Nascido da adaptação do thriller bestseller da escritora inglesa nascida no Zimbabué, Paula Hawkins, o filme “A Rapariga no Comboio”, em cena nos cinemas em Portugal – e onde, em apenas duas semanas, foi visto por 140 mil espetadores –, leva-nos numa viagem a um mundo de segredos, mentiras, arrependimentos, paixões e assassínios. Emily Blunt é a atriz que nos dá a conhecer a personagem Rachel Watson, uma mulher divorciada, deprimida e a entrar numa espiral de alcoolemia. Nas viagens de comboio que faz diariamente até Nova Iorque, Rachel imagina a vida de um casal que vê a partir da sua janela, aparentemente perfeito: Scott (Luke Evans) e Megan Hipwell (Haley Bennett) são bonitos, resolvidos e muito apaixonados. Esse casal vive perto da casa que Rachel costumava partilhar com o seu marido Tom, antes de um caso de infidelidade destruir a sua relação. Hoje, Rachel é uma mulher perturbada pelo seu passado e quando descobre que aquele casal, que aparenta ser perfeito, não o é, acaba por envolver-se numa teia de mistério que poderá vir a ser mais perigosa do que aquilo que esperava.
Depois de ter participado em filmes como “O Diabo Veste Prada”, “Looper – Reflexo Assassino”, “No Limite do Amanhã” ou “Sicario”, Emily Blunt fala-nos agora deste “A Rapariga no Comboio”, filme realizado por Tate Taylor (de “As Serviçais” e “Despojos de Inverno”), e que foi um dos desafios mais exigentes da carreira da atriz. A começar pelo facto de ter estado grávida na altura da rodagem, passando também pela complexidade à volta da perturbada personagem Rachel, que assume não ser uma mulher pela qual se crie uma empatia automática. Ainda assim, este é um papel que Emily diz importante para marcar uma posição na indústria cinematográfica de Hollywood numa jornada pela cada vez mais necessária igualdade de sexos.
O que é que sentiu por este guião quando o leu pela primeira vez?
Creio que encontrei no guião um padrão duplo. É provável que as pessoas fiquem intrigadas com a aura de antipatia com que estas mulheres são pintadas, no entanto vemos muitos filmes como este só que com homens com os traços de imperfeição. Esta é uma história mais rara e é por isso que estou tão orgulhosa de poder ter feito parte de uma obra que faz sobressair o facto de também as mulheres cometerem erros, todos os dias, por serem seres humanos, por viverem experiências humanas. Acho que se abusa muito deste tipo de mulheres. É comum ouvirem-se histórias sobre isso. Sinto que essas mulheres são muitas vezes são postas umas contra as outras e acabam por se diminuir com estas situações, sentindo-se incompletas. Mas, em última instância, acabam por conseguir-se unir.
Como foi interpretar este papel estando grávida?
O primeiro trimestre de gravidez foi cheio de momentos de náuseas e cansaço e esses foram os momentos que mais me custaram. Não tenho por hábito torturar-me com os papéis que faço e teria sido impossível viver comigo se eu, nessa altura, andasse a viver no universo da personagem Rachel. Tive mesmo que encontrar formas de me desapegar e desligar. Tornei-me na rainha das sestas rápidas durante as gravações. Diziam-me: “Emily, tens dez minutos…” e eu ia a correr para o meu camarim [imita o ato de adormecer e ressonar]. Adorei.
A sua personagem está constantemente a ser vítima de abusos psicológicos. Como foi interpretar uma mulher assim?
Foi muito entusiasmante porque tínhamos uma diretora de fotografia [Charlotte Bruus Christensen] que conseguiu registar esses momentos de uma forma muito bonita: adorei a ideia dela filmar aquilo que pensamos que vemos, mas não vemos, e a curta linha que separa a nebulosidade desses momentos, que estão ali tão perto, da fácil manipulação. Foi algo muito visual e emocional que se tentou capturar. Tive de interpretar o papel de alguém que não se conseguia lembrar de tudo e que tinha uma realidade enviesada daquilo que tinha acontecido. Por isso, a combinação de eu estar a passar por todas aquelas emoções, com a diretora de fotografia a tentar registar tudo de uma forma bela, em termos visuais, acaba por criar um impacto muito bom nos espetadores.
Qual foi a cena mais difícil de filmar em termos emocionais?
Há uma cena numa casa de banho na estação Grand Central, em Nova Iorque, com um bâton no espelho que é o auge do alcoolismo desenfreado da Rachel. Mas, nesse momento, ela precisa de estar também assustada para que o espetador a pudesse ver à luz de uma suspeita viável, de uma mulher perigosa. Essa cena foi muito importante, daquelas em que em que tem de vir tudo ao de cima. Houve muitas cenas de grande desafio emocional, mas eu nunca sei muito bem como as filmar, até porque eu não ensaio. Decoro o texto de uma forma muito enciclopédica. Tento não interpretar até à altura em que realmente tenho de o fazer. É que, de certa forma, é nessa altura que acabo por descobrir algo mais espontâneo, algo que nunca pensei que pudesse fazer. Lembro-me de a Charlotte [Bruus Christensen] me perguntar o que é que eu ia fazer e eu responder que não sabia. “Eu também não!”, disse-me ela. Então acabámos por fazer uma dança ao longo dessa cena, que acabou por ser revigorante e emocionante. Parece que vivemos só para aquele momento em que o ar vai mudando na sala. Páras de pensar e tentas apenas fazer algo com aquele instante. Acho que estou cada vez mais consciente de que o meu primeiro instinto é o correto.
Rodar um filme pode ser difícil com a ditadura dos horários das gravações, com a pressão de conseguir filmar tudo dentro dos planos de rodagens. Como é que lida com isso?
Este filme exigiu muita coordenação. Estava muito concentrada, todos os dias. Ia para o trabalho a pensar:_“Onde é que estive, de onde venho, onde é que estou agora, qual o estado de alcoolemia…” Houve, de facto, muita atenção porque filmámos fora da sequência do filme e havia muita coisa para experimentar ao mesmo tempo. Para a diretora de fotografia também foi assim: muito para experimentar e tentar capturar. A sequência do túnel, por exemplo, foi muito desafiante porque estava a tentar mostrar diferentes variações possíveis numa cena, mas também a mostrar o que aconteceu verdadeiramente e ainda a tentar deixar o público confuso. Mas quando é que mostramos isso? Foi um filme complicado de rodar e também de editar, por isso a linha cronológica foi algo em que estava sempre a pensar, para que a personagem pudesse ter uma trajetória e não um só registo.
A indústria do cinema começa a ter personagens mais complexas para as mulheres. Isso quer dizer que estamos a mudar?
Creio que é um processo lento. Não sei se já tivemos uma alteração tão repentina, ao estilo de um tsunami. É ainda uma onda-bebé. Mas creio que é um tópico que entrou na discussão em torno de Hollywood e espero que continue, porque as mulheres estão a provar, constantemente, que também dão lucro e é um bocado isso que faz Hollywood andar para a frente. É como se fosse um confronto entre a arte e o lucro – e agora há uma espécie de impasse entre os dois. Espero que “A Rapariga no Comboio” ponha fim à ideia de que só devemos fazer filmes para adolescentes.
Sente que isso já mudou nos bastidores? E na sociedade em geral?
Não sei. Acho que vai acontecer e só temos é de continuar a tentar, para continuarmos a ter grandes papéis para mulheres. Devemos apoiar as guionistas que, inevitavelmente, vão ser mais sensíveis a criar papéis para mulheres. Começa por baixo e vai por aí acima. Se nós estamos a falar sobre isso, quer dizer que se espera que as coisas mudem. Mas também precisamos de agir mais e falar menos, criar melhores projetos para mulheres que querem juntar-se à indústria do cinema.
Acha que as pessoas vão apoiar mais filmes como este?
Vamos ver como é que reagem, mas há uma razão para terem, desde já, adorado o livro. Não se coíbe de mostrar o interior de uma vida doméstica, nem de mostrar brutalidade ou de sublinhar que estas personagens são mulheres pouco agradáveis em muitos sentidos. Acredito que as pessoas possam rever-se em vários aspetos das personagens.
Entrevista cedida pela Universal Pictures