A caminho de Orly vem-me à cabeça a canção do Chico Buarque. “Se puder me manda uma notícia boa.” Há boas notícias sopradas de França. Portugal regressa a casa com a Taça Henry Delaunay, que premeia o campeão da Europa. Doze anos passados sobre a desilusão grega do Estádio da Luz, eis que o destino marca a sua hora.
“Nem todos os que regressam a casa são vencedores; mas não há vencedor que não regresse a casa”, escreveu um dia Bertolt Brecht. Os vencedores regressaram ontem a casa. Com a alegria única de uma vitória até aí nunca conquistada, caçadores da frustração que há anos paira sobre a seleção nacional, algozes da França que amaldiçoa vezes sem conta em todas aquelas meias-finais sofridas, sofridas, que pareciam não ter fim.
“Vai meu irmão, pega esse avião” No momento em que escrevo, Portugal regressa a casa e a uns dias alegres no país triste. Vai para o povo que o espera de braços abertos, comemorando a vitória quase inacreditável. Porque foi um Portugal estranho. Um Portugal diferente daqueles de 2000, 2004 ou 2006, sempre numa voragem de ataques às vagas, sempre a ir ao fim da sua criatividade e da sua imaginação.
Fernando Santos – o grande vencedor da final de Saint-Denis, sobretudo quando se decidiu pela aposta em Éder – avisou desde cedo que iria ficar em França até ao dia 11 de julho e que não se importava de empatar os jogos todos, vencendo-os nos penáltis, se isso garantisse a conquista da taça. Não precisou de tamanho exagero. Mas a equipa que disputou palmo a palmo, centímetro a centímetro, segundo a segundo a final de Paris foi bem a imagem de um conjunto preparado para a luta e disposto a ir ao ponto mais alto do sofrimento.
A perda do seu capitão, logo no início da contenda, por via de uma entrada assassina de Dimitri Payet, que por mais branqueada que seja pela imprensa gaulesa não deixa de ser de uma violência atroz, mais acentuou essa imagem de Mãe Coragem e seus 11 filhos (que acabaram por ser 13). Houve um apelo ao coração. A um coração imenso de alma lusitana. Jogava-se contra um país, contra um povo. Portugal soube desmontar o segredo dessa luta desigual: foi mais do que uma equipa, foi mais do que milhões – foi um só. E nessa solidariedade estiveram a medrar fundo as raízes da vitória.
“Não, não diga nada…” É tempo, agora, de festejo e de descanso. Não. “Não diga nada que me viu chorando…” As lágrimas de Portugal. As lágrimas de Cristiano Ronaldo em 2004; as lágrimas de Cristiano Ronaldo em 2016, quando uma patada o atirou borda fora de uma final que tinha tudo para ser sua. Incapazes de perceber que havia Portugal para além de Ronaldo, os franceses redobraram de confiança. Mais tarde ou mais cedo, na sua conceção errónea do tempo, chegariam ao golo e, com ele, à vitória já há tanto tempo anunciada. E como não? De 1984 até ontem, nas fases finais de grandes competições organizadas em França – Euro-84, Mundial-98 e Euro-2016 –, nunca a seleção gaulesa tinha perdido um jogo frente ao seu público. Um registo notável que torna ainda mais notável a vitória lusitana.
Não, não diga nada porque as palavras se tornam supérfluas à medida que todas estas lembranças se instalam confortavelmente na aldeia branca da nossa memória. Foi lindo! Um combate de espadachins até à morte. Golpe, golpe e contragolpe. Cada vez mais feroz à medida que o final se aproximava. Até que um mosqueteiro alto e negro como uma figura milenar das escrituras desferiu a sua espadeirada derradeira. A lâmina afiada do seu remate atingiu a França entre a quarta e a quinta costela: foi direita ao coração. A dor azul.
Os portugueses invadem os Campos Elísios, o Trocadero, os arredores da Torre Eiffel. A sua alegria é a alegria da libertação. Por toda a madrugada hão de ouvir-se os claxons dos automóveis e os gritos de “Portugal! Portugal! Portugal!”
Ninguém os fará calar. Só talvez a rouquidão.