Eyal Edery era bem pequeno quando o pai estava a construir o King e lembra–se do dia em que colocou uma moeda israelita no cimento ainda molhado das escadas do primeiro cinema multiplex de Lisboa. Como se recorda dos almoços no restaurante O Mattos, mesmo ali ao lado, e dos petiscos e comidas típicas portuguesas que ainda hoje ali se servem. Era uma espécie de via-sacra, no intervalo dos trabalhos.
As três salas de então, mais tarde reduzidas a duas, já com novos proprietários, estão agora completamente às escuras, depois de 30 anos a exibir grandes filmes. Mas para os verdadeiros “reis”, os donos da produtora United King Films, a empresa que deu origem ao nome de um dos cinemas mais emblemáticos da capital, esta foi apenas mais uma cena na sequela da família que é agora dona dos cinemas City, 46 salas no total. Por enquanto.
Eyal respira cinema por todos os poros. Tudo o que se lembra está rodeado de filmes. Uma das memórias mais antigas “é estar em casa da minha avó a ver ‘Saturday Night Live’ em película de 16 mm. Adorava”. O mais divertido é que os seus olhos funcionam como projector. Ele fala e a fita vai-se desenrolando ali, viva, brilhante, cheia de personagens.
É fácil perceber a ligação ao cinema. O pai começou como projeccionista, foi para França e regressou, e nos anos 80 já tinha um negócio de cassetes VHS em Portugal. Aos 25 anos de idade, veio atrás dele definitivamente. Eyal nasceu numa cidade de emigrantes, no sul de Israel, em 1974, mais ou menos pela altura em que por cá se fazia a Revolução. À sua escala, também a família Edery fez a sua.
Em Portugal, depois de se ter juntado à comunidade judaica local, o pai, Leon Edery, encontrou livros e investigou origens. Acabou por descobrir que a família terá saído de Lisboa por volta de 1600, em direcção a Londres, primeiro, depois a Gibraltar e, finalmente, Israel. “Fez este círculo ao longo de 400 anos e agora aqui estamos de novo, não é extraordinário?”
Há 15 anos, quase 16, quando Edery chegou a Portugal, o país era diferente, as pessoas eram diferentes. “Os portugueses são hoje mais abertos. Têm mais vontade de vencer. Já não lhes basta um ordenado e sair às cinco da tarde para ir para casa, querem mais. Antes era preciso puxar pelas pessoas para fazerem alguma coisa, hoje têm uma mentalidade mais aberta, vêem mais longe, conhecem mais, querem mais e contribuem mais.”
Mas não foi só isso que mudou. Mais recentemente, mudaram também os hábitos de consumo. Chegou a troika, a famosa austeridade, o aumento do IVA e as idas ao cinema passaram a ser como as saídas precárias. Eyal sabe isso: “Também tivemos de cortar custos”, diz.
O negócio
Não foi só o King que fechou. Quem não se lembra do Quarteto, do Império ou do Londres, só para nomear alguns cinemas, todos na capital. E há ainda uma quantidade de salas que muitos se queixam de estar desertas. Em contraciclo aparecem os City, em Lisboa, em Leiria, em Setúbal, onde ainda recentemente abriram dez salas.
“Cada negócio tem um ciclo de vida. Se não se renova, morre. As pessoas, hoje, não vão ao cinema para assistir ao filme e ir embora pela saída de emergência. O filme é um pretexto para sair de casa. Por isso, vendemos o filme com emoção, como uma experiência: criámos um mundo para as pessoas viverem o filme”, explica. O conceito inclui salas especiais para crianças, VIP, love, o city bar, entre outras loucuras mais ou menos rematadas. “Tentamos não ter uma moldura e que não haja duas salas iguais.” Não admira que por todo o lado se encontrem heróis e vilões, imaginários e reais.
E os números parecem indicar que o caminho está certo. No último ano, o mercado português cresceu 25%. Os City cresceram cerca de 44%.
Este é um negócio de família, começado por Leon Edery e pelo seu irmão. Mas cada um tem o seu papel. “Está tudo muito bem dividido, até para não existirem conflitos”: o irmão de Eyal toma conta do negócio dos cinemas em Israel, a irmã tem a parte dos filmes, Eyal os cinemas em Portugal e por aí em diante. “Mas é o meu pai quem tem as ideias mais loucas”, diz a rir.
E fala de monstros e balões que saltam das cadeiras, dos pares românticos colados nas paredes, de coisas que tantas vezes aos outros parecem impensáveis e, de quando em quando, alguém arrisca dizer que não vai resultar, mas que nunca ninguém se atreve a contrariar. “A verdade é que achamos que as pessoas pagam bom dinheiro, mesmo não sendo caro, para vir ao cinema. Se é assim, queremos dar-lhes o melhor e que se divirtam como nunca.”
Eyal faz tudo parecer fácil – “kal”, como se diz em hebraico, fico a saber. Mas não é verdade que assim seja. Talvez à conta de horas e horas de filmes, tenha aprendido que é sempre possível recomeçar, escrever um novo guião. Que há histórias de terror e filmes de ficção, romances e enredos inspirados na vida real. E, por isso, não desiste.
A burocracia
Mas continua a desesperar com a burocracia que o país impõe. “Sobretudo não entendo como é possível que não se faça mais para ajudar quem está a criar novos negócios. São duplicados, triplicados, coimas que não fazem sentido e só tornam difícil a vida de quem está a ser empreendedor”, afirma.
E conta uma história que ilustra uma dessas coimas. Um dos cartazes expostos não tinha escrito “brevemente”. Tinha de ter. Não estava lá e custou entre 100 e 300 euros, não sabe agora precisar. O valor é considerável, claro, mas para o empresário o ridículo está mais no facto de parecer que há sempre alguém a tentar empatar qualquer coisa. “Preferem preocupar-se com coisas insignificantes a concentrar-se no que é importante”, considera. Ainda assim, lembra que numa década e meia também nisto Portugal “avançou” e houve “melhorias”. De resto, “a crise não ajudou, mas foi feito o que era necessário”.
“Estamos aqui para crescer”, garante Eyal. Assim sendo, foca-se nesse objectivo. Neste momento, está já a organizar, em conjunto com a irmã, os filmes para o Festival de Cinema Israelita, que terá a duração de uma semana e será inaugurado no dia 3 de Dezembro, no City do Campo Pequeno, e se prolongará para o City de Alvalade.
Médio Oriente
Em Israel, os Edery têm 40% do mercado da exibição e mais ou menos a mesma quota de mercado da distribuição de filmes. A United King Films é uma grande produtora, um mercado onde, em Portugal, a empresa não pensa entrar tão cedo – apesar de ter feito o documentário “Com Que Voz”.
É com orgulho que Eyal fala da indústria cinematográfica no seu país natal. “Hoje faz-se belíssimo cinema, não são só filmes de intervenção. Muito mais do que política, a indústria é um negócio.”
O financiamento ainda não é a coisa mais fácil e ir ao cinema é mais caro do que em Portugal: entre oito e dez euros. Mas em dez anos o número de espectadores de cinema quase duplicou, de 8,5 milhões para 16 milhões. É preciso ter em conta que há cerca de 8,5 milhões de israelitas, mas apenas 1,5 milhões vivem, de facto, fora de zonas de conflito.
“Produzimos dez a 15 filmes por ano, de acção, animação, ficção, documentários, todo o tipo. O que pretendemos é abrir Israel ao mundo.” E estão a fazê-lo. Alguns dos filmes da United King Films têm sido premiados nos melhores festivais internacionais de cinema e mesmo candidatos a Óscares, como foi o caso – mas não é o único – de “Lebanon” [Líbano], de 2009.
O conflito no Médio Oriente, a guerra, os refugiados foram temas que não puderam ficar fora da nossa conversa. Eyal diz que “em Israel todos querem viver em paz. E vai acontecer”. Mas admite que já viu o processo mais bem encaminhado, nas primeiras negociações. Agora, na segunda ronda, muita coisa voltou atrás, perdeu-se o que se tinha avançado. “Não se pode querer tudo, vai ter de haver concessões também da parte de Israel. Se é esse o preço a pagar pelo fim da guerra, seja. O que interessa se se perde um pedaço de terra? Não podemos ficar agarrados ao passado.”
Tradição
E, assim de repente, peço a Eyal que me diga quais são os cinco filmes da sua vida, sem pensar. Só demora um pouco mais a nomear o quinto, o outros saem de rajada: “Um Sonho de Liberdade”, “Saturday Night Live”, “Matrix”, “O Padrinho” e “Amélie”. Se ficou curioso, faça uma pesquisa, porque, garanto, isto diz muito de Eyal.
Em tempos, Portugal foi para Eyal Edery a sua segunda casa. Primeiro em miúdo, quando ia e vinha com o pai e passeava pelas obras do King, como todos os miúdos adoram colocar um capacete e brincar a Bob o construtor. Mais tarde, quando chegou a fazer um pouco de tudo, até montar cadeiras num cinema que tiveram em Viseu. “Hoje, sobretudo depois de ter filhos, posso afirmar que Portugal é a minha primeira casa”, diz.
É verdade que nenhum dos seus quatro filhos – o mais velho faz hoje sete anos (parabéns ao mais velho dos Edery de última geração) – colocou uma moeda na escadaria de qualquer dos cinemas que a família construiu entretanto em Portugal, um novo shekel israelita ou um euro. Ainda. “Mas terão tempo de o fazer”, garante o pai. Afinal, “temos muitos projectos para o futuro aqui, neste país”.