Nos últimos tempos tinha que ser ajudada, mas durante a maior parte dos 35 anos que Concepción Martín Picciotto passou em frente à Casa Branca estava lá praticamente 24 horas por dia.
Tinha oficiosamente o título da “pessoa que durante mais tempo promoveu um protesto político na história dos Estados Unidos da América”. “Casa Branca. Vigília pela paz e contra o nuclear 24 horas por dia, mantida desde 1981 por Concepción e Thomas” explicava um dos cartazes que ladeavam o guarda-sol coberto por um plástico onde viveu cerca de 12 mil dias e noites por baixo de um sol abrasador, de neve, de vento, de chuva. Morreu na segunda-feira num refúgio de Washington para os sem abrigo, com a idade estimada de 80 anos.
Quando ali chegou, em 1981, tinha outro objetivo. Aí só queria que as autoridades norte-americanas a ajudassem a recuperar a filha, Olga. Uma história que faz lembrar outra, em Lisboa, onde um casal há várias décadas luta à porta da Procuradoria Geral da República por uma herança em que alega ter sido lesado.
Concepción – ou Conchita ou Connie, para os americanos – Martín chegou aos EUA em 1960 com 18 anos, vinda de Vigo. Foi trabalhar como secretária numa representação consular de Espanha em Nova Iorque, casou com um homem de origem italiana e a sua vida decorria sem incidentes. O casal percebeu que não podia ter filhos e adotou uma menina. Até aqui os relatos confluem, mas depois divergem nas explicações dadas por Conchita para o que se terá passado.
O Washington Post relatou uma das teorias há dois anos: a criança teria sido adotada na Argentina, e Concepción mais tarde começou a desconfiar de que a a adoção tinha sido ilegal, num esquema orquestrado pelo marido e pelo seu advogado. Dizia que o marido a tentou envenenar quando compreendeu a verdade. “Não percebi que era um esquema de venda de bebés” disse em 2013 ao Washington Post. “Era tão ingénua… e depois eles quiseram fazer-me desaparecer” terá relatado com sua a característica voz um pouco esganiçada e com forte sotaque espanhol.
Em 1991 tinha dado uma explicação diferente ao El Pais da sua terra natal. Que ela e o marido se tinham divorciado e que queria levar a sua filha para Espanha depois da separação . “Mas o meu marido e a sua família opuseram-se e montaram uma campanha de assédio até que conseguiram retirar-me o poder paternal. Disseram que não era uma mãe adequada”.
Seja qual for a verdade, como também escreveu o jornal espanhol, foi uma “história de desespero que a levou a exprimir a sua impotência instalando-se com um fardo de roupas e um cartaz a poucos metros da casa do presidente norte-americano”. Tentou por todo o lado que as autoridades fizessem alguma coisa, queria que lhe devolvessem a filha. Acabou em Washington.
Até o fim da vida Não era a única a protestar em frente da porta da Casa Branca, do outro lado da avenida. William Thomas era um pacifista que também lá estava, com um cartaz que dizia: “Procuradas – Sabedoria e Honestidade”. Um dia foram presos ao mesmo tempo e Thomas perguntou-lhe se não se queria unir à sua luta, já que ambos procuravam “a paz e a justiça”. Ela aceitou e em 1981 começaram oficialmente a sua vigília recordista com uma mistura das reivindicações de ambos: a favor da paz e contra o nuclear, promovendo os direitos das crianças.
Um vez mais tudo estava nos carris. Thomas e ela entenderam-se perfeitamente. Mas três anos depoios apareceu Ellen. “Thomas disse-me para não contar isto às pessoas, mas não posso deixar de o fazer porque é a verdade: [quando o vi] reconheci o seu rosto, a sua voz” contou a mulher ao Washington Post, acrescentando que tinha “sonhado com ele desde criança”. “Fiquei boquiaberta”.
A dupla passou a trio, para grande mágoa de Conchita, que nunca deixou de olhar para Ellen – primeiro Benjamin e mais tarde Thomas – como uma impostora que apenas ali estava para ficar com o dinheiro de William. O amor que sentia por ele e pela luta em comum superou tudo. Ainda em 2014, ao canal MinWashingtonNews no youtube, ignorava a adversária. “Costumávamos ser duas pessoas, desde 1981”, por causa dos “elementos”, das prisões, dos “espancamentos pelos marines, pela polícia”, o companheiro de luta morreu. “Por isso agora estou sozinha”, “tenho a ajuda dos ativistas do movimento Occupy, que me permite umas pausas, ir tomar um duche, mas estou aqui o resto do tempo, desde 1981”. De Ellen nada.
“Foi um casamento estranho porque a Connie estava sempre ali no meio, a odiar-me” comentou Ellen Thomas ao Washington Post. Mas foi esta última quem conseguiu dar alguma sequência à luta. Lançou a campanha Proposition One contra o desarmamento nuclear, que chegou ao Congresso, apesar de nunca ter sido votada. Este ano vai haver nova tentativa.
Quando os pais de William Thomas morreram, convenceu o marido a usar o dinheiro para comprar duas casas, uma delas em Nova Iorque, que se tornou um local de apoio na retaguarda e mais tarde a “Casa da Paz”, um centro para ativistas e em cuja cave repousava Conchita, nos últimos anos.
Em 2015 Ellen acabou por vendera a “Casa”, afirmando-se incapaz de suportar as despesas. Concepción Piccioto, que sempre tinha dependido da ajuda alheia para sobreviver e já debilitada pelos elementos, por ter sido atropelada por um taxi enquanto ia de bicicleta para a sua vigília e também pela idade, foi acolhida pela organização N Street Village, onde agora morreu.
Com Thomas e um amigo foi duas vezes à porta da filha. Da primeira vez, nem a tentou contactar, apenas colou centenas de panfletos com a história da sua vida – e de Olga – pelo bairro onde esta vivia com o pai. Na outra, já com Olga casada, foi entregar-lhe uma caixa com pertences. Foi o genro que abriu a porta. Uma vida sem ver a filha, portanto.
Voltou à rotina, a interpelar quem passava, a entregar panfletos em várias línguas, à espera que um dos cinco Presidentes que passaram pela Casa Branca nestes 35 anos viesse falar com ela. “Tenho de estar aqui” dizia ao Post, “isto é a minha vida”.
Nem veio Reagan, nos anos de 1980, nem Obama, já no século XXI. Foi uma heroína do pacifismo para uns, a sua dedicação era alvo de estudo nas escolas, mas também fazia parte do folclore da capital americana, um ponto de paragem das rotas dos guias turísticos de Washington. Para outros era apenas uma pessoa com perturbações mentais que usava um capacete (tapado por um lenço) para se proteger das ondas que a Casa Branca enviava para a manipular.
Em 91 disse ao El País: “Custa-me imenso estar aqui as 24 horas do dia. É um sacrifício enorme, mas continuarei enquanto Deus quiser”. Deus quis que fosse até ao fim da vida.