Ivana estava de plantão na floresta de Strošinci há duas semanas, quando 37 homens e rapazes iraquianos foram encontrados pela equipa de Ljubo Svalina perdidos na imensidão de árvores, perto da cidade de Vrbanja, na fronteira da Croácia com a Sérvia. “Foram abandonados ali pela polícia sérvia, levaram-nos até àquela zona da fronteira, que não tem supervisão, e deixaram-nos ali. Foi uma sorte nenhum ter morrido.” É Ljubo, um ex-soldado e técnico de minas antipessoal, quem larga a acusação, com Ivana, a médica de 25 anos, a traduzir e a lamentar a situação. Neste momento, a floresta de Strošinci já está livre de minas, mas em Setembro ainda não tinha sido varrida. Bastava um dos homens fugidos da guerra de 12 anos e do sanguinário autoproclamado Estado Islâmico ter pisado uma delas e a morte quase certa que achavam ter despistado tê-los-ia apanhado aqui — num território hoje pacífico mas onde, não há muito tempo, havia bombas a rebentar e pessoas a serem tiradas de hospitais em filas para serem executadas nas ruas.
O passado negro do declínio da Jugoslávia é demasiado recente e as feridas ainda não sararam. Isso é notório em qualquer conversa com locais ou até quando comentamos que fomos multados assim que chegámos à Croácia e nos dizem, em tom jocoso, que foi por termos um carro com matrícula sérvia. Quando se atravessa a fronteira, tudo é aparentemente igual. As estradas, as planícies a perder de vista, as casas de tijolo em aldeias quadradas que distam poucas dezenas de quilómetros entre si, variam pouco de um lado e do outro da fronteira demarcada. A primeira diferença que salta à vista são as cruzes espalhadas à entrada de cada terriola, nas bermas das estradas e nas igrejas. Na Sérvia as cruzes são bizantinas — um eixo vertical cortado por três travessas, a inferior para Cristo pousar os pés, representando a igreja ortodoxa. Na Croácia o eixo vertical é atravessado por um único horizontal — para os católicos, os pés de Jesus foram pregados na cruz e assim repousa hoje Cristo nos inúmeros crucifixos espalhados pelas estradas e ruas do interior profundo da Croácia.
A segunda grande diferença é a bandeira azul com as estrelas da União Europeia, que a partir de Julho de 2013 começou a ser espalhada em cada recanto croata, das juntas de freguesia aos vários armazéns da INA, a petrolífera croata cujas acções estão repartidas entre o governo do país e o grupo húngaro MOL. Onde há uma bandeira croata é quase certo que haverá uma europeia. Para a Sérvia, aqui mesmo ao lado, a UE é ainda um sonho algo distante e não há bandeiras azuis com estrelas amarelas a flutuar ao vento. Aqui o sonho já foi consumado e é a UE quem agora dá dinheiro ao país para que melhore as suas infraestruturas e condições de vida, pagando também para que se destruam todas as minas escondidas no subsolo desde o fim da guerra dos Balcãs em 1995.
Em Maio deste ano, a Croácia assinou um novo contrato de fundos com a UE, de 767 mil euros, para acelerar o processo de desmantelamento de minas antipessoal, sobretudo por causa das cheias do ano passado que afectaram o país e a Bósnia e Herzegovina. O número de refugiados em crescendo e a promessa da Hungria — entretanto cumprida — de selar a sua fronteira com a Sérvia com um muro de arame farpado foram factores que também aceleraram a atribuição do dinheiro europeu, até agora um milhão e meio de euros. Assim explica ao i Miljenko Vahtarić, vice-director do CROMAC, o centro estatal de desactivação de minas. “Antes da crise dos refugiados, o CROMAC já tinha feito tudo o que estava ao seu alcance para prevenir quaisquer possíveis incidentes com minas e assegurar uma vida normal a todos os cidadãos da Croácia e seus visitantes”, garante. “Ao todo o centro demarcou um total de 500 quilómetros quadrados de Área Perigosa Suspeita e espalhou mais de 12 mil sinais de alerta.”
Poderão ter sido esses sinais — ou os panfletos que o CROMAC, a UNICEF e a Cruz Vermelha Croata distribuem entre os refugiados ao entrarem na Croácia— que salvaram a vida aos 37 iraquianos que passaram a noite ao relento na floresta de Strošinci no final de Setembro. A polícia croata pegou neles e levou-os para o campo improvisado de Opatovac, perto de Tovarnik, que não é mais que um terreno cedido pela INA onde o exército croata tem montado tendas de campanha para gerir as milhares de entradas diárias no país. Nos dias de maior enchente, chegam a ser 10 mil os homens e mulheres, crianças e idosos, da Síria, do Afeganistão, do Iraque e de outros países em guerra que passam por Opatovac, de onde são depois mandados em autocarros e comboios para a Hungria, a fim de seguirem caminho até à almejada Alemanha.
Negócio arriscado Crê-se que ainda existam quase 51 mil minas por desactivar em 75 cidades da Croácia, na sua maioria concentradas na região da Slavonja, na fronteira com a Sérvia, a nova rota dos refugiados desde que a Hungria lhes vedou a passagem. É numa dessas cidades, Nijemci, que nos encontramos com Svalina, mais precisamente na aldeia de Đeletovci, região de Vukovar. Uma curta viagem de carro leva-nos à floresta de Bradarice, onde a equipa de Svalina, da empresa estatal MUNGOS Razminiranje, começou os trabalhos de desactivação de minas há dois dias. Numa das entradas da floresta um sinal temporário avisa os transeuntes de que há trabalhos perigosos a decorrer. Ivana está aqui à nossa espera, numa ambulância onde uma médica mais velha se protege da chuva, a postos para socorrer os trabalhadores se alguma coisa correr mal.
Ivana ainda não terminou a sua especialização mas decidiu aceitar o trabalho em part-time com as equipas anti-minas há dois meses. Começou em Strošinci, quando as autoridades croatas ainda não se tinham organizado para gerir as passagens de milhares de desesperados do Médio Oriente e de África que buscam tranquilidade e novas vidas na Europa. Na primeira semana de trabalho da jovem médica, um técnico de uma outra empresa de desactivação de minas (há 45 privadas, a MUNGOS é a única estatal) pisou uma PROM-1, as chamadas minas saltadoras, as mais letais. Morreu naquele segundo. Tinha 26 anos. Ao contrário de outras minas antipessoal, as PROM-1 têm uma cápsula que, quando activada, salta do nicho até um metro de altura, lançando fragmentos na explosão a alta velocidade. Um outro trabalhador ali perto levou com os estilhaços mas sobreviveu porque estava a usar um colete de protecção como os que nos ofereceram assim que chegámos à floresta. “É bom que estejas a usar isso”, diz-me Ivana. “Se alguma mina explodir e os estilhaços não te acertarem na cabeça provavelmente sobrevives, os órgãos vitais estão protegidos, na pior das hipóteses perdes um braço ou uma perna.” Ao longe ouve-se o que podia ser uma explosão, mas é só um tiro de caça. O medo está cá, o peso do colete nos ombros não alivia o terror, faz-nos confundir tiros de caçadeira com minas de guerra. Ivana está sem colete e estremece da mesma forma ao som do disparo. Ainda há umas 115 minas espalhadas por aqui.
Como supervisor de projecto, Ljubo Svalina ganha 7600 kunas croatas, cerca de mil euros por mês, num país onde o salário mínimo é de 395 euros. É o mais bem pago da equipa de 23 homens que, esta manhã, desactivam minas na floresta de Bradarice. Os trabalhadores estão espalhados entre os carvalhos a perder de vista, cada um sozinho numa área delimitada a separá-lo dos restantes, uma vã tentativa de evitar mais mortes se o pior acontecer a um deles. Usam botas de combate e fatos protectores com capacetes e viseiras. Numa mão têm uma máquina de detecção de metal, na outra um espeto de alumínio para revirarem a terra caso a máquina apite. Ouvem-se alguns apitos mas nenhum corresponde a minas. Svalina diz que já foram encontradas algumas aqui e que, dentro de 15 dias, a área vai estar limpa; vão ser todas retiradas à mão num processo extremamente sensível para serem colocadas na zona mais profunda da floresta, altura em que entrarão em cena os pirotécnicos. O ex-soldado mostra-nos uma foto no telemóvel para explicar como funciona — na imagem algumas minas, umas pequenas caixas de plástico verde-tropa com fuzis de metal lá dentro, todas alinhadas na terra, e barras de explosivos por cima. “Os pirotécnicos carregam no botão e BAM!” Na foto seguinte nada a não ser terra e ervas.
Mapas improvisados, mapas errados Ljubo Svalina sempre trabalhou com minas antipessoal. Alistou-se no exército para combater as forças sérvias que invadiram a Croácia quando o país se declarou independente da República Federal Socialista da Jugoslávia em 1991. A sua principal função durante a guerra era instalar minas antipessoal para travar os avanços dos sérvios. Vinte anos depois do fim do conflito, o trabalho é o oposto. Na floresta de Bradarice, foram croatas como Svalina que montaram minas a cujo desenterro estamos hoje a assistir; noutras partes da Croácia diz-se que foram os sérvios quem instalaram as armadilhas explosivas.
Ljubo garante que foram feitos levantamentos extensivos das localizações precisas das minas, em parte com a ajuda do reino da Noruega que ofereceu sistemas modernos de detecção de minas. Mas há outras versões entre os habitantes da região, a começar pelo receptionista da Vila Vanda, onde estamos hospedados — uma pensão à beira da estrada, a poucos metros da famosa torre de água de Vukovar, símbolo maior do início do conflito, ainda hoje perfurado por tiros de tanques. “O Estado põe tabuletas a dizer que esta ou aquela área foram desminadas mas não é bem assim. O meu avô morreu porque ia a conduzir um tractor e passou por cima de uma mina antipessoal que supostamente não estava lá”, conta. Tem um ar dócil mas o rancor aos sérvios espelhado no olhar. “Quando os sérvios invadiram Vukovar, havia 1800 soldados croatas a defender a cidade contra 30 mil sérvios no primeiro mês, 50 mil no segundo e 87 mil no terceiro”, explica a escrever os números num papel com um marcador cor-de-laranja. “Os croatas não tinham como fazer mapas das minas que instalavam porque eram muito poucos para defender a população. Portanto, quando eles dizem que limparam tudo eu tenho dúvidas porque a verdade é que não sabem onde puseram muitas das minas”, conta já em tom de guia turístico. “Quando a guerra acabou, houve alguns dissidentes das forças sérvias que entregaram mapas das minas, ao contrário das valas comuns, que só foram descobertas graças a testemunhas oculares…”
Quando confrontamos Svalina com o facto, garante-nos que sabe onde estão todas as minas. “E a questão das cheias? Lemos que, no ano passado, houve umas impressionantes nesta região e que as autoridades temem que muitas das minas se tenham movido quando as terras alagaram…” O ex-soldado começa a ceder e admite que, quando uma placa é erguida a dar uma determinada zona como estando livre de minas, alguns explosivos podem ficar para trás. “Limpamos 99%…” Aqui, no arvoredo de Bradarice, por onde ainda nenhum refugiado passou, foram instaladas as primeiras minas de Vukovar quando a guerra começou. Perguntamo-nos se para proteger a população ou o poço de petróleo onde um braço mecânico lavra, aqui mesmo, no interior da floresta onde os funcionários da MUNGOS desminam a terra, sob uma chuva miudinha impiedosa, por um salário mísero para os riscos que correm. “Este poço estava aqui antes da guerra ou foi montado depois?” Svalina não espera pela tradução de Ivana. “Prije.” Antes.
Esta reportagem foi feita no âmbito do projecto “Aquele Outro Mundo que é o Mundo”, promovido pela ACEP, CEsA, seisXX e Coolpolitics, com o apoio do Instituto Camões e da Fundação Gulbenkian