Depois do desaparecimento do histórico Estrela da Amadora, o estádio José Gomes, na Reboleira, ficou ao abandono. Portas vandalizadas, bilheteiras que serviam de depósito de lixo, torniquetes partidos, o museu abandonado. Lá dentro, a erva daninha simulava um relvado normal, havia balizas sem redes e cadeiras partidas. Hoje, a realidade do José Gomes já não é esta. O estádio está recuperado, há relva, redes nas balizas e centenas de jovens e crianças a treinar lá diariamente.
A responsabilidade é do Clube Desportivo Estrela (CDE), fundado em 2011 com o objetivo de perpetuar a história do antigo Estrela da Amadora – mas que põe os olhos nas irresponsabilidades do passado para não as repetir. António França, o presidente da direção, confirma: «O nosso objetivo era não deixar apagar a memória de um clube que tem tantas conquistas a nível nacional», ainda que fosse necessário «cortar com o passado».
António França, um estrelista de gema que acompanhava o antigo clube de norte a sul e que agora é o líder do novo CDE, explica que o passado turbulento do Estrela da Amadora faz com que haja alguma desconfiança por parte dos amadorenses neste novo projeto: «Há muitas mágoas por carpir, ainda estamos à volta de muitas coisas que foram mal feitas, muitas tristezas e muitas desconfianças». Havia quem não acreditasse que ainda se haveria de jogar futebol ali, mas «estamos cá». «Temos sete equipas de competição na Associação de Futebol de Lisboa e oito outras equipas lúdicas. Temos mais de 200 crianças em competição todas as semanas», orgulha-se.
A recuperação do estádio José Gomes, onde jogaram tantas estrelas no futebol nacional, era mais um ponto de honra para a direção de António França. «Era um sonho que perseguíamos desde o início, apesar das dificuldades. Quando foram criadas condições, em 2014, tomámos a decisão de voltar para o José Gomes. Foi uma grande vitória», sublinha.
Ricardo Almeida, de 18 anos, é o médio-centro da equipa de juniores e, além disso, ainda treina a equipa de benjamins do CDE. Também ele tem recordações do José Gomes: «Sempre que havia jogos eu vinha ver com o meu pai, era um ambiente espetacular. É aqui que me sinto em casa. Gosto muito do Estrela».
Este Estrela não é o único que conhece. Jogou no antigo coletivo – o Clube de Futebol Estrela da Amadora (CFEA) – nos escalões mais jovens, agora está no novo CDE e reconhece as diferenças: «O ambiente é diferente. Noto que no anterior Estrela não havia tanta química como há neste Estrela. Agora isto é uma casa, estamos todos em família. Há mais dedicação e união».
Treinar os benjamins significa trabalhar com crianças com 10 e 11 anos de idade que já não têm memória da grandeza passada do Estrela, mas Ricardo Almeida faz questão de lhes explicar quem foram os jogadores que, outrora, pisaram aquele estádio tal como eles. «É importante relembrar a história do Estrela. Eles não têm noção do que este clube já foi e do que já atingiu», diz. História, essa, que anima os mais novos: «Falo do antigo Estrela e eles ficam logo motivados. O facto de este campo já ter sido pisado por algumas das figuras mais importantes do futebol nacional e agora serem eles a pisá-lo é algo que os motiva, claro».
João Palma, atual treinador adjunto da equipa de juvenis, concorda e refere que explicar aos miúdos o que foi o Estrela «é um dos princípios deste clube». «Tentamos transmitir isso. Muitos não se lembram de ver jogos do Estrela na primeira divisão, mas tentamos mostrar-lhes», diz o treinador que também fez parte da equipa técnica dos escalões jovens do antigo Estrela na sua última temporada de existência.
«Sinto este clube como o clube do coração. Cada treino, cada jogo é uma grande responsabilidade e um prazer ainda maior», refere. «A grandeza do nosso clube vê-se na motivação de quem vem aqui jogar contra nós, isso dá-nos um gosto especial. As equipas vêm aqui e sabem que estão a jogar contra um grande clube nacional. Na distrital não há nenhum estádio com estas dimensões e isso é um fator extra de motivação tanto para nós, como para os adversários», acrescenta.
O sentimento de injustiça por o clube estar a disputar estas divisões inferiores é comum a estes estrelistas. «O nosso objetivo é retirar o clube desta realidade, o Estrela não merece estar nestas divisões. Pela sua história, dimensão, pela gente que nos acompanha aqui e nos jogos fora, é um clube que merece outros patamares», diz João Palma. «Estamos a fazer um excelente trabalho na formação e acredito que vamos sair do ‘inferno’».
E o futuro?
O futuro «depende dos apoios da cidade e dos sócios», diz João Palma. António França concorda, mas alerta para os perigos que já fizeram mossa no passado: «É algo que já vem de antes, a cidade nunca esteve muito ligada ao CFEA e esse foi um dos sintomas de que alguma coisa estava mal. Parece-me que as mentalidades se alteraram um pouco porque quando se questiona as pessoas sobre o Estrela, toda a gente acha que foi uma pena o que aconteceu. A cidade esteve muito afastada».
Mas não foi só isso. Os grandes de Lisboa também causam estragos: «Sofremos do crónico problema de estarmos numa periferia de Lisboa e de estarmos à beira dos maiores clubes nacionais. As pessoas tinham dois amores e, na maioria dos casos, o primeiro amor nem era o da casa. Vivemos esse drama permanentemente, também o vivemos hoje».
Hoje, o Clube Desportivo Estrela tem cerca de 250 jovens atletas a treinar e o relvado natural do José Gomes ressente-se, o que faz com que o objetivo imediato seja colocar um relvado sintético no campo de treinos, imediatamente ao lado do estádio, que agora é pelado. «Estamos a fazer um esforço enorme para conseguir cumprir as nossas responsabilidades de arrendamento do espaço e manutenção da relva natural», confessa António França. «Temos a ambição de colocar um relvado sintético no campo n.º 2 que agora é pelado porque isso dá-nos a possibilidade de trazer mais atletas e de não estragar tanto este relvado natural. Esse passo é fundamental», explica.
«A Câmara Municipal da Amadora tem demonstrado muita disponibilidade e vontade em ajudar-nos, mas muitas vezes esbarra nas questões jurídicas do processo», lamenta. O espaço ainda está sob insolvência, o que complica o processo e o crescimento do CDE.
Depois do sintético no campo de treinos, há que sonhar mais alto: ter duas equipas de iniciados de futebol de 11, duas equipas de juvenis, duas equipas de juniores e «lá mais para a frente» ter uma equipa de seniores.
A questão impõe-se: lá mais para a frente quando? «A nossa vontade era arrancar com isso já no próximo ano, mas vejo as coisas com muita dificuldade para não dizer que é impossível», diz o presidente. Nos próximos três ou quatro anos? «É possível que sim, mas um passo desse tamanho agora poderia pôr em causa todo o trabalho feito até aqui».
Outro dos grandes objetivos de António França é a criação de uma equipa feminina de futebol. «É um sonho que tenho», admite.
Qualquer que seja o caminho, o passado deixa um grande peso: o de preencher o lugar na história que o antigo Estrela da Amadora deixou vago. E aqui é preciso separar as águas: «Temos de separar bem aquilo que era aquele ‘monstro’ e aquilo que é hoje. Apesar de estarmos a atingir uma dimensão com algum relevo, é completamente diferente», diz António França. O Clube Desportivo Estrela tem atualmente sete equipas jovens em competição na Associação de Futebol de Lisboa (entre benjamins, infantis, iniciados, juvenis e juniores) e cerca de 1300 associados – muitos transitaram do CFEA.
As diferenças são grandes, mas os novos dirigentes querem continuar «a defender aquilo que é o Estrela. Este é o Estrela da Amadora e ponto final». «A associação que se faz entre um e outro é uma responsabilidade muito grande até porque queremos honrar as pessoas que deram muito ao clube, tal como o falecido José Gomes [presidente do CFEA entre 1976 e 1989], que foi um homem extraordinário que pôs um clube regional a jogar na primeira divisão. A nossa obrigação é perpetuar a memória dessa gente», diz.
Neste processo, não é só o clube que precisa da cidade. É também a cidade que precisa do clube. «Durante muitos anos, a Amadora foi falada porque se faziam cá as carruagens da CP na Sorefame [fábrica especializada em componentes elétricos e mecânicos e que entretanto também foi extinta em 2001], mas a cidade começou a ser muito mais falada a partir do momento em que o Estrela coloca a Amadora no mapa. A partir daí toda a gente fala da Amadora por causa do Estrela, que foi indiscutivelmente o maior embaixador da cidade. Infelizmente não foi devidamente reconhecido, a cidade esteve muitas das vezes de costas voltadas para o clube», recorda com alguma angústia António França.
O desaparecimento do antigo Estrela ainda provoca tristeza nos estrelistas, principalmente aos envolvidos no reerguer do clube da cidade. É também por isso que não há antigos dirigentes do CFEA no novo CDE: «Havia sempre desconfianças e reservas ao iniciar o este projeto. Nós achámos que tínhamos de cortar com o passado e o cortar com o passado passa também por aí. Assistimos ao definhar do Estrela e fizemos os nossos julgamentos, também fomos juízes», explica o homem que está à frente deste novo Estrela.
Se no passado reinou a descrença, agora a Amadora olha para as gerações mais novas com esperança. Que o diga Ricardo Almeida, que quer colocar o Estrela nos píncaros onde já esteve: «Estamos a seguir a história do antigo Estrela e queremos chegar lá acima outra vez, fazer com que o clube suba aos níveis onde outrora chegou». E, se depender da juventude, o futuro do clube está salvaguardado: «Todos os anos há mais miúdos a entrar para as escolas de formação, tem havido um grande progresso e cada vez com mais sucesso. Os miúdos chegam com um sonho que todos partilhamos, erguer o Estrela», garante o treinador e jogador. Ricardo até já imagina o futuro, daqui a muitos anos: «Gostava de chegar ao pé dos meus filhos e dizer que o clube está na primeira divisão graças ao trabalho que fizemos na altura».
O passado a reerguer
Substituir o Estrela da Amadora não será nada fácil e a história prova isso mesmo. São anos, décadas, de primeira divisão, títulos, jogadores e treinadores que ninguém esquece.
O Estrela habituou-se a estar na linha da frente do futebol, mas o maior feito aconteceu na Taça. O Estrela foi ao Jamor na época de 1989/1990 vencer na finalíssima o Farense, clube também ele histórico que acabaria por sucumbir de forma semelhante aos amadorenses. 2-0 foi o resultado do jogo que daria ao Estrela o único título do seu palmarés. Curiosamente, o primeiro golo desse jogo foi apontado por Paulo Bento, o antigo jogador de Benfica e Sporting, treinador dos leões e até da seleção nacional, que começou a carreira no Estrela.
Se quisermos contar as estrelas que passaram pelo Estrela, há que falar da formação: além de Paulo Bento, a Amadora viu nascer também Dimas, Abel Xavier, Miguel, Jorge Andrade, Calado, Chainho, e Paulo Ferreira.
No banco do Estrela também se sentaram técnicos que acabariam por marcar indelevelmente o futebol nacional: João Alves, Manuel Fernandes, José Mourinho como treinador-adjunto, Toni, Quinito, Jesualdo Ferreira, Jorge Jesus e Fernando Santos.
Pelo relvado do estádio José Gomes passaram ainda jogadores como Chalana, já em fim de carreira, Rui Águas, Ivkovic, Jorge Cadete, Kenedy, Luís Vidigal, o egípcio Sabry, o campeão da Europa José Fonte, o guarda-redes do Benfica Paulo Lopes e o ex-portista Silvestre Varela, entre outros. Uma constelação.
A 29 de setembro de 2009, o Tribunal de Sintra declarou o clube como insolvente e o clube passou a disputar as divisões inferiores até desaparecer totalmente. No último jogo de futebol de seniores, o Estrela perdeu com o Real Massamá por 1-0 – um final inglório. Já o último jogo do Estrela na primeira divisão também acabou em derrota, desta vez por 2-1 frente ao Rio Ave. Pedro Pereira marcou, na altura, o último golo do Estrela no escalão principal. Agora, fazem-se apostas de quando é que o Estrela voltará a marcar ao mais alto nível.