Molenbeek. Uma bica no ‘ninho de terroristas’

Molenbeek. Uma bica no ‘ninho de terroristas’


Molenbeek é considerado por muitos a incubadora do jihadismo na Europa, devido a ligações aos ataques mais mortíferos dos últimos anos. Mas o bairro de Bruxelas é muito mais do que isso. É também onde se pode beber uma bica bem portuguesa e comprar uns ‘chinelos de natação’ cravejados de pérolas.


Um ano e meio depois dos atentados de Paris, Molenbeek continua a ter fama de roteiro maldito, mas a comuna – uma das 19 de Bruxelas – rejeita o rótulo de ‘ninho de terroristas’ e está «empenhada em ser conhecida por bons exemplos», confessou ao SOL a presidente da comuna Françoise Schepmans, que garantiu haver «muito por descobrir» e deixa o convite para uma visita. Aceitamos e vamos tentar confirmar.

Mas o caminho não se avizinha fácil. Afinal, foi aqui em Molenbeek-Saint-Jean – é assim o nome completo – que nasceram, viveram ou passaram alguns dos responsáveis pelos ataques terroristas mais mortíferos dos últimos anos. Como Salah Abdeslam, nascido e criado no bairro, um dos responsáveis pelos ataques de Paris, que mataram 130 pessoas em novembro de 2015.

Perguntamos a um jovem na receção do Hotel Belvue, nos limites do bairro junto ao canal, quais são os locais a não perder. Ele parece estranhar a pergunta – feita em inglês – e responde, enquanto nos entrega um mapa: «São apenas 20 minutos até à Grand-Place, no centro de Bruxelas». Sugere o local mais turístico da cidade, rodeado de dezenas de chocolatarias.

Contrariamos a dica – até porque nem gostamos assim tanto de chocolate – e seguimos caminho junto ao canal que mais parece um muro a dividir a cidade, mantendo o centro de Bruxelas na margem certa. Este corredor de água é mais uma lembrança de que Molenbeek está ali ao lado, mas um mundo de distância separa a estátua do menino a fazer xixi dos talhos halal.

Esta divisão geográfica, e de alguma forma política, é reconhecida pelo ministro-presidente da Região Bruxelas-Capital, Rudi Vervoort, que garantiu ao SOL que o governo e a União Europeia estão a fazer esforços para eliminar a fronteira. «Queremos que o canal aproxime os cidadãos em vez de os afastar ou dividir». Esta tentativa de aproximar os habitantes começou pela reabilitação de edifícios, nalguns casos graças a fundos europeus, como o complexo Belle-Vue – uma antiga fábrica de cerveja que hoje acolhe três projetos sociais, incluindo o hotel onde o SOL ficou alojado.

O bairro de Molenbeek nem sempre foi conhecido como um ‘ninho de terroristas’. Nos seus tempos áureos a indústria era pujante, o que lhe valeu a alcunha de ‘Pequena Manchester’. Os problemas começaram com o declínio industrial, em meados do século XX. 

Com o passar dos anos e com a falta de meios da comunidade, os prédios degradaram-se, abrindo caminho para a fama de gueto que a comuna ganhou ainda antes do movimento migratório de magrebinos, na sua maioria de origem marroquina. Nos anos 60, centenas de famílias muçulmanas vieram viver para aqui. O início da construção das infraestruturas e túneis do metropolitano da capital belga foi na época o principal impulsionador de postos de trabalho para estes novos residentes.

A integração não foi e continua a não ser fácil. A zona reúne uma série de problemas económicos, políticos, sociais e, claro, culturais, que fazem do bairro um cocktail explosivo. Molenbeek parecia ser o sonho de qualquer fundamentalista islâmico à caça de seguidores.

A estranheza do rececionista do hotel perante alguém que estava interessado em conhecer o bairro é só mais um sinal do problema de imagem que prevalece. Ou talvez tenha sido uma dificuldade de comunicação, previsível num país com três línguas oficiais – francês, flamengo e alemão – outro fator que dificulta a inclusão, hoje a nossa, mas diariamente a das famílias que lá vivem.

Uma coincidência de datas

Há pouca gente na rua para uma segunda-feira e a maioria das lojas está fechada. É 5 de junho, feriado nacional na Bélgica, curiosamente o dia de Pentecostes. A data, importante no calendário dos cristãos, foi celebrada este ano em pleno Ramadão, a época dedicada ao jejum e à oração dos muçulmanos. Muitas boutiques, cafés ou mercearias, sem esquecer os tradicionais talhos halal, estariam abertos, não fosse a coincidência entre as duas datas.

O bairro parece calmo, não há polícia, municipal ou militar, nada parece indicar que a cidade está num nível de alerta 3, o segundo mais elevado, o que significa que ainda existe uma séria e credível ameaça. As autoridades de Bruxelas ainda pensaram reforçar a segurança após os recentes ataques em Manchester e em Londres, que provocaram a morte a 30 pessoas, mas não o fizeram.

Aliás, a Praça Communale, o coração do bairro de Molenbeek – a mesma que se encheu de jornalistas e polícias em 2015, nos dias que se seguiram aos ataques de Paris -, não parece a mesma. Está praticamente vazia, à exceção de um grupo de mulheres sentadas num dos lados, e de duas ou três famílias, todas muçulmanas, que por ali passeiam com os seus filhos de bicicleta.

Perante este cenário, ninguém diria que este é um dos bairros com maior densidade populacional do país. Em seis quilómetros quadrados «vivem 100 mil pessoas, na sua maioria jovens», afirmou ao SOL Françoise Schepmans, acrescentando que «cerca de 60% são de origem marroquina».

Ao percorrermos aquelas ruas, a percentagem que a autarca refere parece desfasada da realidade: dá a sensação de ser ainda maior. Só mesquitas são pelo menos 20, mas apenas uma pequena parte está identificada.

Nos passeios, nas pracetas e nas lojas, as poucas que estão abertas, quase só se veem muçulmanos, principalmente mulheres. A primeira coisa em que reparamos é que quase todas usam o lenço islâmico, que cobre o cabelo, as orelhas e o pescoço e é normalmente designado por hijab. Vimos apenas algumas mulheres, de idade mais avançada, com o chador, uma espécie de manto que usam por cima da roupa e que tapa o corpo todo à exceção da cara. O lenço mais simples é de longe o mais utilizado.

Vestidos de gala para usar só em casa

O facto de ser a única parte descoberta faz com que prestemos mais atenção ao rosto de cada uma destas mulheres. É impossível não reparar na sua beleza, no cuidado com que se apresentam. As sobrancelhas estão arranjadas na perfeição. E nas pálpebras ou nas maçãs do rosto nota-se o brilho de uma maquilhagem muito subtil, mas sempre presente.

Quase todas vestem túnicas de cores discretas, mesmo as mais novas, o que não deixa de ser curioso tendo em conta a quantidade de lojas de vestidos de tons berrantes que ali existem. Não há tecidos brocados, pérolas ou brilhantes suficientes para aqueles vestidos compridos que, aos nossos olhos, eram dignos de uma gala da televisão ou do cinema, onde seriam certamente o centro das atenções.

Aqui é ao contrário. Estes milhares de vestidos estão reservados para usar em casa, somente na presença dos maridos e de alguns familiares. E não é exagero dizer milhares. Estas lojas de vestidos estão para Molenbeek como as de chocolate belga estão para o centro de Bruxelas. Porta sim, porta não, encontramos uma montra cheia de manequins coloridos.

Num dia mais cinzento, como neste feriado, com chuva miudinha mas incómoda, um par de chinelos não seria a escolha mais óbvia para sair à rua. No entanto, o bairro reservava ainda mais uma surpresa, nos pés das mulheres que ali vivem. O último grito da moda em Molenbeek parecem ser chinelos – daqueles com uma tira grossa tipo natação -, forrados a tecido brilhante e cravejados de pérolas e bijuterias a imitar pedras preciosas.

Um milagre de café

Estamos cansados de andar e os dois ou três ‘baldes’ de café belga que já bebemos nada fizeram pela nossa necessidade diária de cafeína, que só um verdadeiro expresso acalmaria. Mas onde é que vamos encontrar um sítio em Molenbeek que nos sirva uma bica? Deambulamos pelo bairro durante mais um bocado, em busca de algo que possa alimentar o vício. 

A demanda não está a ser fácil, mas eis que vemos a palavra ‘Miracle’ escrita no toldo de um pequeno bar de esquina. O nome parece sugestivo demais para não entrar e atrás do balcão lá está a tão desejada máquina. Pedimos os cafés e sentamo-nos. O empregado, árabe como seria de esperar, vem com duas chávenas que deixa em cima da mesa. Soltamos uma gargalhada ao olhar para os pires onde se pode ler ‘Delta’.

A boa surpresa, apenas mais uma do bairro, ajudou a recuperar do cansaço das pernas e voltamos novamente às ruas. Passamos por mais uma banca de chinelos e não podemos deixar de pensar que, por trás daquelas pérolas, há ainda muitas feridas por cicatrizar, a memória dos raides policiais frequentes é ainda muito presente.

A presidente da comuna reforça essa ideia e recorda a ansiedade em que todos os habitantes viveram até à captura de Salah Abdeslam, quatro meses após os atentados. «Foi muito duro», recordou Françoise Schepmans. Durante muito tempo «houve ações policiais todos os dias», que resultaram em várias detenções. Mas «essas pessoas não representavam Molenbeek», frisou.

O problema é a visão que as pessoas de fora têm do bairro e que acaba por estigmatizar os habitantes, cuja inclusão já é extremamente difícil. Prova disso é a taxa de desemprego, que aponta para os 28%, números que chegam aos 40% nos mais jovens.

A pobreza, aliada à densidade populacional e à dificuldade de uma integração profissional, faz com que os habitantes muçulmanos em muitos casos se relacionem apenas com os seus familiares e vizinhos, acabando por sair pouco de Molenbeek, o que aumenta a sensação de gueto.

Três multibancos para 26 mil habitantes

Em 2015, um entre as centenas de artigos que se escreveram sobre Molenbeek referia que havia três caixas multibanco numa zona onde viviam 26 mil pessoas. Não conseguimos confirmar esta informação oficialmente, mas encontrámos apenas um multibanco e a fila de pessoas à espera para o utilizar dava a volta ao quarteirão.

A autarca afirma que os residentes são cidadãos muito ativos e com muitos talentos, no entanto o rótulo que lhes foi posto parece retraí-los ainda mais. «Acabam por preferir ficar na sua zona de conforto, concentrando-se naquilo que já conhecem», lamenta Françoise Schepmans, sublinhando que o bairro se quer cada vez mais aberto ao mundo e que isso já está a acontecer: «Não temos só problemas, Molenbeek é também um local de oportunidades».

Prova disso é Aboubakr Bensaihi, talvez o ‘filho’ mais ilustre da comuna. Nascido e criado aqui, este jovem de 20 anos disse ao SOL que tem muito orgulho nisso, embora reconheça que o estigma é bem real.

Aboubakr Bensaihi tornou-se conhecido após ter protagonizado o filme Black, que teve muito sucesso na Bélgica e chegou a ganhar um prémio de cinema no Canadá. A história é uma espécie de Romeu e Julieta dos tempos modernos, mas em vez de famílias rivais, Mavela e Marwan são de gangues rivais. E em vez da bonita Verona, o romance proibido tem como cenário uma Bruxelas pobre, periférica e violenta.

O filme estreou no mesmo ano e no mesmo mês dos ataques de Paris. E ambos os eventos ficaram colados para sempre em Aboubakr Bensaihi, por motivos obviamente diferentes. Com Black conheceu a fama e conseguiu outro papel numa série flamenga muito popular. Com Paris, foi a sua ‘terra’que ficou famosa e pelas razões mais erradas. «Afetou-me muito. Afetou-nos muito a todos. Não percebia o que passavas nas notícias e não sabia bem no que acreditar», recordou ao SOL.

O jovem, que é também rapper, tem a mesma opinião de Françoise Schepmans: «As pessoas de Molenbeek têm muito talento mas não saem da sua área geográfica e emocional, porque têm medo de ser estigmatizadas». Um medo justificável, dirão muitos, pois o ‘cadastro’ da comuna não nasceu ou sequer morreu naquela fatídica sexta-feira à noite na capital francesa.

O ataque na estação de metro de Madrid Atocha, em 2004, que causou 193 mortos, também tem ligações a Molenbeek. Aqui viveu Hassan el-Haski, tido como um dos autores morais do atentado. Também por aqui passou o franco-argelino Mehdi Nemmouche, que abriu fogo no Museu Judaico de Bruxelas, matando quatro pessoas.

Em janeiro de 2015, os ataques ao Charlie Hebdo e a um supermercado kosher, que fizeram um total de 17 vítimas mortais, também tinham rasto em Molenbeek, onde Amedy Coulibaly terá ajudado a comprar as armas usadas pelos irmãos Kouachi nas instalações do jornal satírico, tal como as que ele próprio utilizou para matar uma polícia e quatro reféns na loja judaica.

Poucos dias depois, as forças especiais belgas mataram dois jihadistas nascidos na mesma comuna e que estariam a preparar um novo ataque. Ainda no mesmo ano, em agosto, foi deste bairro que Ayoub el-Khazzani partiu para um comboio que fazia a ligação entre Amesterdão e Paris, munido de várias armas. Valeu a intervenção de dois turistas norte-americanos, ambos militares, que o imobilizaram. 

Já em 2016, os atentados numa estação de metro e no aeroporto da capital belga podem ter ocorrido como uma forma de vingança após a detenção de Salah Abdeslam, que andou fugido das autoridades durante quatro meses até ser apanhado. Onde? Em Molenbeek.

Reerguer o bairro

Aboubakr Bensaihi, um ator conhecido, diz que ainda hoje tem «algum receio quando a polícia pede a identificação e vê que está lá escrito Molenbeek».

Este é um fardo demasiado pesado para os habitantes carregarem. E todos acham que já chega de o fazerem. A ‘fama’ involuntária do bairro trouxe muitas coisas más, mas obrigou o Governo e o resto da Europa a porem o dedo na ferida e a fazerem uma espécie de mea culpa, por terem negligenciado uma parte da cidade, que desde então se tornou uma zona prioritária.

«Nasci e cresci em Molenbeek. Como ator e rapper tenho agora a oportunidade de inspirar a próxima geração. É do interesse de todos lidar com o desemprego, ajudar os jovens mais vulneráveis e eliminar a pobreza e a exclusão social», disse o protagonista de Black durante uma apresentação do complexo Belle-Vue, financiado pela União Europeia, que acolhe três projetos de inclusão social no bairro. Para Aboubakr Bensaihi «os resultados estão claramente à vista e o impacto da nova dinâmica pode ser visto pelo bairro inteiro».

A apresentação do complexo, alojado numa antiga fábrica de cerveja, foi organizada pela Comissão Europeia com o objetivo de mostrar que os fundos europeus podem contribuir para combater a exclusão.

O evento contou também com a presença da comissária europeia para a Política Regional, Corina Cretu, que sublinhou o empenho da União Europeia em usar os fundos para criar uma «sociedade mais igualitária e inclusiva em qualquer ponto da Europa».

Para a responsável, estes projetos são o exemplo perfeito do que pode ser feito para promover a inclusão social. Com eles, as pessoas podem «melhorar as suas capacidades através da formação e do convívio com outros, além de beneficiarem de orientação vocacional».

Os três projetos – Hotel Belvue, Molenbeek Formation e Art2Work -, combinam a requalificação da herança industrial e histórica do local, oferecendo melhores hipóteses de um futuro profissional para os seus residentes.

O hotel de três estrelas – onde ficámos alojados e onde Aboubakr Bensaihi encontrou alguns amigos de infância a trabalhar -, tem um sistema de aproveitamento de energia que o permite ser sustentável. E é lá que os jovens que frequentam a Molenbeek Formation, para receber formação em hotelaria, põem em prática o que aprenderam. E cerca de 20% dos formandos residem no bairro.

Já o Art2Work é um centro de formação para jovens que precisam de um novo começo de vida, ajuda-os a dar os primeiros passos em direção ao mercado de trabalho.

Molenbeek começa assim a arrancar o rótulo de ‘ninho de terroristas’. A aposta é na formação para diminuir o desemprego e no turismo para trazer pessoas novas ao bairro, renovando-o. Françoise Schepmans fez o convite para se visite o bairro, porque «há muito por descobrir». E tem razão.