Beijos antisséticos


Talvez esta varanda, da qual vislumbro toda a Alcácer e domino o rio como se estivesse no alto do cesto da gávea de um navio preso aos seus alicerces, não seja uma varanda sobre o Sado mas uma varanda sobre o fado. Sentado sob um céu sem nuvens, sei que a minha imaginação obrigará este…


Talvez esta varanda, da qual vislumbro toda a Alcácer e domino o rio como se estivesse no alto do cesto da gávea de um navio preso aos seus alicerces, não seja uma varanda sobre o Sado mas uma varanda sobre o fado. Sentado sob um céu sem nuvens, sei que a minha imaginação obrigará este filibote de azulejo e cimento a viver para sempre sem ter cais. Porque eu, ou na gávea ou ao leme, encontrarei lugares distantes que me esperam nem que seja pela sonoridade do seu nome. “O Fado nasceu um dia/ Quando o vento mal bulia/ E o céu o mar prolongava/ Na amurada dum veleiro/ No peito de um marinheiro/ Que estando triste cantava”, dava a Amália às palavras de José Régio. Durante muitos, muitos anos, andei afastado do fado. Apesar de ter terminado muitas madrugadas lisboetas em velhas casas de fado que se mantinham abertas até o sol nascer. Depois houve alguém me reconciliou com o fado, o Camané, que até foi meu vizinho no Bairro Alto, e já tive a oportunidade de lhe agradecer por isso. De repente, fecharam-nos tudo. Não apenas as casas de fado. Fecharam os restaurantes, os bares, as tabernas mais humildes. Destruíram tertúlias fundamentais em troca dos 30 dinheiros de Judas que são os hipermercados (impedidos de vender livros porque ler não faz falta neste país da indigência), de missa a tostão, de uma porcaria de uma eleição presidencial que, pelos vistos, é mais segura do que uma vacina porque podemos todos enfileirar-nos cumprindo civicamente a obrigação de não cumprir o confinamento. “Na boca de um marinheiro/ Do frágil barco veleiro/ Morrendo a canção magoada/ Diz o pungir dos desejos/ Do lábio a queimar de beijos/ Que beija o ar e mais nada…” Sim, beijo o ar e mais nada porque também proibiram os beijos, e beijar de máscara não é nem amor nem paixão e eu recuso-me a dar beijos antisséticos. Aqui, na proa do meu batel, entretenho-me nas cordas de uma viola velha, não com fado mas com um choro de Vinicius: “Tristeza/ Por favor vai embora…”