Vida de árbitro. Afinal é muito mais difícil do que parece


O que têm em comum um advogado de 27 anos, um administrativo de 42 e um assistente dentário de 26? À primeira vista, a resposta pode ser difícil, com rasteira, mas Pedro Gaspar Silva, Nuno Vaz e Marco Jorge partilham a paixão pela arbitragem. Ao fim-de-semana, os três passam mais tempo juntos do que com…


O que têm em comum um advogado de 27 anos, um administrativo de 42 e um assistente dentário de 26? À primeira vista, a resposta pode ser difícil, com rasteira, mas Pedro Gaspar Silva, Nuno Vaz e Marco Jorge partilham a paixão pela arbitragem. Ao fim-de-semana, os três passam mais tempo juntos do que com a família e acordam antes do que fariam num dia normal da semana. “Levanto-me mais cedo do que se fosse trabalhar”, atira Nuno Vaz no primeiro encontro pessoal com o i, logo a seguir ao almoço de sábado.

O centro comercial Fonte Nova foi o local marcado para a reunião, mas a comunicação começou muito antes, com a oficialização das nomeações na quarta-feira. Nesse momento, é Pedro Gaspar Silva quem trata de fazer as apresentações e indicar o plano de trabalhos para o fim-de-semana. Depois de saber quem vai arbitrar que jogos, é preciso combinar os vários momentos para que não haja atrasos nem imprevistos. Como em tudo, o advogado de 27 anos parece ser fiel ao lema que tem dentro de campo – esperar o imprevisto.

O fim-de-semana de 7 e 8 de Dezembro está marcado. Começa com um Carcavelos-Porto Salvo em juniores no sábado (15h00) e no domingo há dose dupla – Outurela-Atlético B em juvenis às 10h30 e Oeiras-Cacém em seniores às 15h00. Para dificultar um pouco, o jogo da manhã de domingo só precisa de dois árbitros, pelo que Nuno Vaz foi destacado para um outro encontro, em Albarraque.

A antevisão ao fim-de-semana é um dos momentos mais importantes. Cada árbitro é responsável por fazer o planeamento do jogo que vai liderar e na quinta-feira, entre as 14h18 e as 14h41, caem três e-mails na caixa de entrada. No i, acabamos praticamente por desempenhar o papel de um quarto elemento e acompanhamos esta evolução desde o primeiro segundo. Os documentos não são exactamente iguais mas obedecem a uma série de critérios essenciais que são precisos para preparar um jogo: hora e local da reunião preparatória, agenda planeada ao minuto de quando se faz o quê, o tipo de roupa e equipamento que se vai levar e a classificação e detalhes das equipas que se vão defrontar.

Nuno Vaz será o árbitro do jogo de juniores, pelo que é ele quem decide os momentos de sábado. A reunião preparatória pode ser no Fonte Nova às 13h05, mas minutos antes já se encontraram perto do Campo Grande, numa unidade hoteleira, para seguirem todos no mesmo carro. As apresentações são curtas porque o tempo está contado: enquanto bebem o café, saem as primeiras indicações. “Quero concentração. Não é apenas ver, temos de estar atentos”, pede Nuno Vaz, ao mesmo tempo que deixa Pedro e Marco à vontade para interromperem durante o jogo caso seja preciso.

Pedro Gaspar Silva é quase sempre o porta-voz da equipa. Confiante, com um discurso forte e palavras bem medidas, trata de continuar a desempenhar o papel de melhor anfitrião possível para que nos possamos sentir à vontade. Ele, tal como Nuno e Marco vêem a arbitragem como uma paixão, uma segunda casa, uma segunda vida e não precisam de se esforçar para transmitir essa ideia. “É preciso ter prazer no que se está a fazer. Ando nisto porque gosto mesmo e levanto-me mais cedo do que se fosse trabalhar”, garante-nos Nuno. Pedro recebe o testemunho e continua: “A arbitragem é alegria e prazer. Muita gente gostaria de estar aqui e não está. Tudo o que sei e até a minha forma de estar na vida foi ganha a partir da arbitragem. É como o advogado: tem de ser um exemplo de imparcialidade. As pessoas têm de olhar para o árbitro e ver esse exemplo”. As declarações não são exageradas. Pedro Gaspar Silva pode ser um árbitro jovem mas já está na sua 14.ª época.

A conversa é pequena e não se pode mesmo prolongar. O planeamento tem prevista a chegada a Carcavelos às 13h50 e é preciso cumpri-lo. Já em pleno balneário, depois de ser feita a vistoria ao campo, continuamos praticamente sem ouvir a voz de Marco Jorge. Pode abanar a cabeça a concordar com o que está a ser dito ou sorrir com uma ou outra história, mas falar é mais difícil. “Não gosta muito de dar nas vistas”, explica-nos Nuno Vaz. O árbitro de 42 anos, o mais velho dos três, é naturalmente o mais experiente. “Quando subi à terceira nacional, também subiram o Pedro Henriques e o Duarte Gomes. Desde então, passaram-me muitos árbitros pelas mãos que hoje já estão noutros patamares”, conta, enquanto se prepara para pôr as lentes de contacto em frente ao espelho daquele balneário pré-fabricado junto ao campo. “Nunca me saltou uma lente durante o jogo, mas já fiz um nos Açores só com uma, porque tinha uma úlcera na córnea. E não houve problemas.”

Pontapé de saída O contacto do i com a equipa de arbitragem não é ilimitado. De acordo com o que foi previamente combinado, tem de ser obrigatoriamente interrompido entre o momento em que vão para aquecimento e o que saem do balneário, já com o jogo feito e tudo resolvido. Por isso, naquelas duas horas seguintes, não temos outra solução que não seja assistir ao jogo da bancada.

A sensação é estranha. Pela primeira vez em muitos anos, estamos a ver um jogo apenas pelo ponto de vista dos árbitros, torcendo para que tudo corra bem, não haja situações polémicas ou, caso existam, sejam bem decididas. Possivelmente, é por isto que umas semanas antes, nos disseram no curso de formação de árbitros que não é aconselhável que as famílias acompanhem os jogos. Há pormenores que nos escaparam até então, mas há outros que nunca mudam. As bocas da bancada vão surgir de qualquer forma, independentemente das decisões. Afinal de contas, um fora-de-jogo difícil de assinalar será sempre criticado quando há duas vontades diferentes entre os espectadores. Aí, começam a surgir os clichés. “Abre os olhos, pá! Não dormiste?! Já viste a cara do gajo? Olha para ele… está para ali armado em parvo!” O reverso da medalha também existe, com um desabafo a meia-voz que só ouvimos porque estamos praticamente na cadeira ao lado: “Preocupam-se mais com os árbitros do que com o jogo.”

A primeira parte é complicada. A defesa do Carcavelos está a jogar em linha e o Porto Salvo tem avançados velozes. As jogadas rápidas, a solicitar as costas da defesa, sucedem-se e numa delas um central pontapeia um jogador do Porto Salvo, que seguia isolado. Nuno Vaz confirma com Pedro Gaspar Silva e mostra um vermelho. Justo para nós, mas não para os adeptos do Carcavelos. Aí, voltam as bocas: “Devia dar-te uma caganeira de quinze dias ou julgas que eu não te vi a dizer que era para vermelho? Não bastava amarelo?” As frases não têm qualquer tipo de eco na equipa de arbitragem e umas horas mais tarde Pedro garante-nos que não há nada a fazer: “Chega a uma altura em que não se sente o público, não se sente os protestos. Sabes que estás a fazer o teu trabalho e vais ser sempre criticado.”

Quem é quem? O primeiro dos três jogos do fim-de-semana está resolvido mas o dia ainda não acabou. Como a agenda de domingo está cheia, Pedro Gaspar Silva marcou a reunião de planeamento para depois do encontro de juniores. Enquanto esperamos pelas tostas, sumos e galões, aproveitamos para perceber exactamente quem são aquelas três pessoas que estão à nossa frente e o que as levou a escolher uma segunda vida que é desgastante física e mentalmente e que requer tanto tempo por semana.

Nuno Vaz dá o mote, afinal é ele o mais velho. Começou com 18 anos, em 1990, e não tinha qualquer passado no futebol, apenas uma experiência federada como base do Ateneu Comercial de Lisboa (basquetebol). Na altura, a iniciativa não foi muito bem vista pelo pai. “”Deves estar a brincar comigo?”, disse-me. Ele não me conseguia imaginar como árbitro”, contou. Agora, a área já é uma tradição familiar e a sobrinha já lhe seguiu os passos.

O impacto familiar foi decisivo no início de Pedro Gaspar Silva. Com 14 anos, decidiu enveredar por um rumo que o irmão, seis anos mais velho, já tinha escolhido. “Fiz parte da equipa dele e ainda hoje me acompanha nos jogos que faço. Tive essa sorte, sempre senti muito o apoio dele e discutíamos muito os lances em casa”, confessa. Mas não é a única confissão que tem para dar sobre o passado, já que antes de ser árbitro, tentou a sorte como jogador durante um ano no Vitória de Lisboa. “Depois tive uma pubalgia e parei. Mas também não jogava nada”, admite, provocando uma avalanche de risos nos colegas. Ainda assim, destaca com orgulho o facto de a equipa ter acabado o campeonato sem um único cartão amarelo.

O próximo momento é especial. Não porque as tostas já chegaram e chegou finalmente a altura de comer, mas porque Marco assume finalmente, sem rodeios, a altura de falar. “Já só falta saber uma história”, lançamos, abrindo espaço para o discurso. “Joguei no Monte Agraço e ainda cheguei a ser sénior no Livramento, mas jogar estava de chuva”, explica, antes de apontar a morte do pai como um dos motivos para a desistência. E se Pedro Gaspar Silva se orgulha de não ter havido um único amarelo naquela época na equipa, Marco Jorge destaca uma única advertência em “sete/oito anos” de futebol. Depois, em 2010, chegou a arbitragem. “Tinha curiosidade e respeito. Decidi avançar exactamente por isso, pela curiosidade.”

Hora de trabalhar Os estômagos estão cheios, as histórias foram contadas e é altura de abordar o jogo da tarde de domingo. Pedro Gaspar Silva saca o portátil da mala e começa a preparar o que precisa. Marco e Nuno puxam as cadeiras, sentam-se ao seu lado e mudam as feições. Agora é hora de trabalhar.

A apresentação do advogado, feita em PowerPoint, centra-se numa tríade de conceitos – equilíbrio, coesão e espírito de equipa. Os slides vão passando numa conversa que sai de forma natural mas que está quase mecanizada. “Não se preocupem, está a ser rápido porque eles já ouviram isto muitas vezes”, diz-nos. Não há pormenor que passe em claro, desde as áreas de intervenção às zonas que cada um é responsável em cantos, livres directos e livres laterais. E depois, o scouting sobre as equipas. Pedro Gaspar Silva estudou tanto quanto possível o passado dos jogadores e previu como poderia ver a ser o jogo. Entre outras coisas, avisou para uma entrada a todo o gás do Oeiras. Por mais previsões que se fizessem, lembrava da necessidade de “esperar o inesperado”. A sessão termina com um conjunto de 15 lances polémicos do fim-de-semana anterior. O objectivo é ver e decidir no momento, sem repetições.

Domingo de loucos O dia começa com uma experiência a que poucos estão habituados: jogos com apenas dois árbitros. O facto de ser um encontro de juvenis e numa divisão mais baixa permite essa diferença, mas ainda assim há desafios inerentes. “É preciso ficar mais atento e trabalhar mais em equipa porque é muito difícil ver do outro lado”, refere-nos Pedro, que será o braço-direito de Marco Jorge nesse encontro. Nuno Vaz está noutro campo, em Albarraque, mas não é esquecido. A escolha de equipamentos dificulta e é preciso ligar para garantir que não haverá problemas à tarde. “Não te esqueças de usar a camisola preta antiga de manga comprida. Assim à tarde temos duas opções: preta antiga de manga curta e a nova de manga comprida”, avisa Pedro.

O jogo não traz problemas de maior mas a saída do campo às 12h45 inicia um período frenético em que não pode haver deslizes. É preciso encontrar a solução mais rápida possível para almoçar e o tempo está contado ao segundo. Quando chegamos a uma grande superfície comercial, Pedro avisa-nos que só há quinze minutos para almoçar, antes de se decidir por uma sopa ligeira. Já Marco escolhe um menu de uma companhia de fast-food. A experiência não é nova mas nem assim se decidem a trazer comida de casa. Simplesmente, não faz parte. Na fila, enquanto se espera pelos pedidos, Pedro Gaspar Silva revela-nos uma intuição – acha que vai ser observado. Porque ainda só o foi uma vez até então e porque o jogo parece ser propício para isso.

Minutos depois, Pedro e Marco desaparecem pelo meio de uma multidão domingueira que tem todo o tempo do mundo a perder. Ao contrário deles, que correm contra o relógio para irem buscar Nuno Vaz ao Oeiras Parque. Nós, mais à vontade, seguimos com calma e vamos directamente para o Municipal de Oeiras. Lá, acabamos por esperar uns minutos pela equipa de arbitragem, novamente junta. O estacionamento é feito numa pequena garagem do clube, para garantir que não há problemas com o carro. E aí começa o terceiro ritual do fim-de-semana. À espera no balneário, estão as tradicionais gentilezas da equipa da casa: uma garrafa de água de litro e meio, três bananas e três sandes. Quando saem para aquecimento, há comentários na bancada que sobressaem mesmo atrás de nós. “O aquecimento dos árbitros é que me confunde…”, diz um. “Tem tudo a ver com os movimentos que fazem durante o jogo”, esclarece outro.

O jogo não é fácil. O Oeiras marca cedo depois de uma entrada forte (Pedro acertou na mouche) mas termina a partida a jogar com dez, após uma expulsão por acumulação de amarelos mostrados no espaço de um minuto. No dia seguinte, voltaram os e-mails com o debriefing do que tinha sido a partida. O balanço final foi positivo mas não deixaram de ser abordados os pontos que podem ser melhorados e a dificuldade de almoçar dentro do tempo disponível. Pedro Gaspar Silva analisou individualmente cada um dos três e foi mais pormenorizado na auto-avaliação, confirmando a ideia de que é muito exigente consigo mesmo e que tem uma vontade insaciável de melhorar. O lema do final do documento também diz muito: “Sorte igual a oportunidade mais competência.”

Sexta-feira chegou finalmente a confirmação de que houve um observador e que a intuição estava correcta. Só aí, cinco dias depois do jogo, é que o ciclo se fechou finalmente. Mas por essa altura já havia mais quatro nomeações (com dois jogos no domingo de manhã desta vez). Porque a vida de árbitro também é assim: quando uma coisa acaba, já esta outra a começar. E quem o faz, fá-lo por gosto. “Com alegria e prazer” e ignorando todas as sugestões mais criativas que vêm da bancada.