João Luís Barreto Guimarães faz da poesia um amuse-bouche

João Luís Barreto Guimarães faz da poesia um amuse-bouche


Depois da reunião da sua poesia em 2011, o poeta tinha já publicado “Você Está Aqui”, e traz-nos agora “Mediterrâneo”, outro livro que se não desilude é apenas porque esta é uma poesia a que, antes de mais, falta capacidade de ilusão


Um certo savoir faire é tantas vezes o que mais avulta em certa poesia que parece flanar por defeito, tomando o gosto a um sentido denotativo, uma reserva estética deliciada com o seu tesouro de curiosidades, cadeias de relações buscando cintilações pela vénia que se lhes concede. A poesia como rede fazendo achados no leito do mar, objectos reclamados pela sua improbabilidade ou antiguidade como artefactos nostálgicos ou exóticos.

Nos versos de João Luís Barreto Guimarães as coisas aparecem como se ali tivessem encalhado, presas de uma atenção meticulosa, de aranha, alimentando-se com uma paciência funesta. Há algo de ardiloso no seu modo de tecer o discurso, na fábrica dos versos, nos seus apelos, mas é a própria noção do poema e do que lhe concerne que se torna algo perniciosa. O Mediterrâneo de que o título e todo o itinerário proposto por este livro é devedor quer-se imbuído de uma certa territorialidade mística, essa europa do sul que se tem mostrado fértil enquanto cultura que vive muito da incerteza das suas fronteiras, espaço privilegiado de misturas e cruzamentos, mais arábico e mais oriental, um mosaico conturbado, entre a resiliência da antiguidade clássica, e os ecos dos grandes abalos da história recente.

Ao escrever sobre este livro na revista do “Expresso”, José Mário Silva acusa a recepção desse quadro pretensamente harmonioso, fala-nos do Mediterrâneo como “um modo de inscrição no mundo”, e louva no poeta “uma atenção extrema ao que o rodeia”, falando de “uma arte poética de elegância elíptica”. Tudo isto são coordenadas tão aparentes quanto virtuais, e o crítico limita-se a tornar explícito o programa que serve de ideal aos versos. As dificuldades começam nos níveis de representação numa poesia que, compondo o seu breviário, raramente com os exemplos de que se serve ilustra alguma compreensão mais inusitada ou rara, acabando por satisfazer um devaneio mais ligado à crónica – esparsas notas de viagem, provando um certo flair, 'wittiness', mais do que uma capacidade de fundar um discurso, de estar a par da realidade deslocando-a para um sentido pessoal.

Se há que reconhecer alguma mestria no modo como os episódios são fixados segundo um apurado sentido estético, uma proporção ou ordem agradável à vista, a arte poética nunca é mais que isso, “a bela viagem”, como é sugerida no isoladíssimo verso de Kavafis. Os elementos desta poesia, como refere JMS, são o humor, a ironia, um espírito lúdico e um gosto pela brincadeira e pela experimentação, mas num equilíbrio tal, em doses tão racionadas, que deixam em tudo uma sensação de aperitivo. Estamos longe de tudo o que sejam profundas inquietações, qualquer sentido religioso, mesmo pagão, mais perto de um agnosticismo, do turista instruído que se serve da cultura com um contentamento profano.

 

Estátuas a que faltam bocados

Na ala de arte romana ‘já-não-sei-de-que-museu
exibem-se torsos arcaicos aos quais
faltam bocados. O tempo foi meticuloso a
escolher o que levou (as
primeiras partes a cair variam conforme o género:
Três Graças sem cabeças
um deus Febo sem pénis) deve haver
algum lugar onde abunde a anatomia
que por aqui segue em falta –
belas cabeças de mármore
(mau grado a anemia)
falos avulsos sem torso (tristes
e sem serventia)
agradeçamos aos deus o dom da imaginação
que permite figurar tudo quanto desfigura.
Não é um exercício difícil.
Não foi castigo divino.
Não quebraram com o uso.

 

A caixa de correio de Deus

Um
rebanho de cristãos na cidade dos hebreus –
apenas queriam tocar as fendas
na pedra do Muro (enviar
pelo Deus deles um recado
ao nosso Deus). Logo à entrada da praça
do templo de Salomão
um soldado israelita buscara em nossa posse
a arma de onde pudéssemos extrair a
Morte ou
o Mal. Nada mais desnecessário. Não sabia o
militar que acautelava o divino que
ou esse Deus é o mesmo ou
não há (de todo)
Deus?

 

A lenta canção de Alá

Terias de ter o dom de línguas para não te
perderes nos sons da Praça Jemaa El-Fna. Um
alquimista da Síria um curandeiro argelino
um almocreve de Tunes o
aguadeiro marroquino –
todos
te pedem a alma todos te
querem com a mão numa imensa glossolalia
que o siroco
caldeou. Ainda não viste nada querida
se ainda não viste isto: do
alto do minarete no souk de Marraquexe
o chamar do muezim faz questão de relembrar
que Maomé é o profeta (o
Deus único é Alá)
nessa canção que o estrangeiro não resiste
a imitar
(ignorante e feliz) num tom
«mais ou menos»
árabe.

 

Mediterrâneo

de João Luís Barreto Guimarães

80 páginas / 9,90€

Sinopse

Depois de "Poesia Reunida", obra publicada em novembro de 2011, e de "Você Está Aqui", em 2013, a Quetzal apresenta o nono livro de poemas originais de João Luís Barreto Guimarães. Esta recolha de poemas escritos entre 2012 e 2015 é uma deambulação pela história e pela cultura europeia e mediterrânica, atravessando a paisagem física e espiritual, bem como o tempo entre a Antiguidade clássica e a nossa contemporaneidade.