O escândalo ocasionado pelas revelações dos designados Panama Papers não é o primeiro e não será o último. Na verdade, esta denúncia feita pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, e que resultou de uma fonte não identificada, deveria ser designado como Mossack Fonseca Papers, a sociedade de advogados que em 40 anos de atividade criou mais de 250 mil empresas offshore.
A finalidade da criação destas sociedades é clara: ocultar incumprimentos fiscais, desvios de verbas estatais de líderes corruptos, lavagem de dinheiro do crime organizado do tráfico de droga, armas, seres humanos e diamantes.
As vantagens tributárias e o sigilo que garantem atraem os investidores, juntando sob a mesma proteção o traficante mafioso, o criminoso de guerra, o corrupto e o empreendedor milionário de imaculado nome e público perfil.
Na realidade, os Panama Papers são um facilitismo que serve o imaginário de um local misterioso e exótico, com palmeiras e lingerie, e nos remete para um estado catatónico, perdidos entre o “Miami Vice” e “As Aventuras de Tintim”.
Mas do que realmente se trata é que as offshores em geral, e a sociedade de advogados Mossack Fonseca em particular, são símbolos, conexão e instrumentos da natureza predatória do capitalismo.
É a natureza corrupta do sistema, a verdadeira causa que está na origem da imoralidade e da injustiça que promovem a pobreza e a desigualdade de milhões em todo o mundo, consentindo o desvio dos dinheiros públicos roubados à economia legal e a limpeza das fortunas procedentes das atividades criminosas.
Não é por acaso que aos locais para esconder as fortunas acumuladas no delito, na infração e na iniquidade chamam paraísos. Isso torna tudo mais intangível e quase sagrado.
Algures na evolução capitalista, o gangster de revólver fundiu-se de sangue e interesses com o financeiro de colarinho e bolsa e com o empresário da roda. Este ménage à trois pariu o gangster económico.
Com ele inauguram uma época louca. Desenvolvem modelos, criam produtos tóxicos e vícios artificiais, comprimem e expandem. Fazem magia financeira.
Subsidiam guerras e investem na bonança, inventam ditadores amigos e repressões aceitáveis, abrem rotas e veias, patenteiam a prostituição, o trabalho infantil, o tráfico humano e o turismo sexual, compram igrejas e casam mafiosos com administrações globais, expandem as indústrias dos fármacos e das moléstias, do medo e da ladainha. Vendem bolha imobiliária e a hipoteca subprime.
Por luxo, devoram milhões de seres humanos, assim excluídos por destino e maldição. Engolem civilizações, culturas e raças, e globalizam a poluição, a miséria e o terror.
Abocanham espécies e esventram o planeta de riquezas que transferem por swift. Preparam a ida para Marte.
Blindados, vivem alucinados em apartamento de oxigénio enriquecido, sob uma teia pacientemente criada de sinuosas e inesperadas cumplicidades jurídicas, financeiras e políticas.
São maquilhados e ideologicamente explicados por sábios que ao roubo chamam tese, por beatos de crença que garantem a retidão e pelos testemunhos opinativos da maltosa que, de alma e mão alugada, torce e sufoca os factos até que os desgraçados aparentem aquilo que é imprescindível parecer.
Recorrem a tudo, sem pudores ou éticas embaraçosas. Sem pátria, olham o mundo como o seu pedaço, sem medo da justiça terrena – já pagam a quem lhes trate disso e, quanto à divina, não a receiam, porque consideram Deus um dos seus.
Na base, tudo é alegremente suportado por uma infindável legião de populares que, dependurados nos galhos do preconceito e da imbecil cegueira, aplaudem de orgulhosa burrice, bramindo: “Doutor, excelentíssimo, senhorito, dom, eminência, eu também sou dos vossos, sirvam–se, levem tudo, e desculpem por estar de costas.”
É nesta massa anestesiada que reside o maior perigo: a sua indiferença é o espaço ideal para que, após uma manifesta surpresa e ensaiada indignação, tudo fique na mesma.
Os factos agora conhecidos dizem respeito a uma única sociedade de advogados, é só a ponta do iceberg. Isto permite imaginar a dimensão gigantesca daquilo que, em conjunto, o crime organizado e a corrupção política têm realizado e escondido.
É mais um sinal sobre a fragilidade das democracias, e não nos enganemos: nesta rede não existem só ditadores e homens de Estado corruptos, também lá estão democratas de convicção.
É uma estranha coincidência de interesses a que reúne mafiosos e o pai de David Cameron, ou que junta traficantes de diamantes e o primeiro-ministro da Islândia, ou o envolvimento de 12 chefes de Estado e de governo, o que já suscitou a abertura de inquéritos em cinco países, três dos quais europeus.
Por isso, é com perplexa ironia que se lê Paulo Rangel dar o seu bem-haja à liberdade de expressão que permitiu conhecer mais um escândalo, sem se interrogar porque não resultou ele antes de uma investigação policial ou da ação de uma intervenção política firme.
Ou porque não é conhecida qualquer intervenção sua como eurodeputado sobre matéria tão sensível para os povos da Europa.
Uma máquina é um conjunto de peças que operam juntas para executar um trabalho. Se se observar a engrenagem deste prisma, não se estranhará a função da peça.