O oráculo do Lavradio


O sábio dos novos tempos não pensa, repousa num qualquer oráculo escolhido a preceito e acaba por decidir pairando nas nuvens


Uma democracia de qualidade exige que os governos apliquem de forma criteriosa os recursos escassos de que dispõem. E, mais ainda, quando se trata de um país muito endividado e com uma carga fiscal absurda, como Portugal, os governos têm de eliminar o investimento em infraestruturas redundantes, que representam injustificados custos de oportunidade face a melhores alternativas, para além de criarem capacidades excedentárias não produtivas e exigirem outras complementares.

Exemplo óbvio de infraestrutura redundante é o Terminal Portuário do Barreiro, investimento de 800 milhões de euros cuja construção a ministra do Mar vem garantindo que “será mesmo uma realidade”…

Pensam muitas das mais representativas e independentes entidades portuguesas como, por mero exemplo, a Ordem dos Engenheiros, que, havendo Sines, a prioridade seria o desenvolvimento daquele porto. E o mesmo refere a Universidade Católica do Porto. Estas, entre outras, foram entidades que, pensando e estudando o tema, se pronunciaram contra um investimento redundante, considerando-o “inútil”, “um desperdício de recursos” ou um exemplo de “mau investimento público”. Não são ouvidas.

Sócrates, o filósofo, que pensava e era um sábio, foi ridicularizado por Aristófanes e acusado de andar nas nuvens, na comédia com esse mesmo nome. E, pior ainda, foi condenado a beber cicuta. O mesmo, com a exceção da cicuta, está a acontecer a quem se atreve a pensar fora da geringonça, quanto mais não seja por atentar contra os afetos. Na política, então, a completa ausência do ónus de pensar tornou-se o modo natural de vida e fonte de generosos proveitos. O sábio dos novos tempos não pensa, repousa num qualquer oráculo escolhido a preceito e acaba, ele sim, por decidir pairando nas nuvens.

Também eu, por aproximação ao tempo novo, decidi consultar um competente oráculo, o do Lavradio, que me deu os argumentos bastantes para confirmar o Barreiro como o melhor sítio para construir um magnífico e excitante terminal portuário

O primeiro argumento é tecnológico: não se pode desperdiçar a oportunidade de se constituir um cluster na área do exercício das dragagens, bem como no da reciclagem e enriquecimento das lamas, tarefa geradora de emprego permanente devido à constante acumulação daquela preciosa matéria-prima.

O segundo é económico: o dinheiro vai ser predominantemente gasto em importações ou nas remunerações dos trabalhadores imigrantes, e assim estamos a ajudar os outros países a sair da crise. E quanto mais depressa eles saírem, mais depressa nós entramos em crescimento.

O terceiro é ético: o TPB é instrumento essencial para dar o conteúdo justo à distribuição da riqueza nas parcerias público-privadas, em que o primeiro P define a natureza do negócio (parceria); o segundo P, quem arca com os custos e os riscos (público); e o terceiro P, quem fica com o benefício (privada).

O quarto é desenvolvimentista: como não é justo que as mercadorias fiquem encalhadas no Barreiro, o TPB obrigará a novas pontes, novas autoestradas, novas linhas de caminho-de-ferro, novos comboios, novas PPP, reforçando o argumento antecedente.

O quinto é de oportunidade: se não se construir já o TPB, prejudica-se a sua construção para todo o sempre, dado o risco de se transformar o local numa plataforma ecológica fluvial para abrigar no litoral os excedentes dos linces da Malcata.

O sexto é diplomático: o TPB é o complemento natural do porto seco de Badajoz, com as sinergias a potenciarem-se num futuro canal de ligação, ficando os nossos vizinhos reconhecidos por mais um acesso ao mar. Ao mesmo tempo, promove-se uma benéfica concorrência entre a ferrovia e o transporte fluvial.

O sétimo visa a defesa da concorrência: o TPB impede que o porto de Sines se torne dominante, com as consequências nefastas daí advenientes, nomeadamente em termos de domínio monopolista de Singapura na Europa.

O oitavo é político: o TPB seria um porto para durar um século, o que retiraria a outros governos a oportunidade de construir outro na foz do Trancão daqui a meia dúzia de anos!…

O nono é técnico: só o TPB, dada a natureza do acesso, permite o exercício pleno dos skills e virtualidades da pilotagem, o que não acontece em Sines, de acesso demasiado fácil para as artes da navegação.

O décimo, e definitivo, é religioso: se ministros da geringonça dizem que o TPB é investimento estratégico, se não acreditarmos na geringonça, em quem é que podemos ter fé?

P.S. Averiguei agora que, por coincidência, a geringonça recorreu também à pitonisa do Lavradio para fundamentar o investimento. Estou, pois, no caminho dos sábios. Um oráculo amigo é a solução, substituindo o mero pensar que, para além de dar trabalho, pode levar à cicuta, como aconteceu com o grego. Livra!…

E assim vamos nesta democracia, cuja aferição de qualidade deixo aos leitores.

 

Economista e gestor

Subscritor do manifesto “Por Uma Democracia de Qualidade”