Era Alfacinha da Silva, mas nasceu em Montemor-o-Novo (1949-2007). A tonalidade inocente e macia do pseudónimo, Alface, não a apreciava fora das saladas. E não o convencia a Literatura-bonitinho que entra, aveludada e respeitosa, na academia para sair com boas possibilidades de artigos em revistas da especialidade e representações na selecta. Quando pressentia o eloquente, a pompa e o enfado, não facilitava: passava ao largo, corria-lhes à frente, punha-se a milhas. Juntava fugas e escapes à verborreia oca como quem, por desfastio, colecciona selos. Sempre soube proteger a sua prosa do entusiamo das maiorias. Irreverente, da estirpe dos provocadores, carimbava os livros com marca única. E não enfileirava em elencos, mas sabia produzi-los como testemunha o romance “Cá Vai Lisboa”, publicado em 2004 pela insubstituível Fenda.
Localizado no universo político/autárquico português, o dorso da história resume-se em poucas palavras. A confortáveis dois anos das eleições para a câmara de Lisboa, o actual presidente, Frederico de Almeida, conhecido entre os funcionários dos serviços de saneamento básico por Fede Rico, vê-se confrontado com o propósito de um clube de maioria gay, o Rosa Tatuada, se candidatar à representação da tradicionalíssima Alfama nas marchas dos santos populares, em posição de igualdade com todas as outras agremiações da cidade.
Acérrimo defensor de minorias (“étnicas, sociais, comportamentais, religiosas, artísticas, ideológicas, sexuais. De todo o tipo. Mas é que de todo”), o “Big Edil” é a figura que pior parece lidar com problemas, sobretudo quando o dinheiro ou a “diplomacia de passinhos” não podem resolvê-los. Tem objectivos claros: “harmonizar contrários e banalizar o anómalo”. E receitas seguras: “a preparação atempada do futuro, semear para colher. semear envelopes, colher votos”. A sua divisa, orgulhosamente exibida, “Começar, sempre; acabar, nunca”, é ilustrada com profusão de exemplos pelo narrador sarcástico: “Bonito, não? E profundo, dialéctico, fino”.
A exuberância da narrativa, feita de peripécias como um concurso de arremesso de sardinha espanhola (“uma Pátria não se manda pelo ar”) ou a mudança de sexo do presidente da agremiação gay, faz-se anunciar na cor garrida da portada – o rosa-chock. A intenção paródica está estampada nos versos da contra-capa, de qualidade duvidosa e de um sabor desordeiramente popular que o santo padroeiro dificilmente aprovaria: “Anda ver Lisboa a arder/ Anda tudo pelo ar/ Ai amor já estou a ver/ Ai amor estou a gostar”. E pode bem colidir com mentalidades todas rubor na face, adeptas das belles lettres tradicionais, a exigirem que a linguagem se exerça de forma substancialmente diferente daquela que aqui se pratica, a oscilar entre a erudita figura de estilo e a frase feita, o preciosismo e o palavrão.
A colorida língua portuguesa perde com frequência a elevação; nas suas notas fadistas e ganidos consonânticos, por vezes achincalhados, salta da boca das personagens, percorre ruas escusas, vielas, desce escadinhas íngremes, sobe a bairros onde se dedilha a guitarra portuguesa e se sente o cheiro da tradicional sardinha assada, pingando fumegante em fatias de broa sobre toalhas floridas com nódoas de vinho. É a própria língua pátria, versátil e bem manobrada, a subir e a descer ao sabor dos caprichos da topografia da cidade.
A Lisboa onde decorrem as acções, que se sucedem a um ritmo endoidecedor, não desagradasse a Alface a “moleza das personagens”, não é, claro está, a Lisboa burguesa de Eça de Queirós, sempre absorvida em ocupações mornas, ou a “capital do reyno” de Lobo Antunes, essa cidade lúgubre e suja. É uma Lisboa que, embora só forçadamente se possa aproximar da cidade formato postal de José Cardoso Pires, “está cada vez mais bonita” e, por isso, não teme abanar-se na Avenida. A capital perde a cosmopolita imagem promocional e civilizada (pese embora o empenho das “educadíssimas gaivotas evitando defecar nos turistas”), para existir como conjunto diverso e vibrante, de respiração genuinamente bairrista: “os gatos seguiam as televisões ao colo das donas, os homens semeavam tinto, os rapazes espetavam-se por dá cá aquela palha, as raparigas maldiziam do Tejo, os putos cruzavam telhados, as putas meditavam de esquina”.
Alfacinha até ao tutano, esta populosa paródia organizada, a um tempo, em forma de sátira e de homenagem, faz desfilar “figuras obrigatórias” – da cantadeira de lágrima solta ao cauteleiro, passando pelo Armando da tasca ou pelo Camané, na sua camisola de alça, a olhar “a maralha de baixo para cima como os chulos da beira-rio” – e “figurões facultativos” que ferem, uns pela diferença, outros pela vulgaridade abjecta, o retrato da tradição machista e fadista da cidade.
Penetrar no universo diegético de Cá Vai Lisboa, centrado no ponto alto da Lisboa popular – as marchas dos “santos estivais” onde, à porfia, desfilam pela Avenida da Liberdade todos os bairros típicos da cidade, “a saber: Alfama, Bairro Alto, Bica, Castelo, Graça, Madragoa e Mouraria. A fina-flor”, resumirá o irónico narrador –, é conviver intensamente com a desordem e com a comicidade burocrática. É vasto o espectro: extensos dossiers e matérias de transparência nebulosa, tratados da “União dos euros”, discursatas, relatórios e pareceres que em vão se multiplicam, guaritas e sinetas de antanho, avais camarários, linhas programáticas de fruto inane (“harmonizar passado e futuro sem descurar o presente”) e, claro, manifestos gay – “eram como eram, iguais aos demais, nem menos nem mais, pessoas a tempo inteiro”.
Inspirada na religiosa marcha solene que anualmente calcorreia “as pedrinhas alfamosas”, a procissão a que assistimos nas páginas iniciais falar-nos-ia suficientemente do caos. Encabeçado pelo terrível padre Costa, homem de “língua afiada”, transforma-se o cortejo sagrado em profana prova de atletismo e exercício de perícia, sobretudo para quem não quer levar com “dejectos e escarretas ateias [que] chovem das janelas”. À agilidade física, expressa também na “compita de manguitos”, vem juntar-se a agilidade proverbial, inclusive a do religioso, e a destreza narrativa do autor. A escrita, a captar gestos e sonoridades profanas, ganha ritmo, cor e movimento exaltado nas mãos ligeiras de Alface.
Se transitarmos da esfera religiosa para a esfera do profano, a desordem não é menos intensa. O Torneio das Sete Colinas, cuja realização é entregue ao decrépito Real Ateneu Bicaense, “responsável pelo solucionar de quaisquer trapalhadas surgidas, e trapalhadas eram mato”, termina com a inesperada derrota de Alfama frente à Bica e em clima de batalha campal que ecoa, certamente pela importância que a prova adquire na vida alfacinha, a própria batalha de Aljubarrota relatada por Camões. Não lhe faltam os camonianos recontros sonoros, capazes de evocar artilharia pesada, nem uma inovadora troca de pensos rápidos. A confusão paródica torna-se audível à distância, não estivesse em jogo um troféu colectivo: “Voavam cadeiras, voavam navalhas, robalos voaram e sardinhas e taças columbófilas e merendas de pão de segunda e garrafas e latas. Racharam-se cabeças e queixais, pisaram-se mães e filhas, madrastas e enteadas”.
Nunca chegaremos a ver os anunciados arcos e balões. O que aqui desfila são os pecados capitais, como se a cidade alfacinha se tivesse convertido numa hidra de sete cabeças demoníacas. A todos eles vem juntar-se um outro, não menos significativo – o pecado lesa-literatura, não fosse Alface um autor à margem da chamada instituição literária e dos seus protocolos. Contra a literatura. A favor da literatura.