É um dos mais populares artistas brasileiros, um dos elementos do “Porta dos Fundos”. A poucos dias de regressar a Portugal com a peça “A Noite na Lua”, em que se fala de um homem que, em vésperas de subir ao palco, não tem texto, Gregório Duvivier, conhecido pela sua oposição ao processo de impeachment fala da situação no Brasil, em como dizia Tom Zé: “quem não está confuso é porque está mal informado”.
Assistiu à votação do impeachment?
Sim.
E o que lhe passou pela cabeça?
Primeiro, a falta de qualidade do congresso brasileiro. Se não é corrupto é mal informado. E sobretudo é cristão conservador falando de família e Deus, como se isso tivesse alguma coisa a ver com o assunto. O julgamento [do impeachment] é em relação à responsabilidade fiscal, o que não tem nada que ver com religião e família. Vários falaram, votando “sim” ao impeachment, elogiando os militares e os torturadores, o que é claro é que a Dilma não está caindo por causa de corrupção, mas em nome de um projeto novo da direita. A gente sabe muito bem o que significa a evocação de palavras como Deus, família, militares e golpe de 64. A gente tem de agradecer aos deputados por deixarem claro os motivos pelos quais eles estão votando. Eu sempre soube que essa luta contra a corrupção era uma farsa, mas há gente que acha que não, e está mesmo convencida que se a Dilma cair, vai ser bom para o Brasil, que vai ficar um país menos corrupto. Assistindo à votação, espero que fique claro, para as pessoas, que se ela cair, não é por causa de ser corrupta – ela não está acusada em nenhum processo –, mas sim porque nunca se investigou tanto a corrupção. E porque, nestes últimos 13 anos, começou-se a fazer, lentamente, um governo de esquerda. Ela está caindo por causa da distribuição de renda [rendimento].
Uma coisa que impressiona é que, nas sondagens da Datafolha, o deputado Jair Bolsanaro, que defende a tortura e a violação de mulheres, é o candidato preferido pelos mais ricos e tem mais votos nas pessoas com maior grau de instrução.
No Brasil a elite é extremamente retrógrada e não quer o progresso. Tem muita gente que enriquece com a miséria. Quando um governo distribui renda, ele cai. Já aconteceu nos anos 60, com o golpe militar. O crime da Dilma é a distribuição de renda. O crime do PT é ter começado a fazer um governo de esquerda. A gente vive num país que nunca fez reforma agrária.
Neste segundo mandato da Dilma, muita gente considera que ela até fez uma política de direita: cortou nos planos sociais e isentou os mais ricos de impostos…
Exatamente, a Dilma até tentou agradar a direita, mas ela não consegue, porque os mais ricos a veem como “terrorista”. Ela é uma “terrorista” porque lutou contra a ditadura militar. Mesmo que ela faça um governo totalmente à direita, como ela vem fazendo, não adianta: ela será sempre uma terrorista, para essa gente. Dá pena ela não ter percebido isso, e ter governado para aqueles que de facto a elegeram. Ela governou para aqueles que mais a odeiam. Essa é a parte triste, ela conseguiu não ser gostada por ninguém.
É difícil fazer humor hoje no Brasil?
É difícil, porque embora o humor se alimente do ódio, quando tem ódio demais ele acaba perdendo a graça, porque fica panfletário. É bastante difícil fazer humor no Brasil, por causa disso: Quando você vê, o ódio acabou contaminando o seu humor. E é muito difícil você não ter ódio nos dias de hoje.
Consegue sair à rua com esse clima de ódio?
Consigo, há uns caras que gritam: “comunista”, mas isso, para mim, não é ofensa e não me intimido. Acho que o pior fascismo é aquele que não é declarado: se as pessoas estão gritando na rua, saíram do armário. Para isso serviu esse clima, para os tirar do armário e mostrar que o fascismo é um monstro vivo no Brasil. Um monstro que é alimentado por muitos, sobretudo pela grande imprensa. Há gente que defende a tortura sem nenhuma vergonha na cara.
Como é possível explicar este clima de ódio?
Hoje, a polarização parece gritante, mas ela é gritante, no Brasil, sempre. A diferença é que, antigamente, quando se queria impedir a distribuição de renda, fazia-se um golpe e os que protestavam eram executados, como morreram centenas torturados durante a ditadura militar. Qual a razão porque, hoje, parece existir mais esse clima de ódio? Porque o outro lado tem voz: pela primeira vez, você vê a população oprimida tendo voz. Quando você vê pedirem o impeachment, vão milhões à Avenida Paulista; mas vão também milhões, para as ruas, vestidos de vermelho: as pessoas que tiveram a vida melhorada com o PT também vão às ruas, pedindo a permanência do governo. E o lado de cá, o vestido de vermelho, não se vai calar. Vai ser muito complicado, porque a gente teve no Brasil uma eleição jogada fora. Este impeachment foi na verdade uma eleição indireta, como a gente tinha na ditadura, uma eleição feita pelo congresso. A gente não vai tolerar, porque as diretas nos Brasil foram duramente conquistadas.
No “Porta dos Fundos” não têm todos a mesma opinião política, como conseguem, neste clima de ódio, continuar juntos e criarem coisas novas?
Mesmo não tendo a mesma opinião política, a gente consegue ter alguns elementos em comum: esse presidente do congresso, Eduardo Cunha, é um deles: acho que não tem ninguém que o defenda. O Cunha e o Temer [vice-presidente] unem o Brasil. Qualquer pessoa séria, de esquerda ou de direita, odeia esses homens: são o reacionarismo junto com a corrupção. São o pior que existe no Brasil. Conseguem ser corruptos ideologicamente e financeiramente. Essa coisa que a elite diz que o PT teria inventado a luta de classes, que o Brasil não era dividido e que chegou o PT e disse aos pobres que os ricos eram inimigos e que, de repente, o Brasil ficou dividido entre ricos e pobres, é mentira. O Brasil sempre foi um país dividido e um país esclavagista, em que os ricos lutaram para manter os seus privilégios, e usaram todos os meios, inclusive a imprensa, para perpetuarem a sua dominação. Sempre pareceu um país uno, quando na verdade sempre existiu luta de classes. Não foi criada nos últimos dez anos: Há pouco tempo, metade da população era escrava.
Mas não acha que o PT rapidamente se tornou muito igual aos partidos da elite ao usar métodos e instrumentos corruptos, como o mensalão, para se perpetuar no poder, e tolerando a corrupção dos seus dirigentes e o desvio e apropriação dos dinheiros públicos?
Claro, por isso que não voto PT, não sou “pêtista” e não uso essa camisa. O que o PT fez foi usar as mesmas ferramentas das elites corruptas do Brasil. É claro que ele fez, também, distribuição de renda e tirou 40 milhões da pobreza no Brasil, e é muito difícil não ser sensível a isso. Ainda assim, não voto PT. Acho que é possível alcançar o poder sem ser corrupto, nem usar essas ferramentas. É por isso que voto à esquerda do PT: em geral no PSOL e nos partidos que estiveram no PT e que debandaram quando viram no que o partido se estava tornando. Mas mesmo os partidos como o PSOL não conseguem não ficar do lado do PT, quando a luta é do PT contra o PMDB e PSDB, que são partidos que visam a perpetuação das elites no poder. O PT embora corrupto e, algumas vezes, com comportamentos fascistas, é, como dizia o humorista brasileiro Millôr Fernandes, diferente: “todo o governo é fascista, mas tem fascista que dá pão”.
Isso não parece demasiado “o rouba mas faz”?
Não (risos), é diferente disso. Até porque foi a primeira vez que se investigou a corrupção no Brasil. O que se pode dizer do PT é que: rouba mas deixa investigar. Isso já é muita coisa no Brasil. Aqui em 500 anos ninguém foi preso. O Collor caiu mas não foi preso, como foram, desde o mensalão, os deputados do PT. Pela primeira vez na história do Brasil, você tem a independência da Polícia Federal e do poder judiciário. Você tem hoje políticos, e, mais importante, donos de empreiteiras bilionários atrás das grades. Até isso é mérito do PT: se você tem esses presos, não é porque nunca se roubou tanto, mas porque nunca se investigou tanto. É muita ingenuidade achar que antes os políticos não eram presos, porque não roubavam. O que existe hoje é uma independência da polícia e do judiciário.
É mesmo independente, a justiça, ou está ligada a outros interesses?
É independente do poder executivo, o que já é um enorme avanço. Mas está dependente de um monte de outras coisas, que naturalmente geram outros problemas. Com a imprensa é a mesma coisa. Para mim, o problema da imprensa não é falar mal do PT. Aqui 70% da imprensa é dominada por cinco famílias, num país de 200 milhões de habitantes. A imprensa dessas cinco famílias têm uma posição assumidamente contra o PT. É bom ter um país que tem uma imprensa livremente contra o governo. O problema, para mim, não é o que a imprensa noticia contra o PT, é o que ela não noticia: a imprensa brasileira não falou nos Panama Papers. Ela deu notícias pequenas na última página, mas não lhe deu a primeira. A imprensa das cinco família não acha que seja um caso para ser noticiado. Foi primeira página no “The New York Times”, “Le Monde” e em jornais de países que estão muito menos envolvidos e que têm muito menos políticos metidos no Panama Papers do que o Brasil. Em nome de quem se está escondendo esses factos? Você tem uma imprensa em que o mal não é falar mal do PT, isso é uma obrigação, mas que esconde um oceano de corrupção dos outros. Vão tirar a Dilma, vai assumir um Michel Temer ou um Eduardo Cunha que são mil vezes mais corruptos, que vão calar as investigações. As pessoas vão ficar felizes e satisfeitas porque o PT caiu e vão falar assim: “os principais culpados já pagaram, podem acabar as investigações”. Nenhuma investigação jamais vai ser conduzida por réus. Tanto Michel Temer como Eduardo Cunha, como Renan Calheiros, os três na linha sucessório, são réus, mais do que investigados eles estão incriminados. Vão deixar que a Lava Jato continue? A única que está a permitir a investigação é a Dilma, e é por isso que está caindo.