Ruanda. 20 anos depois “o mundo não aprendeu nada”


Paul Rusesabagina, o activista que inspirou o filme “Hotel Ruanda” (2004), está convencido de que o mundo não aprendeu nada com o genocídio no seu país e continua “a fechar os olhos e virar as costas como se não lhe dissesse respeito”. Em entrevista ao “Folha de S. Paulo”, o antigo gerente do hotel onde…


Paul Rusesabagina, o activista que inspirou o filme “Hotel Ruanda” (2004), está convencido de que o mundo não aprendeu nada com o genocídio no seu país e continua “a fechar os olhos e virar as costas como se não lhe dissesse respeito”. Em entrevista ao “Folha de S. Paulo”, o antigo gerente do hotel onde as vidas de 1268 pessoas foram mantidas a salvo dos massacres que em cerca de 100 dias causou uma das piores e mais rápidas matanças de sempre – com mais de 800 mil mortes numa população de 7,7 milhões, a golpes de machete -, afirma que hoje “é a vez da Síria. A história repete-se e nunca se faz nada. A cada nova matança, o mundo diz “nunca mais”. Será que é isso que quer dizer?”

À frente do hotel de luxo na capital, Kigali, quando na Primavera e início do Verão de 1994 os extremistas do Hutu Power puseram em marcha o plano para exterminar a minoria Tutsi – matando pelo caminho os Hutus moderados que se recusassem a “fazer a sua parte”, o Hutu Rusesabagina serviu-se do poder persuasivo do dinheiro e, através de subornos a membros do governo e das milícias, conseguiu salvar uma pequena colónia, que incluia a sua própria família, no seu hotel.

Ao mesmo tempo que nega ser retratado como um “Schindler ruandês” e que garante ter feito apenas o que lhe era exigido pela situação, o activista lembra que aquele era um genocídio “fácil de interromper; matava-se com machetes e lanças – mas a comunidade internacional preferiu fugir e abandonar uma nação nas mãos de gangsters”.

Ontem, o maior estádio do país, Amahoro, ficou pelas costuras com milhares de ruandeses a tomarem parte na cerimónia que marcou o 20º aniversário do começo do massacre. A embaixadora norte-americana na ONU, Samantha Power, foi responsável por uma das frases mais marcantes ao afirmar que o genocídio era uma “recordação devastadora de que pesadelos que estão para lá da imaginação podem de facto ocorrer”.

Mas se é verdade que desde então, a comunidade internacional foi forçada a reconhecer que tinha assistido impávida recentes declaração do presidente Paul Kagame, acusando França e Bélgica (antiga potência colonial) de participarem nos massacres reabriu velhas cicatrizes e viu azedar novamente as relações entre Kigali e Paris. O presidente Tutsi que, em 2004, liderou os rebeldes da Frente Patriótica Ruandesa que pôs fim ao genocídio, tinha já há dez anos provocado outra ruptura, atribuindo a Paris a “audácia de não pedir desculpa”. Depois de França ter anulado a deslocação da sua ministra da Justiça ao Ruanda para a cerimónia de evocação do genocídio, levando, por sua vez, as autoridades de Kigali a barrar a entrada do embaixador francês em todas as cerimónias, Paul Kagame advertiu França de que “nenhum país é tão poderoso que mude factos, mesmo quando pensa que é”.

Para Rusesabagina, a culpa pelo massacre é compartilhada entre antigos colonizadores belgas e os próprios ruandeses: “Os belgas mediram os nossos narizes e disseram que os Hutus não eram tão elegantes ou inteligentes como os Tutsis. E fomos nós, ruandeses, que massacrámos os nossos amigos.”

No poder há 14 anos, Kagame é ainda hoje elogiado por ter tirado o país de um grave período de violência e o seu governo promoveu os direitos das mulheres, o desenvolvimento económico e a saúde. Mas várias organizações dos direitos humanos e críticos, entre os quais se inclui o próprio Rusesabagina, dizem que o progresso tem sido alcançado à custa de um domínio autoritário, com muitos críticos do governo e membros da oposição a serem perseguidos e mortos. Rusesabagina diz que Kagame chefia “uma ditadura sem precedentes”: “As duas últimas décadas foram um período de vingança. Vimos o outro lado da moeda.”