Nas conversas com Adriano Moreira, que foi ministro do Estado Novo e líder histórico do CDS, os temas sucedem-se. Quando alguém lhe dizia “não temos recursos financeiros” costumava perguntar: “E princípios, tem?”
Hoje o tema gira em torno das legislativas e da educação cívica. Dos políticos.
Tem falado na necessidade de rever as competências do Presidente da República. Em que sentido?
Antes de mais é necessária a reforma do Estado. Não é difícil encontrar ensaios cujo tema é saber se o Estado ainda é a invenção que melhor serve a governança dos povos. Isto tem na base a mudança efectiva de conceitos tradicionais que o definiam: a sacralidade das funções, a origem do poder na vontade popular, a igualdade na vida internacional. Um conceito ocidental de democracia. Mesmo havendo nesses elementos coisas que são diferentes, embora cobertas pela mesma palavra, como “soberania”. Todos os estados são soberanos, mas nem todos têm os mesmos poderes, por isso uns são mais iguais do que outros.
E o Estado ainda é a invenção que melhor serve a governança dos povos?
Depende dos sítios. Dou o exemplo da Europa justamente porque a evolução é para criar uma coisa nova. Agora temos a União, que nasce no fim de uma das guerras mais terríveis, que teve um custo de 50 milhões de mortos. Considero que os homens que tiveram a ideia da União tinham a santidade. Também Gandhi e Mandela tiveram, porque tiveram uma vida de sofrimento, viveram duas guerras mundiais e não adoptaram a retaliação. As coisas alteraram-se, mas há uma coisa que persiste acima dos tratados, a memória dos povos.
Hoje a Europa está desunida…
Esta Europa que fomos fazendo não tem conceito estratégico. Não sabe se vai ser união ou federação, se vai ser uma Alemanha europeia ou uma Europa alemã, uns são de Schengen outros não, uns do euro outros não, e dividiu ricos e pobres. Isto está a criar forças preocupantes, a começar pelo aumento crescente da falta de confiança dos povos nos governos, que se mede até pelas abstenções, e pelo surgimento de partidos contra o amor e a unidade europeia.
E Portugal, como fica?
Escrevi um texto sobre “inidentidade”. Portugal neste momento é um país exógeno, porque sofre os efeitos de decisões em que não toma parte, exíguo, porque tem falta de recursos para os objectivos para os quais se inventou o Estado, e entrou num período de protectorado.
Só debilidades.
Apesar de Portugal ter melhorado em vários aspectos, essas debilidades permanecem. Mas tenho a impressão – espero que não seja só por amor ao futuro do meu país – que Portugal tem apesar de tudo janelas de liberdade.
Quais?
A CPLP (nenhum país europeísta conseguiu isto) e o seu projecto pendente das Nações Unidas: a plataforma estendida continental, a maior do mundo. Nada disto está no programa dos partidos ou foi discutido na campanha eleitoral. Os partidos, excepto o BE, que é recente e tem as características dos partidos de protesto, têm uma definição programática anterior a esta evolução.
Isso significa que os partidos têm de se refundar?
A reforma do Estado tem de começar pela revisão do programa dos partidos. Com valores essenciais, que identificam cada corrente política, mas que reflictam a mudança, porque meio século depois o mundo é outro.
O que acredita que poderá acontecer se o PSD, o CDS e o PS fizerem a revisão das suas bases programáticas?
Nalguns casos poderiam ser diferentes, mas imagino – porque não vou fazer filosofia – que há traves mestras que terão de se manter. Isto não quer dizer que não desapareça um partido, é imprevisível. Uma das forças que praticamente desapareceram na Europa foi a democracia cristã. A intervenção a favor do Estado social, não apenas tem de ser pensada, reformulada e reforçada, como tem de continuar a ser uma linha mestra de forças políticas.
O Estado social é hoje uma espécie de guarda-chuva para todos os partidos, ou não?
O Estado social foi principalmente uma conjugação em que se encontraram a doutrina social da Igreja, a democracia cristã e a social-democracia. No sentido vasto. O que em Portugal se chama Partido Socialista é social-
-democrata.
Volto a perguntar sobre o papel do Presidente da República…
A figura do chefe de Estado em Portugal tem sido difícil de redefinir na história constitucional portuguesa desde o fim da monarquia. Mas há uma coisa que o chefe de Estado tem de ter, que não é poder, é autoridade.
Que não se tem por decreto…
A autoridade resulta muito do espírito cívico público. O grande exemplo da Europa é o de Inglaterra. A rainha de Inglaterra hoje praticamente não tem poderes, no entanto diz “o meu governo” e “a minha oposição”. E há uma tradição na vida inglesa, “to pay attention to the queen”. Ninguém questiona. Não quer dizer que se faça o que ela diz, mas o que ela diz é tido em consideração. Julgo que uma das coisas que estão hoje a enfraquecer a América é que grande parte do corpo político não respeita a autoridade do presidente. E chego a pensar que há questões rácicas. Como dizia S. Paulo, quem tiver o carisma de ensinar que ensine. O carisma ou se tem ou não se tem.
E quando não há carisma, autoridade?
Daí a importância da educação cívica. Os partidos, se fizerem a reforma que têm de fazer, vão ganhar mais respeito. E a reforma, provavelmente, vai implicar atribuir mais poderes à figura do Presidente da República, até para gerir crises como a que estamos a enfrentar. Em alguns países, como Portugal, procura-se a maioria absoluta com o voto. Quando é assim, o parlamento perde poder legislativo, porque não pode contrariar a vontade do executivo. Tem uma consequência, os conflitos com os guardas dos guardas, o poder judicial, aumentam. E nós tivemos isso com o Tribunal Constitucional.
O voto devia ser obrigatório?
Na minha opinião o voto devia ser obrigatório. Um dos ganhos é que a maioria limita a liberdade das minorias. Se houver voto obrigatório, o equilíbrio dos poderes da sociedade civil é com certeza mais evidente.
O resultado das eleições legislativas foi evidente?
Parta desta ideia: o eleitorado foi posto perante uma coligação e mais não sei quantos partidos, e não duas coligações. Estas surpresas são possíveis na letra da Constituição e aí tem uma contradição. A Constituição permite isto, o que não me agrada. Uma boa educação cívica, de responsabilidade e de governo, acha que consentia isto? Não, portanto é preciso pensar na reforma do Estado, é preciso sentido de dever e é preciso educação cívica.
Educação cívica de quem vota ou dos políticos?
De governantes ou aspirantes a governantes. Mas isso não pode pôr na lei, ou se tem educação cívica ou não se tem. Se tenho, de acordo com os princípios democráticos, um partido, embora minoritário, com maioria, é ele que deve governar. Quando vejo que essa questão é de negociação entre a direita e a esquerda, a minha conclusão é que a única coisa que está no meio se chama poder.
A Constituição teria de ser mais clara?
A reforma do Estado também implica a da Constituição. Mas, pode ter uma certeza, é que seja qual for a redacção da nova Constituição vai haver sempre a surpresa de qualquer coisa que lá não estava.
O que é que António Costa devia fazer?
Eu achava mais fácil para o país que António Costa tivesse seguido a tradição do Partido Socialista. E lembro-me sempre das intervenções e das atitudes de Mário Soares, que fez muitos sacrifícios e soube conciliar essas coisas.