Aos 98 minutos da meia-final entre Portugal e França, no mesmo estádio de Marselha no qual, amanhã, a seleção nacional irá defrontar a Polónia, Chalana foi direito a Jean-François Domergue e fingiu ir centrar com o pé direito e centrou mesmo. Mas não foi assim tão simples. Primeiro fingiu apenas, e puxou a bola para dentro; depois fingiu outra vez, desta vez com o esquerdo, e puxou a bola para fora. Domergue sentiu a cabeça a andar à roda como numa vertigem. Aí, o centro partiu.
Do outro lado estava Jordão: viu a bola cair na sua frente e chutou de primeira fazendo-a bater no chão e subir por cima da cabeça de Joel Bats e entrar na baliza da França – 2-1. O silêncio caiu, pesado, sobre o Velodrôme.
“O problema” – contou-me Chalana muitos anos depois – “é que os franceses sempre se convenceram de que eu era canhoto e, depois, admiravam-se de eu jogar muito com o pé direito e até bater penáltis com esse pé. Nunca fui canhoto. Tudo o que fazia com o pé esquerdo era por intuição e por muito trabalho quando miúdo, sempre a tentar melhorar a relação dele com a bola. Com o tempo tornou-se igual para mim: jogava com um pé e com o outro indiferentemente”.
No livro “Platoche”, biografia de Michel Platini, Jean-Philippe Leclaire aponta as três cidades como o tríptico mágico da vida do antigo nº 10 da França: Sevilha (3-3 com a RFA, derrota nos penáltis); Marselha (3-2 a Portugal no prolongamento); Guadalajara (1-1 com o Brasil, vitória nos penáltis).
Marselha de novo no caminho de Portugal. Agora para uns quartos-de-final, face à Polónia.
O Velodrôme mudou entretanto. E tanto. Das bancadas descobertas ao fecho do estádio que parece hoje, ao longe, uma das velhas “casquettes” coloniais dos franceses na Indochina.
Quem fazia companhia a Chalana, do lado esquerdo dessa seleção de 1984, era Álvaro Magalhães: “Que jogo, amigo! Que jogo! Tristeza pela derrota mas um dos pontos mais altos da minha carreira. Da carreira de todos nós. Meias-finais de um Campeonato da Europa contra a favorita França, num estádio à pinha, e quase ganhámos. Mais um pouco de atenção, mais um pouco de concentração e teríamos, pelo menos, chegado aos penáltis.. Foi pena. Mas entrámos na história do futebol português”. Entraram para não mais saírem.
“Chalana era um fenómeno” (Álvaro Magalhães) O que Chalana e Jordão fizeram nesse jogo só foi ultrapassado por Bento. Sofreu dois golos de Domergue e um de Platini (24’, 114’ e 119’) mas defendeu o impossível. Uma vez, na Escócia, os jornais ingleses chamaram-lhe “Rubber Man”, o Homem de Borracha. Em Marselha, no dia 23 de Junho de 1984, Bento foi de borracha e teve nervos de aço, principalmente na primeira parte do jogo. Paz à sua alma!
“Todos os que vivemos o Mundial de 1982, temos um fantasma para exorcizar, o das grandes penalidades frente à Alemanha Federal, em Sevilha. Os portugueses sabiam bem disso quando nos quiseram empurrar para a decisão do jogo por penáltis. Nós sentimos que tínhamos de fugir deles fosse como fosse. Foi um esforço impressionante. Eu já não podia com as pernas!”, diria mais tarde Michel Platini numa entrevista ao L’Équipe.
“O Chalana era um fenómeno” – continua Álvaro – “um jogador absolutamente genial que fazia da bola o que queria, tanto com o pé direito como com o pé esquerdo. Nesse jogo coube-me auxiliá-lo em muitos movimentos ofensivos e dera uma maravilha vê-lo jogar. Impressionante!”
Não chegou. Depois do 2-1 de Jordão (já marcara o primeiro de Portugal, o do empate 1-1, aos 74 minutos, concluindo um centro precioso de Chalana de pé esquerdo, do lado esquerdo), a França deu a volta.
Álvaro de novo: “Chalana aparecia na esquerda e na direita e dava cabo da cabeça aos defesas franceses. O que ele fez a Domergue, no segundo golo, é de deixar qualquer um louco. Domergue vingou-se marcando-nos dois golos”.
Faltou pouco, muito pouco “Faltou-nos saber ter um pouco mais de manha, de experiência. Quando Tigana aproveitou uma recuperação de bola de um lance entre mim e o Chalana, lá na frente do nosso ataque, e desatou a correr em direção à baliza, havia que tê-lo parado. O Lima Pereira ou o Eurico deviam ter feito falta. Deviam tê-lo impedido. Eu recuei o mais depressa que pude, mas só tive tempo de o ver passar pelo João Pinto e tocar atrasado para o Platini que chutou por alto, junto à trave. Senti um frio pela espinha abaixo. Tínhamos estado tão perto e perdíamos no último minuto do prolongamento. Porque éramos uma equipa que queria atacar, que queria ir à procura do golo, e esticámo-nos no campo dando espaços. Se tivéssemos optado por queimar tempo, por segurar a bola não tínhamos sofrido esse golo”.
E agora? Marselha outra vez, mas com a Polónia, não com a França. A mesma vontade de ir longe. De ir procurar a taça que Portugal nunca ganhou. “É verdade que o futebol da nossa seleção não tem sido brilhante” – reflete Álvaro Magalhães – “mas fomos pragmáticos e batemos a Croácia, também graças ao enorme talento dos nossos três avançados. Ronaldo está sempre lá quando é preciso, Quaresma tem uma qualidade extrema, Nani também tem estado bem. E depois há o miúdo, o Renato Sanches, que é um craque e já devia ter tido oportunidade de jogar como titular. Acredito que isso vai acontecer contra a Polónia. Ele dá outra dinâmica ao meio-campo. A equipa com ele mexe muito mais, tem outras soluções. Por isso digo que já tinha merecido entrar de início, embora o Fernando Santos é que saiba o que se passa. Eu sinto que com esses três jogadores da frente, que são muito, muito bons e com o Renato poderemos chegar longe. É o que todos nós desejamos”.
Reviver o passado em Marselha. Onde começa o futuro. Quinta-feira se saberá se Portugal volta a jogar uma meia-final do Campeonato da Europa, que seria a sua quinta, segunda consecutiva. Até lá, o Tempo corre. Como sempre.