Silêncio. Pelo caminho das pedras

Silêncio. Pelo caminho das pedras


O filme de que Martin Scorsese fala há quase 30 anos está finalmente aí. Mas esta adaptação da obra de Shusaku Endo sobre a perseguição ao cristianismo no Japão do século XVII está longe de ser um dos seus melhores filmes.


Era 1989 e Martin Scorsese viajava de comboio no Japão, onde estava para participar num filme de Akira Kurosawa, como Van Gogh. Tinha passado um ano da estreia do polémico “A Última Tentação de Cristo” e como companhia de viagem Scorsese tinha um livro japonês, “Silêncio”, aclamada obra de Shusaku Endo sobre os padres apóstatas e a perseguição ao cristianismo no Japão do século XVII. Foi o princípio de “Silêncio”, cujos direitos Scorsese tratou de comprar assim que regressou da viagem ao Japão e do qual vem falando deste então, que vem finalmente completar a sua trilogia da fé, depois daquele filme de 1988 e de “Kundun” (1997).

E 30 anos de vontade serviram para fazer um filme bonito mas não chegaram para que fosse tão bom quanto podia ter sido. Escreve o “New York Times” que é um filme deste tempo que vivemos, ao trazer-nos com o passado uma entrada para a reflexão sobre “muitos dos problemas de um presente pós-secular”: as crenças em verdades universais, o conflito entre a fé e a sua expressão, o silêncio de Deus perante o sofrimento dos crentes, está tudo lá. “Não sei se há aqui uma redenção”, disse o realizador ao diário norte-americano. Se há forma certa de viver, prossegue, “tem a ver com o altruísmo. Eu acredito nisso. Mas como é que isso se faz? Não acho que seja uma coisa que se pratica conscientemente. Tem que ser uma coisa que se desenvolve em nós – talvez através de muitos erros.”

Mas vamos ao passado e a esta história, que é a de Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver), dois padres jesuítas portugueses, enviados ao Japão à procura do padre Cristóvão Ferreira (Liam Neeson), seu mentor, que se suspeita ter renunciado à sua fé, resultado da perseguição aos cristãos japoneses levada a cabo pelo Xogunato Tokugawa, ditadura feudal estabelecida no Japão no início do século XVII por Tokugawa Ieyasu e que durou até 1868. Chegados a esse Japão hostil à sua religião, os dois jovens padres acabam por ter que se separar, ponto a partir do qual acompanhamos sobretudo Rodrigues e a sua viagem interior que tem início quando começa a questionar-se sobre o silêncio de Deus perante as atrocidades cometidas contra os seus fiéis e a pôr ele próprio em causa a sua fé.

Isto ao longo de mais de duas horas e meia que depressa se provam mais compridas do que deviam, num filme belo, sim (Scorsese foi rodá-lo a Taiwan) mas igualmente aborrecido e que dificilmente deixará satisfeitos os fãs do realizador de “Taxi Driver” e “O Lobo de Wall Street”. O mesmo para os mais devotos que, observa a “Variety”, poderão encontrar em “Silêncio” um filme “demasiado violento”, e para as massas que Scorsese procura claramente atrair com as escolhas de Andrew Garfield (o Peter Parker de “Homem-Aranha”) e de Adam Driver (vilão do mais recente capítulo de “Star Wars”) para protagonistas.

“Adoro a forma como se move, a consciência que tem de si próprio na câmara”, explicou o realizador ao “New York Times” sobre a escolha de Adam Driver. “Para o papel do Garupe, precisávamos de alguém que tivesse o aspeto de ter vivido naquele período — algo que não acontece com muitos atores. O_Adam parece saído de uma pintura holandesa ou italiana. E tem aquela voz notável de barítono.”

O problema é que nem todos os detalhes parecem ter merecido a mesma atenção por parte de Scorsese, sobretudo aqueles a que estará mais sensível o público português. Adam Driver, que se tem revelado um dos mais interessantes atores americanos da sua geração, pode até ter perdido 20 quilos, pode até ter feito, como fizeram Garfield e Neeson, o ritual de iniciação dos padres jesuítas para a preparação do filme. Mas é difícil desligarmo-nos do desequilíbrio que é ver de um lado um vasto e brilhante elenco de atores japoneses representar em japonês e do outro três atores americanos fazer de portugueses a dizerem “Deus” e “padre” em sotaque americano. Talvez venha daí também, mais do que do questionamento de uma fé que afinal pode perder o sentido quando se está o outro lado do mundo, o vazio que se sente nestes personagens.

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