Há um ano a Ponto de Fuga estreava-se no mercado português com o lançamento da colecção Petzi, um clássico da banda desenhada infantil.Mas já nessa altura Vladimiro Nunes, editor e fundador, tinha intenção de a tornar generalista e por isso queria encontrar um autor que materializasse essa vocação e servisse de porta de entrada para um campo literário mais vasto.
Natália Correia surgiu como uma escolha natural nesse processo: um nome forte, irreverente e com potencial de reconhecimento junto do grande público. Eleito o autor, faltava decidir o que editar no meio de uma obra tão vasta como a da escritora açoriana. “Como já se sentia a aproximação dos 40 anos do Verão quente e daquele processo conturbado que se seguiu à Revolução, percebemos que ela tinha publicado um diário dos acontecimentos da época e ao relê-lo achámos que faria todo o sentido começarmos por aí e recuperarmos esse livro, o “Não Percas a Rosa”.
Esse registo testemunhal que a autora começou a escrever com o 25 de Abril de 1974, e que acompanharia os acontecimentos políticos que agitaram o país até 25 de Novembro de 1975, é uma das duas partes que compõem o livro que a Ponto de Fuga apresenta esta noite no bar lisboeta Botequim, fundado entre outros pela própria Natália Correia, em 1971.
A segunda parte, intitulada “Ó Liberdade, Brancura do Relâmpago”, reúne pela primeira vez as célebres crónicas que publicou nos jornais “A Capital” entre Julho de 1974 e Julho de 1975 (“Crónicas Vagantes”) e “A Luta”, de 1975 a Março de 1976.
Revelações A editora quis também trazer algo de novo e com a colaboração da investigadora Ângela Almeida descobriu, no espólio da escritora nos Açores, inéditos e manuscritos que complementam o que já tinha sido publicado. “Fomos ver o que seria possível encontrar ali que fosse referente ao diário. Isso levou-nos a um trabalho demorado de comparação entre o livro que saiu e os manuscritos originais e a algumas surpresas. Tentámos organizar a edição de maneira a compararmos tudo o que a Natália pudesse ter subtraído ao livro que publicou”, explica Vladimiro Nunes. Para as crónicas o processo foi semelhante. Depois da consulta dos jornais, a editora foi procurar no espólio da autora textos relacionados que não tivessem sido publicados. “Mais uma vez deparámo-nos com um conjunto de inéditos e reunimos tudo”, acrescenta.
No caso do diário “Não Percas a Rosa”, esses inéditos revelam sobretudo o processo de composição. E embora grande parte do conteúdo do texto dos manuscritos esteja lá, há diferenças, como nota o editor. “Ao fim de três anos – e ela explica isso talvez no último texto do diário –, pegou nos papéis todos e foi relê-los. Fez muitos acrescentos, sobretudo relativos a referências literárias, as partes mais filosóficas e mais densas também foram trabalhadas nessa altura, e fez algumas revisões que são engraçadas.” A título de exemplo, Vladimiro Nunes refere o tratamento que a escritora reservou a Mário Soares, quando escreve sobre o momento em que o político abandona o governo em 1975. “Ela trata-o de uma forma quase messiânica e heróica, que depois no texto final se dilui. Na mesma linha há um outro inédito que é uma intervenção que fez no encerramento da campanha do PS para a Assembleia Constituinte, em 1975, em que não sendo militante dá a cara pelo partido num momento simbólico, dizendo que o PS é o verdadeiro partido português.”
Se na revisão dos textos o tratamento dado aos protagonistas do processo revolucionário serve quase sempre para os tornar mais amargos e desencantados, “e para dar ainda mais cacetada”, com a linguagem acontece o oposto, e a autora suaviza algum excesso usado anteriormente, sobretudo no vernáculo.
“A Natália tinha um sentido estético muito forte, e embora fosse uma escritora instintiva sentiu depois a necessidade de dotar determinados textos de uma dimensão filosófica e de pensamento mais densa. Dificilmente o conseguiria ter feito de imediato. Estavam lá as pistas, mas de certa forma quis posteriormente tornar aquele texto mais elaborado e pensar o livro como um objecto autónomo e um produto final.”
As mais de 700 páginas que compõem o livro são ilustradas com reproduções dos manuscritos originais e fotografias da época, a maioria tiradas por José António Correia, primo da escritora e por quem se diz ter tido uma grande paixão.
Natália Hoje Reflexo da personalidade altamente complexa e contraditória da sua autora, o livro tem também aspectos reveladores daquela que foi uma das intelectuais mais marcantes da segunda metade do século xx português. “Para já porque traz um diário, mas também porque ela faz questão de introduzir ali as grandes linhas do seu pensamento. Dá a conhecer mais profundamente a sua visão do mundo e da humanidade. E nesse aspecto é um livro utópico, idealista e desencantado ao mesmo tempo. Ela tinha acima de tudo um compromisso com a liberdade, que este livro revela muito bem.” Com o lançamento a coincidir com uma data histórica, os 40 anos do 25 de Novembro, desafiámos Vladimiro Nunes a imaginar o que pensaria Natália Correia sobre o momento político actual e um acordo de governo à esquerda.
“No essencial, penso que ela ficaria satisfeita por perceber que finalmente a democracia pode funcionar na sua totalidade com a intervenção de todas as forças, com os seus equilíbrios e desequilíbrios. Acho que isso a deixaria contente, perceber que o sistema é capaz de incluir todas as correntes de pensamento. Por outro lado, provavelmente não deixaria de ser impiedosa com a falta de qualidade humana e intelectual das lideranças políticas. De certeza que lhes ia reservar alguns julgamentos severos.”