Isabel Camarinha. “A seguir a este confinamento muitas empresas não voltam a abrir”

Isabel Camarinha. “A seguir a este confinamento muitas empresas não voltam a abrir”


Para a líder da CGTP, serão milhares de trabalhadores que poderão ficar desempregos, a somar aos postos de trabalho que já foram perdidos desde o início da pandemia.


Desde a última entrevista, em abril, o estado do país agravou-se não só em termos de saúde, mas também económicos e sociais. Que análise faz?

Tínhamos acabado de sair do nosso congresso, em que esta direção foi eleita e deflagrou esta situação terrível para todos. Uma situação que nenhum de nós estava preparado para enfrentar. Nessa altura, foram aprovadas as grandes prioridades para a ação sindical, mas a pandemia e as medidas sanitárias que foram implementadas causaram enormes consequências do ponto vista económico e social, em que se acentuaram muito as desigualdades e toda a caracterização que tínhamos feito acentuou-se. Ou seja, não é que se tenha alterado para outra coisa diferente, mas agravou-se muitíssimo e depois não houve, por parte de quem tem o poder político, a resposta que enfrentasse os problemas causados pelo encerramento de grande parte da economia. As medidas do ponto de vista sanitário foram tomadas mas, por outro lado, não garantindo nem a manutenção do emprego, nem a retribuição dos trabalhadores, nem a proteção de todos os que dela necessitavam. Percebe-se que houve medidas que só foram tomadas à medida que as coisas foram acontecendo, o que se compreende. O que não se compreende é que depois não tenham sido suficientes e tenham sido bastante desequilibradas.

Disse no congresso que foram definidas uma série de prioridades. Com a pandemia tiveram de ser revistas?

Não, porque, naquela altura, tínhamos uma situação fragilizada da nossa estrutura produtiva, fruto de décadas de política de direita. Estávamos submissos às prioridades e imposições da União Europeia que dão projeção às necessidades e prioridades das grandes potências europeias e não a países como Portugal, em que os vários governos que foram sucedendo acabaram sempre por ir aceitando. Estou a falar do Pacto de Estabilidade e Crescimento, do défice, do euro e das regras que nos condicionam e que impedem o nosso desenvolvimento. E apesar de algumas alterações que foram introduzidas na anterior legislatura, que permitiram alguns avanços, nomeadamente do ponto de vista salarial, do poder de compra dos trabalhadores, não foram suficientes, mas contribuíram para que houvesse algum desenvolvimento da economia. O que colocámos no congresso era esta caracterização do país de modelo de baixos salários, de precariedade, de desinvestimento nos serviços públicos, nas funções sociais do Estado com a redução brutal do número de trabalhadores. O período da troika provocou isto e depois não houve recuperação suficiente. Pode ter havido uma coisita ou outra, mas muito insuficiente. A legislação laboral em vez de cumprir o seu papel, que é proteger a parte mais fraca, que é o trabalhador, trata como se fossem iguais patrões e trabalhadores, nomeadamente com a questão da caducidade das convenções coletivas de trabalho que impedem a dinamização da contratação coletiva.

A pandemia é justificação para isso?

O que aconteceu com a pandemia é que tudo isto se agravou. A resposta que vem desde o início não impediu o desemprego. Houve milhares de jovens e de trabalhadores com vínculos precários que, logo nos primeiros 15 dias, perderam o posto de trabalho. Milhares e milhares de trabalhadores chamados independentes, os falsos recibos verdes, deixaram de ter qualquer fonte de rendimento. Milhares de trabalhadores de empresas de trabalho temporário de repente viram os seus postos de trabalho desaparecerem porque as empresas que os contratam pararam e dispensaram automaticamente as empresas prestadores de serviços.

Em relação aos precários já disse que mais de 136 mil perderam o emprego….

Isso foi em relação a 2020. O número não está muito desatualizado, mas agora terá aumentado. No ano passado, perderam-se mais de 100 mil postos de trabalho, dentro desses houve saídas e também entradas nos números totais do emprego. Dos que foram despedidos cerca de 57% tinham vínculos precários.

E pode aumentar com o fim do layoff

Essa tem sido a preocupação que temos manifestado todos os dias ao Governo por não ter havido a proibição de todos os despedimentos e por não se ter garantido o apoio efetivo às empresas que realmente precisavam dele para manterem os seus postos de trabalho. Acredito que a seguir a este confinamento, muitas empresas que foram obrigadas a encerrar, eventualmente já não voltam a abrir. Serão mais milhares de trabalhadores que poderão entrar numa situação de desemprego. Houve aqui uma bola de neve que cresceu, a situação que já tínhamos agravou-se com a epidemia e com a falta de medidas efetivas que impedissem isto. Num quadro de surto epidémico como este não podia haver despedimentos. Tinha era de haver apoios às empresas e tenho dito isso na concertação social. A CGTP nunca esteve contra os apoios às empresas, pelo contrário, consideramos que devem ser apoiadas, mas aquelas que precisam realmente de apoio. Não é indiscriminadamente, deixando que grandes grupos económicos e grandes empresas que não precisam, porque algumas delas até distribuíram dividendos entre abril e junho de milhões, fiquem com a maior fatia dos apoios.

E o cenário da distribuição de dividendos deverá repetir-se…

Exato e muitas delas foram buscar apoios ao Orçamento do Estado.

Pode dar exemplos?

A Navigator foi uma delas, mas não só. A Galp, por exemplo, que agora decidiu encerrar a refinaria de Matosinhos distribuiu 500 milhões de dividendos. Há situações que não podiam ter acontecido. O que o Governo fez foi impedir despedimentos coletivos e extinções de postos de trabalho nas empresas que estavam a ter os apoios covid durante aquele período e durante mais 60 dias seguintes. Mas a verdade é que não impediu a cessação de contratos de trabalho a termo, não impediu o despedimento dos trabalhadores em período experimental. E, já agora, é preciso recordar – e essa foi também uma das conclusões do congresso – que a legislação laboral precisa de ver revogadas um conjunto de normas que impedem a negociação coletiva, que fomentam a precariedade, desregulam os horários de trabalho e embarateceram os despedimentos. É certo que nem todas as medidas foram aprovadas na anterior legislatura, mas algumas foram, nomeadamente as do período experimental, do banco de horas, dos contratos de muita curta duração que passaram a ser generalizados. Houve um conjunto de alterações ao Código de Trabalho, em 2019, por parte do PS, o mesmo que ainda está no Governo, que propôs e aprovou na Assembleia da República uma série de mudanças, contra as quais lutámos porque considerámos que vinham desequilibrar ainda mais as relações de trabalho e fazia com que a legislação laboral não cumprisse com aquilo que deveria cumprir. Tudo isto, em paralelo com a epidemia, veio trazer à evidência um conjunto de necessidades que já tínhamos identificado há muitos anos. É o caso da necessidade de aumentar a produção nacional, de recuperar empresas e setores estratégicos para o desenvolvimento do país, de investir nos salários dos trabalhadores – mas um aumento geral dos salários – para aumentar o poder de compra dos trabalhadores e das suas famílias. Também em relação aos serviços públicos, a epidemia veio pôr a nu a importância que estes têm para responder às necessidades. E quando dizemos SNS, estamos a dizer Serviço Nacional de Saúde e não Sistema Nacional de Saúde. Durante uns meses só se falava de Serviço Nacional de Saúde, agora já temos muitas áreas políticas a falar de Sistema Nacional de Saúde, englobando aqui o setor privado que o que tem feito é recolher milhões de euros de lucro à custa da saúde das populações quando é ao Estado que compete, e a nossa Constituição o assim determina, assegurar os cuidados de saúde a todos os cidadãos. Também mostrou a importância da escola pública, pois foi ela que deu resposta a este ensino à distância que agora voltou. De certeza que não seriam os estabelecimentos de ensino privado que iriam garantir massivamente o ensino à distância e, mesmo assim, com as desigualdades que sempre teve e também aí as medidas do Governo não acautelaram.

É o caso da compra de computadores?

Sim, além dos problemas daqueles que não têm rede. A desigualdade é muito grande e acentuou-se.

Em relação ao SNS como vê esta mudança de discurso dos partidos?

Naquela altura até deu jeito defender o SNS porque os privados fecharam as portas, não foram os privados que responderam à situação: foi o SNS. E a direita sabe disso. Mesmo aqueles que queriam menos Estado, melhor Estado – o que é uma coisa completamente extraordinária – naquele momento perceberam que não era altura de dizer isso, mas rapidamente estão a querer que os grandes grupos privados da saúde sejam envolvidos e integrados nesta resposta que é preciso dar. No entanto, são envolvidos e integrados à custa daquilo que são as nossas contribuições e os nossos impostos porque o Estado paga-lhes para eles prestarem esse serviço porque não toma as medidas necessárias que é reforçar o SNS com profissionais, com meios, com equipamentos, com as condições necessárias para responder à covid e aos outros problemas. Todos sabemos que os outros problemas não estão a ter a resposta com milhares de consultas e exames a serem adiados. Tudo isto vai sair-nos muito caro, tal como este confinamento. Se as medidas tivessem sido logo as necessárias se calhar não teríamos precisado de medidas de confinamento tão profundas. Por exemplo, a proteção dos trabalhadores nos locais de trabalho é fundamental e estamos aqui a englobar as escolas que, na abertura, não tiveram as condições necessárias para evitar os contágios, tal como os transportes públicos que não tiveram nem essas condições, nem oferta suficiente para prevenir os contágios. Se isso tivesse sido feito e se tivesse havido um maior rastreio e um maior acompanhamento dos contágios e dos contactos desde o início a situação poderia ter sido diferente. Fala-se em confinamento geral, como se falou em março e abril do ano passado, mas tiveram sempre excluídos muitos milhares de trabalhadores que todos os dias tiveram que ir para os seus locais de trabalho. Não só os profissionais da linha da frente, mas também quem produz, distribui e armazena os bens essenciais, de quem dá resposta do ponto de vista do saneamento, de limpeza, entre muitos outros. E nenhuma indústria foi obrigada a parar, muitas pararam porque não tinham encomendas e preferiram entrar em layoffs e em outras situações desse tipo. O mesmo aconteceu com a construção civil que nunca foi obrigada a parar, sem falar dos serviços locais, da proteção civil, das forças de segurança. Estamos a falar de muitos, muitos milhares. A esses não foram garantidas todas as condições. Espero que este plano de desconfinamento garanta isso e garanta também a recuperação económica que signifique investimento nos salários, no aumento do poder de compra dos trabalhadores e das suas famílias porque é aí que as empresas vão buscar também a venda do produto, a produção, o fabrico, etc. Isto é uma pescadinha de rabo na boca porque se começamos a reduzir tudo reduz. Vimos isso recentemente com a troika e depois a seguir à troika houve algum avanço. E também é preciso acabar com as desigualdades entre mulheres e homens que se acentuaram com a pandemia.

Em que houve mais despedimentos…

Foi nas mulheres que houve mais despedimentos e foram as que tiveram maiores cortes salariais. São as que têm salários mais baixos e onde há maior desigualdade deste ponto de vista porque há milhares de mulheres que fazem a mesma função que o homem que está a trabalhar ao seu lado e que não têm o mesmo salário porque tem outra categoria profissional. Ser mulher ou homem não é indiferente, como é óbvio.

O que é preciso fazer para mudar?

São precisas medidas concretas e são não só legais, não é a questão das quotas que vai trazer mais igualdade. O que traz mais igualdade é o aumento geral dos salários, é a valorização do trabalho, dos trabalhadores, das carreiras e das profissões que estão desvalorizadíssimas, seja no público, seja no privado. Temos milhares de trabalhadores que trabalham há 10, 15, 20, 30 anos sem ter qualquer evolução profissional e muitos deles com o salário mínimo nacional ou pouco mais do que isso. E isto aplica-se sempre mais às mulheres porque são elas que têm em maior número o salário mínimo. Se houver valorização das profissões, se houver investimento na formação profissional isso terá consequência na igualdade. Naturalmente que se uma mulher tiver a possibilidade de progredir, progride.

E ter o mesmo ordenado que o homem…

Mas isso é um combate que temos que fazer caso a caso, em cada empresa, assente na exigência da igualdade e de medidas ativas do poder político que obriguem a que isso aconteça. Isso está inscrito na nossa Constituição, do ponto de vista legal está garantido, mas como é que se pode ter igualdade se não houver possibilidade da conciliação entre a vida pessoal e a vida profissional? As mentalidades também têm de mudar. A partilha tem aumentado, mas ainda recai sobre as mulheres grande parte das responsabilidades familiares, domésticas, etc. Felizmente que as coisas estão a melhorar desse ponto de vista, mas crises como esta voltam a fazer regredir.

Isso reflete-se ainda mais em quem está em teletrabalho?

Foi uma situação que consideramos completamente inaceitável desde o início, que é o facto de os trabalhadores estarem em teletrabalho e terem de tomar conta dos filhos. Como é possível? Sem falar nos horários longos e desregulados. Hoje temos uma situação em que grande parte dos trabalhadores não tem um horário de trabalho definido. As alterações que foram introduzidas à legislação laboral e que permitiram a generalização do trabalho por turnos, de trabalho noturno, de bancos de horas vieram trazer ainda maior desregulação. Os nossos horários já são longos porque 40 horas de trabalho semanal é longo e o mundo pula e avança, mas depois quem se aproveita desse pular e avançar só são alguns, em detrimento da maioria que continua a ter condições muito difíceis de trabalho. Esta situação veio agravar-se com a pandemia e recai muito sobre quem já estava fragilizado ou já estava em situação de desigualdade. É o caso das mulheres trabalhadoras e dos jovens. As jovens mulheres foram as primeiras a serem despedidas neste quadro de epidemia. Isto é exatamente o contrário do que se apregoa, de se querer motivar os jovens. Houve aquela saída do Passos Coelho há uns anos no período da troika “do emigrem” e eles emigraram. Enfermeiros e médicos fugiram porque as condições que lhes eram dadas eram terríveis: salários baixos, horários terríveis, condições de trabalho muito difíceis, falta de equipamentos. Hoje qual é o jovem que tem perspetiva de poder organizar a sua vida? Com um salário mínimo de 665 euros – que é o que grande parte tem quando começa a trabalhar, em empregos com vínculos precários: a prazo, independentes, alguns quase a trabalhar à hora/dia – como é que isso é possível? Os jovens sentem que são os mais prejudicados com toda esta situação.

Daí ter defendido um outro rumo para o país?

A nossa sociedade organiza-se em função do trabalho. Se não se valoriza o trabalho e os trabalhadores, se não se garante condições salariais, de trabalho, de saúde e de segurança não se consegue dar resposta às necessidades. Os próprios trabalhadores não se sentem motivados e, mesmo assim, veja-se a resposta que foi dada durante este ano com a situação epidémica e que foi uma resposta extraordinária. Mas não é com palminhas que dão comida aos filhos, nem compram ou arrendam casas.

O que é preciso fazer?

Logo à partida é preciso fazer frente à União Europeia a estas imposições e a estes constrangimentos, nomeadamente exigindo a renegociação da dívida que temos, que é incomportável e que irá inevitavelmente aumentar. Não estamos contra que aumente porque é necessário para fazer face à pandemia, agora não podemos estar sujeitos àqueles juros e àquelas condicionalidades porque o que sempre nos foi imposto foi contenção salarial, uma legislação laboral mais flexível, mais “moderna”. Que modernidade é que têm horários de 40 horas que podem ser aumentadas com bancos de horas, sem o trabalhador ter a compensação por estar a prestar trabalho extraordinário? Isto não é modernidade nenhuma, é voltar ao século XIX, em que se trabalhava de sol a sol com aquele salário. Depois, é preciso defender o desenvolvimento do nosso país, da nossa economia. Por exemplo, o caso da Galp: o encerramento da refinaria de Matosinhos vai ter consequências gravíssimas para o nosso país do ponto de vista económico, quer local, quer no plano nacional.

A CGTP tem estado presente nos plenários…

Temos estado nas ações que os trabalhadores têm realizado e a exigir da parte do Governo uma atitude. O Governo também é acionista da Galp e tem todas as possibilidades de exigir que a Galp mantenha em funcionamento uma refinaria que garanta combustível para ser distribuído em toda a região Norte do país e um conjunto de produtos muito diversificados que só ali são produzidos. Há um conjunto de empresas, nomeadamente na região que vai de Viana do Castelo a Aveiro que vai ser altamente prejudicada. O que vai acontecer? A refinaria de Sines não vai ter condições para produzir toda a quantidade necessária, nem tem possibilidade de produzir os produtos além dos combustíveis que são produzidos em Matosinhos. Essa decisão é toda em nome da transição energética e mesmo que vá de Sines só o transporte para o Norte já está a poluir mais e vamos continuar a precisar desses combustíveis. Uma coisa era ir-se caminhado – e bem – para a tal descarbonização, mas que se garantisse alternativas. Se não há alternativas, o que vai acontecer é que aquilo que não é produzido na refinaria vai ter de ser comprado noutro sítio qualquer, transportado e pago. Já estamos a prever que vamos comprar à Repsol, em Espanha. Isso não vai ao encontro do desenvolvimento da nossa economia, nem ao desenvolvimento do nosso país.

Fora os milhares postos de trabalho que são postos em causa…

Isto significa 1500 postos de trabalho – 500 diretos e mil das empresas que prestam serviço à refinaria – mas há muitíssimos outros das tais empresas que se apoiavam na refinaria e que também vão ter consequências. Não é por acaso que na região Norte não há apoio a este encerramento.

E qual tem sido a resposta do Governo?

Está a desresponsabilizar-se. Ninguém nega a importância da transição energética, mas tem de haver um caminho que tem de ser feito e que as grandes potências vão fazer. A Alemanha tem oitenta e tal centrais a carbono, mas só está a perspetivar encerrá-las daqui a muitos anos. Sermos bons alunos e ser mais papistas que o Papa não nos traz benefícios nenhum.

Outro tema que tem estado em cima da mesa é o PRR. Como vê as críticas das confederações?

As empresas vão beneficiar muitíssimo se este PRR for aplicado da forma como está, até porque, grande parte do seu conteúdo vão ser as empresas privadas a pô-lo em prática. Aliás, até o próprio primeiro-ministro veio dizer que mais de quatro mil milhões de euros eram diretos para as empresas. O plano não diz como tudo isto vai ser concretizado. O que consideramos é que falta uma direção de garantir que alteramos este modelo económico, nem sabemos que condicionalismos é que vai impor. No entanto, o Governo vai ter de prestar contas a par e passo daquilo que vai fazendo, mas é certo que não vai ao encontro do emprego de qualidade, do emprego seguro, com direitos e com salários valorizados.

Aliado ao receio de que o dinheiro pode ser mal gasto…

Essa é outra questão que também colocamos. Não podem continuar a ser os mesmos grandes grupos económicos, as grandes empresas a beneficiar destes fundos que depois ainda por cima não dirigem a sua atividade para aquilo que é necessário. Para já, devia haver apoio às pequenas e médias empresas que estão em enormes dificuldades e não há essa garantia. Um apoio que garantisse a manutenção de todos os postos de trabalho, a sua viabilidade e o tal aumento da produção nacional.

Muitas das atividades foram obrigadas a fechar. Como vê esses apoios?

As medidas do Governo devem ser dirigidas, principalmente para as micro, pequenas e médias empresas, nomeadamente dos setores mais afetados. É o caso da restauração e da cultura, cujos apoios são muito pequenos. Como é dada a possibilidade a qualquer empresa – tirando uma ou outra fatia não muito grande, mas que é mesmo dirigida ao pequeno comércio, à restauração, à cultura e não garantem a viabilidade das empresas – de pedir apoio, o que é que acontece? As grandes empresas têm muito mais facilidade em aceder do que as precisam. Um dos critérios foi a quebra da faturação, mas isso foi geral para todos. No layoff simplificado, uma grande parte dos apoios foram as grandes empresas que o obtiveram. Muitas delas com lucros, com situações financeiras que lhes permitiam aguentarem-se, enquanto outras pequeninas não estavam em situação financeira para isso, porque no primeiro/segundo mês já estavam completamente com a corda na garganta. Mesmo com as mudanças que foram feitas depois pelo Governo, tudo isso atrasou-se muito, demorou muito tempo e deixou as micro e as pequenas empresas numa enormíssima dificuldade. Outra consequência que esta epidemia teve, que nada tem a ver com o vírus, nem com a situação económica/social, foi o aproveitamento de muitas empresas para tentar limpar os direitos dos trabalhadores e não cumprir o que está estabelecido na contratação coletiva, na lei. Temos muitas situações de atropelo aos direitos que não têm tido a resposta necessária por parte da ACT – que não tem meios e muitas vezes as suas orientações não estão dirigidas para aquilo que é necessário, inclusive de trabalhadores que estão em teletrabalho.

E a mistura com a vida pessoal…

A promiscuidade entre o trabalho e a vida familiar de um trabalhador que está a trabalhar em casa é total. Muitos não têm condições. Está o pai, a mãe e os filhos todos na mesma sala, a utilizarem se calhar o mesmo computador ou dois para uns poderem ter as aulas e outros trabalharem. E depois há a questão do acumular dos filhos com o teletrabalho, o que vem trazer imensos problemas de abuso brutal relativamente aos horários de trabalho. Uma família com um bebé pequeno obviamente que não pode deixar a criança sozinha e continuar a trabalhar ao mesmo tempo. E muitas empresas o que dizem é que essa compensação pode ser feita à noite. Os trabalhadores têm de ter horário, intervalo para descanso, direito a cuidar dos filhos, tal como aqueles que estão a trabalhar no local de trabalho. Quando foi reativada a medida do ano passado de apoio extraordinário às famílias por causa do encerramento das escolas defendemos logo que quem estivesse em teletrabalho pudesse optar pelo apoio à família e que o pagamento fosse a 100% para todos. O Governo alterou um bocadinho a medida, mas não foi até ao fim em termos de resolução do problema.

Aumentaram as queixas à ACT?

Tem havido muitas. A ACT é que não tem meios para chegar a todo o lado, mas muitos trabalhadores acabaram por aceitar as exigências das empresas. E depois há esta tentativa de que “a pandemia veio mudar tudo isto”, “veio alterar o paradigma que tínhamos”, como se as relações de trabalho não continuassem a ser as mesmas e os direitos dos trabalhadores também. E da parte das empresas há uma tentativa de dizer aos trabalhadores que esta não é a altura de estarmos preocupados com o exercício dos direitos, com a possibilidade de cumprir o horário. Isto acaba por ser uma tentativa de redução dos direitos dos trabalhadores por via do vírus, é o aproveitamos do vírus, o vírus não tem culpa nenhuma disso.

E subiram as queixas na CGTP?

Logo no início houve muitos trabalhadores que denunciaram situações de abuso, de dificuldade de prestação do trabalho, principalmente por parte daqueles que tinham filhos pequenos e estavam em teletrabalho. Mas não só. Temos situações muito diversificadas. Por exemplo, um trabalhador de call-center por motivos sanitários estava ansioso para ir para teletrabalho, mas a conjugação disso com o apoio às famílias é completamente impossível. Depois há a questão dos horários, em que muitos deles são pressionados para prolongarem o horário e para estarem disponíveis 24h por dia.

E perante essas denúncias intervém diretamente nas empresas?

Normalmente intervimos diretamente nas empresas ou se for preciso acionamos a ACT no sentido de ir verificar a situação. Mas, geralmente, confrontamos a empresa com o seu incumprimento e exigimos que seja cumprido. Há empresas que percebem e regularizam, outras não. Aí temos que acionar outros mecanismos, o que depois nem sempre tem a resposta que devia ter. Como disse, a ACT não tem meios para chegar a todo o lado e, muitas vezes, o entendimento da ACT vai mais ao encontro do patrão do que aos direitos do trabalho.

Tem o número de queixas?

São muitos milhares.

Tem defendido o pagamento dos custos com teletrabalho, como luz e água. Houve alguma sensibilidade em receber essa proposta?

A lei estabelece que os trabalhadores em teletrabalho têm que ter os mesmos direitos que os trabalhadores que estão no local de trabalho. Os que estão no local de trabalho não pagam a energia, a água, as telecomunicações, a internet, já para não falar nos equipamentos. Por isso, consideramos todo o acréscimo de despesa que o trabalhador tem por estar a trabalhar a partir da sua casa. Até podia ter internet, mas eventualmente muitos alteraram os seus planos para poderem dar resposta às necessidades laborais, deve ser assumido pela empresa. Um trabalhador não tem de estar a pagar aquilo que a empresa poupa em energia, em água, etc.

E como vê as declarações de quem defende que este modelo de teletrabalho é para o futuro….

Aceitando que neste momento o teletrabalho pode ser uma forma de impedir que haja tanta circulação e concentração de pessoas, não nos parece que seja um modelo para generalização no futuro. Não só pelo isolamento como também impede a troca de experiências, o trabalho em equipa. Somos animais sociais, precisamos uns dos outros e melhoramos a nossa prestação quando trabalhamos em coletivo. Independentemente de haver funções que poderão eventualmente funcionar assim e até pode haver trabalhadores que possam gostar, mas também podem gostar num momento em que estão muito pressionados pela situação epidémica, pelo medo do contágio, sem se aperceberem ainda das consequências que isto tem do ponto de vista do isolamento e da promiscuidade entre o trabalho e a vida familiar. E até pela defesa dos seus direitos, o trabalhador está muito mais sozinho, não é que os sindicatos não possam à mesma apoiar, intervir e fazem-no. Além disso, este isolamento e esta falta de separação entre a vida profissional e pessoal vai ter consequências psíquicas que ainda não estamos em condições de medir. É muito difícil conjugar trabalho, família e lazer numa casa onde estão quatro elementos 24 horas por dia.

A CGTP esteve através do Sitava envolvida nas negociações com a TAP. Como vê este desfecho?

O sindicato da CGTP que representa trabalhadores na TAP é o Sitava que negoceia com a empresa desde sempre. A TAP é responsável por uma fatia muito gorda do nosso PIB porque garante exportações. Esta reestruturação perspetiva-se muito comandada pela União Europeia e às ordens da União Europeia, sem o seu apoio necessário que devia dar como deu a outros países, para que a companhia de aviação nacional se mantivesse funcional, garantindo que cumpre o seu papel. Naturalmente, os sindicatos fizeram a sua negociação e garantiram um conjunto de matérias, mas a questão está na opção estratégica do Governo de não fazer tudo para manter a nossa companhia de aviação de forma a que cumpra o seu papel no interesse do desenvolvimento da nossa economia. Isso não foi feito e eventualmente vamos reduzir a TAP até ficar subsidiária e dependente, se calhar, de outras companhias. Isto não é defender os interesses do país.

Mas acabou por assinar. O reverso da medalha seria pior?

O problema é o plano de reestruturação que o Governo decidiu implementar e depois acenar com uma lei de há 30 ou 40 anos para dizer que ia suspender os acordos negociados livremente entre as partes que garantiam os direitos dos trabalhadores.

Assumiu a liderança da CGTP em fevereiro do ano passado e um dos braços-de-ferro que teve quase logo a seguir foi o 1.º de Maio. Estava à espera de tantas críticas?

O 1.º de Maio não é só uma comemoração, embora também o seja, mas é um dia de luta por melhores condições de vida, de trabalho, pela resposta às reivindicações dos trabalhadores. O 1.º de Maio de 2020 foi necessário e a atividade sindical nunca foi suspensa ou restringida. Garantimos todas as condições de segurança, isso faz parte da nossa forma de trabalhar, de agir e de realizar as nossas atividades. O que não podíamos, naquele momento preciso, era não trazer para a rua os problemas, mesmo que fosse de forma representativa – não pudemos mobilizar a massa de trabalhadores que normalmente estaria na rua devido à situação que estávamos a viver e com os problemas que estavam a ser colocados. Tínhamos de denunciar a falta de respostas e a situação em que os trabalhadores já estavam naquele momento e só tinham passado menos de dois meses desde o início do estado de emergência: mais de um milhão de trabalhadores com cortes salariais, o desemprego que já tinha aumentado brutalmente, a violação dos direitos dos trabalhadores que as empresas começaram a praticar em muitas áreas, aproveitando-se dos vírus. O 1.º de Maio representou um alerta para os trabalhadores de todo o país para perceberem que não estavam impedidos de lutar. Logo de seguida houve um conjunto muito grande de movimentações em todo o país – marchas, desfiles, protestos – e em todos os setores porque os trabalhadores queriam uma resposta aos seus problemas e à situação que estava criada que era sanitária, mas que depois não tinha a resposta económica e social que devia ter.

E volta a repetir este ano?

Já estamos a preparar o 1.º de maio de 2021 e naturalmente a CGTP realizará uma jornada de luta, em que também estão incluídas as comemorações do Dia Internacional do Trabalhador, em que os trabalhadores aproveitarão esse dia para trazer à rua as suas reivindicações, cumprindo as necessárias medidas de segurança da saúde.