autores. Esclarecendo uma série de preconceitos (como o do racismo, que a própria achava estar ultrapassado), Isabel Lucas dá-nos acesso a alguns dos elementos contidos no universo do sonho americano: as casas de jardins de relva e cercas brancas e o way of life nos subúrbios, o dogma do puritanismo norte-americano como estandarte camuflado e, sobretudo, a ideia de uma população que vive um sonho quase que por uma obrigação inconsciente, debilmente disfarçada e intrinsecamente desacreditada. No fundo, muitos são os americanos que (já) não acreditam no sonho fundador, que apenas vêm a sua miragem – o que não quer dizer que desistam de o perseguir. O sonho americano continua forte, pelo menos como desejo e como mito (o do individualismo e da glorificação do indivíduo), nesta América
que nos chega pela mão de Isabel Lucas.

Será difícil, depois desta viagem, dar uma resposta definitiva e final à pergunta que coloquei em título, sem prejuízo de nela encontrarmos algumas explicações para a eleição de Trump que, aliás, a autora identifica logo no início: desemprego e terror. De resto, e sobretudo, há também ainda esperança, a esperança na grandeza da América que, como nos é explicado, reside na sua tremenda capacidade de se reinventar e de dar a volta.

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