Dar os bons-dias em francês, almoçar num restaurante russo, ir tomar café ao Nepal, fazer compras no supermercado chinês, jantar num buffet de sushi e dizer “buenas noches” ao vizinho de baixo. Não estamos em Nova Iorque, nem tão-pouco num bairro multicultural de Londres. Estamos em Lisboa, mais exactamente na freguesia de Arroios que, em pouco mais de dois 2 km2 de território, junta 78 nacionalidades. O Nepal lidera a lista com 1364 habitantes, seguido do Brasil, China e Bangladesh. Apenas com dois moradores estão Kosovo, Mali e Tailândia. “Aqui, as pessoas não vivem em guetos, vivem em comunidade”, garante a presidente da junta, Margarida Martins. É por isso que as nacionalidades não se dividem por ruas e convivem à porta de casa, nas lojas, nos bancos de jardim e nas esplanadas do Largo do Intendente. A semana de Angola fecha o ciclo do projecto “Uma volta ao mundo em Arroios”, que desde Outubro dedica uma semana à gastronomia, religião, dança e tradição de cada um dos destes países que fazem de Arroios um pequeno mundo.
Yasser Saiyad
41 anos
Índia
Nesta casa, a salsa mistura-se com rock
Yasser é um filho da emigração. Os seus avós saíram da Índia numa altura em que muitos indianos se espalharam pelas Caraíbas, Quénia ou Zimbabwe. A sorte ditou Moçambique para a família Saiyad, o que levou mais tarde a que o caminho seguisse (e terminasse) em Portugal. Com sete anos, a integração foi feita sem problemas, até porque sempre frequentou escolas internacionais com crianças de todo o mundo. Mas lembra-se de ouvir o seu avô queixar-se dos engarrafamentos da Segunda Circular – trânsito de há 30 anos, sempre bom lembrar – que o conduziu para bem longe da tranquilidade da vida moçambicana: “Estava habituado a ir almoçar a casa, dormir a sesta, vida de praia. Vir para Lisboa foi um choque.” O mês que tinha dado como prazo máximo para aguentar “a loucura de Lisboa” prolongou-se de tal forma que o neto tem já uma filha de oito meses, nascida em Lisboa. Se as raízes moçambicanas e indianas não chegavam, Yasser escolheu uma peruana como namorada, que dos hábitos só estranha os musicais. “Não consigo aguentar tantas horas de salsa, eu sou muito mais de rock dos anos 60”, brinca. Apesar da mãe já ter comprado um sari para a neta, Yasser vai esperar que a bebé de oito meses cresça para fazer as suas escolhas. Mas uma coisa é certa, quer deixar na filha a memória das histórias que também ele guarda dos seus antepassados: “Vou contar-lhe todas as que sei e comprar livros indianos, porque todos têm uma moral muito intrínseca.” Yasser está há um ano à frente do restaurante vegetariano Psi, que a mãe – uma pediatra que sempre sonhou ter o seu próprio restaurante – abriu há 12 anos. “Temos comida indiana, mas também cannelonis italianos ou caril tailandês. Inspiramo-nos na freguesia para fazer uma ementa de fusão”.
Joana D’Arc Chouriço
52 anos
Brasil
Um milagre que fez de Libânia uma Joana D’Arc
Nasceu Libânia, de uma mãe que ao todo teve 22 filhos. Mas a seca do Ceará fez com que uma fraqueza a deixasse sem sentidos ainda criança. Dada como morta, surpreendeu todos quando deu de si já com a areia a tapá-la no cemitério. “A minha mãe não descansou enquanto não me pôs o nome da santa Joana D’Arc”. Apesar dos 25 anos a viver em Portugal, ninguém lhe tira o sotaque brasileiro e a música das palavras de quem nasceu no Nordeste. “Gozavam tanto comigo quando cheguei, mas não ligo não. Tive foi que aprender a controlar-me nos cumprimentos”. O tu que Portugal usa só para os amigos, é para todos no Rio Grande do Norte, assim como o toque, que faz com que Joana encolha os braços de propósito para que não se joguem na direcção de quem fala.
Trabalhar com idosos na Santa Casa da Misericórdia ajudou Joana a sentir-se portuguesa num instante. “Aprendi tudo sobre marchas populares, sei de cor as músicas tradicionais, sei como era namorar à janela ou nos bailes e até como era viver antes do 25 de Abril”, assegura Joana com uma energia que a faz esquecer que não se deve agarrar a pessoa com quem fala. “Ai desculpe, lá estou eu outra vez”. Escolheu viver em Arroios a pensar na educação das filhas – “Estava perto das escolas e do Técnico” – mas também por ser “um espaço colorido”, onde sai de casa e encontra “pessoas de todas as cores”. Em 25 anos, nunca falhou um telefonema à mãe, dia sim, dia não. Ao vivo, só a abraçou no ano passado quando lá foi de visita: “Foi uma choradeira que nem é bom lembrar”, conta. Em todo o caso, a irmã guardou “tudo num vídeo”.
Rana Taslim Uddin
48 anos
Bangladesh
A Lisboa de Rana tem fado, calor e tranquilidade
Rana desdobra-se em trabalhos. É tradutor de bengali no Ministério da Justiça, na PSP, na GNR e ainda no DIAP. É também presidente do Centro Islâmico do Bangladesh e da Mesquita Baitul Mukarram e não esconde a veia empreendedora que já o fez abrir negócios um pouco por toda a Lisboa e arredores. Começou na Costa da Caparica, antes de perceber que o sol só dá negócio durante meio ano. Passou para lojas no Centro Comercial babilónia, na Amadora, até entrar em declínio com a abertura do Colombo. Passou pela Feira Popular e chegou a ter seis lojas de artesanato, produtos orientais e centros de cópias abertas no Martim Moniz.
Antes de aterrar na Calçada de Santana, onde vive desde 1990, passou por Hong Kong e Inglaterra. O frio de Londres não o conquistou e quando decidiu dar uma volta pela Europa, começou por Portugal e a viagem já não continuou. “A cidade é mais quente, mais calma, tem menos gente, as pessoas são educadas e eu gosto muito dessa tranquilidade”, conta. Mas garante que a paixão pela cidade deu-se na primeira vez que ouviu fado no Bairro Alto: “A vossa música é linda e muito parecida com a do meu país.”
Só no seu prédio vivem portugueses, suíços, dinamarqueses e ingleses, “sem nunca ter havido um único problema”. Gosta de ver a sua comunidade crescer e lembra que quando chegou, nos anos 90, os seus compatriotas contavam-se literalmente pelos dedos de uma mão. Agora, segundo dados da autarquia, são 240, fazendo do Bangladesh o quarto país com mais representação em Arroios.
Luísa Martins
56 anos
Angola
Da rua para um dos bares mais in do Intendente
A história de Luísa não é fácil e isso nota-se na forma como despacha as palavras e foge aos pormenores. Numa frase resume a sua vida: “Vim para Portugal em 1964 com os meus padrinhos, tenho um filho e sempre vivi aqui na zona.” Mas calma, queremos saber mais sobre a nova funcionária do “Largo Café”, com esplanada cheia em plena praça do Intendente. Esperamos pela pausa do cigarro e não deixamos Luísa fugir às questões. Tinha sete anos quando veio para Portugal pela mão dos padrinhos, para quem trabalhou como doméstica até aos 19. “Aí saí de casa, tive o meu filho Nilton e pronto”. Sobre o pai do filho não vale a pena insistir e sobre os pais, pouco tem a acrescentar. “Depois da guerra, nunca mais soube deles, nem sei se ainda estão vivos”. Fez da experiência como servente em casa dos padrinhos profissão, que durou até ao 25 de Abril, “quando tudo piorou”. Ficar sem trabalho e a obrigação de ajudar o filho e a neta levou Luísa para a prostituição na rua, que durou até o ano passado, quando foi chamada para trabalhar no café. “Para quem já viveu o que eu vivi, isto é uma brincadeira”, garante.
A viver na rua da Benformoso desde que se lembra, conhece o bairro como ninguém. Aliás, garante mesmo que foi a “primeira preta” a chegar a Lisboa. “Quando os outros vieram já cá eu estava há muito tempo”. Apesar de reconhecer melhorias no bairro, acredita que a má fama era exactamente isso, apenas fama sem proveito. “A mim nunca ninguém me fez mal, tinha-se era muito respeitinho por quem cá vivia”.
Santosh Adkikani
38 anos
Nepal
Um “Vitorioso” que vive de vinho e chamuças
As chamuças custam 50 cêntimos e o pão naan 1,50 euros. Os preços são apelativos, mas os copos de vinho branco que saem de um pacote no balcão são o que chama a atenção de quem escolheu o “Vitorioso” para ver o Portugal-Alemanha.
Santosh vive em Arroios há quatro anos, depois de ter estudado hotelaria no Japão. Escolheu a capital para casar e montar negócio, quando os amigos que já por cá andavam elogiavam o país e os portugueses. “Portugal é muito parecido com Katmandu”, garante. Perante o nosso ar de espanto, decide avançar com uma explicação: “O clima é quase o mesmo e as pessoas cumprimentam-se na rua e interessam-se pelo bem-estar dos outros”, justifica. Apesar das semelhanças terem saltado à vista primeiro, cedo se apercebeu das diferenças. “O dia aqui começa com uma taça de vinho”. Explico que não será geral, mas é esta a realidade no restaurante que adoptou como seu e onde para comer vêm mais clientes de outras zonas da cidade. O “Vitorioso” era, por tradição, um restaurante português, conceito que tentou manter mas que não durou mais de seis meses. “As pessoas estranahvam ter nepaleses a cozinhar bacalhau e decidimos mudar”. Apesar de viver num espaço multicultural, garante que se quiser não precisa de sair do “mini Nepal” de Arroios, composto por mais de 1330 nepaleses. No meio da conversa alguém grita “golo”. Santosh faz uma pausa na conversa e volta para trás do balcão. Mais uma rodada para festejar a vitória.
Ji Jie Da
49 anos
China
Veio da China para pôr as portuguesas mais bonitas
Ji Jie recebe-nos com um sorriso que contrasta com o ar de medo dos comerciantes chineses das lojas do lado, mal da nossa boca saía a palavra “jornalista”. Nasceu na China, mas os baixos salários da família obrigaram a uma emigração que começou em Valência, passou por Barcelona, Canárias, teve uma paragem de 13 anos no Funchal e só há dois se fixou em Lisboa. A capital ainda não convenceu Ji Jie por completo. “Depois de ter vivido na Madeira, a gerir um restaurante de cinco estrelas ao lado do casino, vir parar ao Intendente e foi um choque”, conta. “Aqui a mistura é muito grande, há pretos, indianos, nepaleses”, e chineses acrescentamos nós. “Chineses”, completa Ji, “é muito confuso”. Apesar do choque inicial, já começa a apreciar a multiculturalidade das ruas. “Se tratarmos bem as pessoas, elas também te vão tratar bem, seja na Madeira, em Espanha ou na China”.
Dona de uma loja de bijuteria e maquilhagem, ficou chocada com a falta de cuidado das portuguesas. “Não se maquilham, arranjam-se pouco, um horror”.
Com quase 500 chineses a viver em Arroios, Ji Jie admite que se quisesse podia viver apenas dentro dessa comunidade, mas não é isso que quer. “Eu já não sou chinesa, sou do mundo”, brinca. É por isso que, apesar de durante a semana fazer compras no supermercado chinês e comer comida típica do seu país, ao fim-de-semana não dispensa uma ida ao shopping e prefere comer sushi, picanha ou um bife na Portugália.