Em 2013, a revisão do Código de Processo Civil veio estabelecer que, numa execução, não se encontrando património do devedor que fosse penhorável, extinguia-se a acção executiva, ou seja, o processo que o credor iniciara para poder obter o pagamento da dívida. Em termos práticos, o que isto significa desde logo é o desaparecimento de muitos processos dos tribunais, sem que naturalmente o litígio tenha sido devidamente composto e os credores em causa tenham obtido o ressarcimento dos seus créditos. No fundo, os tribunais, chamados a cobrar uma dívida em nome de um particular, desistem de o fazer, uma vez que o devedor não tem capacidade financeira ou bens que permitam aquele pagamento.
Na verdade, muitos dos processos de execução, contabilizados nas estatísticas da justiça como estando em curso, não o estavam realmente. Para muitos deles, nunca haveria outra conclusão que não fosse o confronto com a realidade de que uma dívida nunca seria paga por falta de meios do devedor para o fazer.
Novidade de 2013? Nem por isso. Em 1774, já no fim do período de governo do marquês de Pombal, estabelecia--se exactamente a mesma coisa, apenas de forma mais clara e incisiva. A lei de 20 de Junho de 1774, no seu parágrafo 19.o, estipulava que em processo de execução, nada tendo o réu como património, aquele não prosseguisse mais: “Porém não os tendo [os bens], nem os mostrando o Credor exequente, ou que o executado os oculta com dolo, ou malícia, mandará nos Autos, que se não prossiga mais na execução.”
Claro que no período entre 1774 e 2013 muita coisa se passou e também nos processos de cobrança de dívidas, mas menos na malícia dos homens.
O legislador do final do século XVIII sabia bem que não valia a pena tentar cobrar o incobrável – a não ser que tivesse havido dolo ou malícia do executado… Isto a propósito da notícia que o jornal “Sol” apresentava na semana passada sobre a transferência de património de Ricardo Salgado nas vésperas do colapso do banco (ou a sua saída da administração da sociedade dona do seu património, se quisermos, substituído por sua mulher) e que retrata bem como a malícia dos banqueiros e dos merceeiros, dos financeiros e das varinas, é a mesma, homens uns e outros que são.
Quando a corda aperta, há que tentar salvar o que se possa, juridiquês à parte, incluindo tentar ocultar com malícia ou sem ela… Afinal, como todos sabem, “brincar aos pobrezinhos” só é divertido uns dias por ano, na praia e com calor. Não que Ricardo Salgado corra esse risco: afinal, não é essa a pena que está em causa nos processos em que é arguido. Jacobinismo a mais? Talvez. Mas do autêntico, sem malícia.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira