Pedro Mexia. Água de colónia com cheiro a naftalina

Pedro Mexia. Água de colónia com cheiro a naftalina


Elevado a ‘consigliere’ no opressivo enredo cultural português, Mexia diz que já não se vê a romper noutra direcção, buscando novos caminhos para os seus versos. De ora em diante, reservar-se-á ao papel de antologiador sucessivo da obra, retocando o retábulo que já conhecemos


O provincianismo português nasce de os portugueses nunca se terem consolado com esta pertença a um país periférico em tudo o que importa. Por em vez de se fazerem valer dessa posição convenientemente obscena, encarando-a antes como um elemento de despromoção, fazerem dela um complexo. Às vezes é preciso não apenas estar na borda do prato, mas ter caído na toalha ou mesmo no chão, para não se preocupar demasiado em fazer boa figura no arranjo geral. Convém descair, resvalar para poder observar a cena sem ser imediatamente observado, e gozar essa vantagem irónica. Sobretudo se um tipo estiver empenhado em visá-la de um ângulo menos óbvio.

Quem logo percebeu isto foram os escritores sul-americanos, que às tantas roubaram a cena com os comentários trocistas ao reunirem-se numa bancada de tal modo deslocada que os actores no palco se encheram de ciúmes, ao virem o foco do público deslocar-se para aquela perversa distracção, tão mais cativante. Veja-se a consciência disto mesmo expressa por Julio Cortázar num dos seus contos: “Que sorte excepcional ser sul-americano, e ainda por cima argentino, e não sentir-me obrigado a escrever a sério, a ser sério, a sentar-me diante da máquina com os sapatos engraxados e uma noção sepulcral da gravidade do instante. Das frases que mais amei premonitoriamente na infância figura a de um colega de carteira: ‘Que risada, toda a gente chorava!’ Nada mais cómico do que a seriedade entendida como valor prévio a toda a literatura importante (outra noção infinitamente cómica quando postulada), essa seriedade do indivíduo que escreve como quem vai a um velório por obrigação ou dá massagem a um padre.”

Ora, como se sabe, entre nós, a seriedade é a regra, e mesmo nas artes, mesmo no humor que se faz, tudo é pesado e dirimido tendo em conta o estatuto, todos praticam a dieta das conveniências sociais. Na literatura, Jorge de Sena foi um dos tantos que farejaram os sinais da reprodução social, denunciando o carácter aristocratizante das obras que vão sendo acolhidas no cânone da literatura clássica portuguesa, “feita por membros das famílias dominantes”. Como nos lembra Diogo Ramada Curto, “para ele, se o século XIX e os republicanos de 1910 propagaram o mito da burguesia portuguesa, o certo é que eles próprios eram ‘fidalgos de solar, da pequena nobreza provincial ou administrativa’”. O historiador adianta que a perspectiva de Sena não anda longe da “denúncia de Curt Meyer-Clason, grande observador da realidade portuguesa, quando explicava, a respeito da relação de parentesco entre Ruben A. e Sophia, que, em Lisboa, “todos são aparentados, tudo está ligado a tudo, como no país inteiro, que, apesar de ser um novelo de disputas, guerras de nervos, fome de poder e fomes, é como se fosse uma só família”.

Este desvairado enredo doméstico em que as primas vivem engalfinhadas e se escabujam para se superiorizarem umas às outras, é esta infrene ânsia aspiracional, que nos perde para essa mistura de pomposidade, petulância e ostentação que, ao mesmo tempo, expõe o ridículo do nosso quadro social, onde todos se fazem de importantes, se enchem dessa respeitabilidade pacóvia, falsificando todos os aspectos da vida e da sua expressão, gerando uma cultura de aparências, um regime de impostura onde vegetam fariseus e hipócritas deliciados com as suas velhacarias e cacarecos. E é neste regime familiar e caseiro, organizado para que triunfem os filhos-família, escudados pelos seus sabujos, que se torna fácil compreender porque tivemos artistas extraordinários, mas a nossa cultura, em geral, se orienta sempre para uma forma de contra-actividade, um regime de salões onde a estética é submetida a princípios de etiqueta, e estamos sempre a deparar-nos com eminências pardas, e essas personagens que ocupam as posições como a massa tenra que oprime a vida, degradando o ritmo, desencorajando todos os ímpetos desafiadores, e, portanto, toda a verdadeira arte. E é preciso lembrar como estes enredos aristocratizantes não são outra coisa senão uma espécie de sindicato a favor desses seres que, em razão da espiral das consanguinidades, são tão amorfos, mas que se garantem através desses quadros proteccionistas, dessa rede de assistência, desses fundos de pensões para os seus frágeis egos.

E para que a vida não os moleste demasiado, adoptam essa sua “concepção-da-vida-deixa-me-sossegado”, e fazem disso a linha distintiva do seu conservadorismo levemente amargurado, pessimista, melancólico. A cultura é aquilo de que se ocupam para, ao demonstrar esse equilíbrio entre petulância e delicadeza, não terem de fazer outra coisa senão produzir o género de artigos de pechisbeque e, deste modo, ir dissimulando certas crises e abismos, mas sempre em doses muitíssimo moderadas. Assim, cada um desses espaços agraciados pelos membros desta nossa corte, redundam em lojas de souvenires, que abundam em reproduções e sucedâneos por referência aos verdadeiros centros da cultura, sendo Lisboa apenas uma capital-satélite, ela mesma uma reprodução em ponto pequeno de Paris, Londres, Roma, Berlim… Tendo isto em conta, na nossa corte não se vive, imita-se. As coisas sucedem sempre como que em diferido, e já com os cortes de modo a não exigir muito nem dos actores nem da audiência, que não deve ser dissuadida numa ida à noite ao teatro de faltar à missa na manhã seguinte. Nesse sentido, há um regime de tradução em que os frescos e as pinturas a óleo são reproduzidas por aguarelistas anémicos que tratam de desbotar o original o suficiente para que nada nunca possa ferir as susceptibilidades.

Houve zonas de expressão que foram sabendo afugentar a audiência, reservando-se àqueles que são capazes de tolerar a sua dose de veneno. Com o passar do tempo, contudo, e à medida que o consumo rápido fez prevalecer esse quadro da ostentação, naturalmente as artes viram-se contaminadas pelas necessidades de um público que exige enfeitar-se com a cultura, preferindo naturalmente peças decorativas, que compra para satisfazer a ânsia da acumulação de objectos, “sejam eles bric-à-brac, souvenires de viagens a paragens exóticas em maior ou menor grau, ou gadgets inúteis” (João Tiago Proença). E embora a poesia estivesse de algum modo defendida desse regime ostentatório, também ela acabou por soçobrar. Hoje vemos como o ritmo daquilo que se exibe em frases quebradas desceu de forma a apanhar mesmo esses que se deslocam nas arrastadeiras líricas. E se Maurice Blanchot insistia em classificar de prosa todos os textos – mesmo aqueles que formalmente procuram ser sinalizados como poesia – contando que se prendessem com as diferenças de impressão produzidas pela existência quotidiana, contingente e laica, ou seja, os textos sem revelação, e que, como o seu nome indica (prosa) fogem sempre para a frente, sem buscar a transcendência, hoje poderíamos dizer que o verso se tornou mais um elemento enganador, mais um ademane que serve para fingir ou se dar ares, para simular uma ênfase que está ausente do texto. Num certo sentido, essa prosa que em vez de ir até ao fim da linha se serve desse arranjo formal como de uma afectação pretensiosa denuncia o seu elemento de fachada. Hoje é bastante evidente para a maioria dos leitores como a poesia, com as suas revistas, colectâneas, os recitais e incessantes celebrações, “acolhe coisas mais parvas e mais pirosas do que as outras regiões literárias” (Pierre Alferi). Isto também explica que haja mais poetas neste país do que leitores de poesia, num quadro de deflação em que um número cada vez maior de burlões disputa essa espécie em vias de extinção que é o leitor de poesia.

Naturalmente, este excesso de bardos, essas cifras ultrademocráticas que foram atiçadas pelo regime de difusão e circulação da versalhada nas redes sociais, acabou por minar inteiramente a aristocrática e orgulhosa atitude do mundo dos poetas, uma vez que o novo quadro de divulgação fez dessas plataformas cibernéticas recintos de uma adolescência despudorada, e qualquer bandalho parte um slogan aos bocados e anda por aí a exprimir-se em haicais. Isto acirrou aquela tendência que Joaquim Manuel Magalhães já havia detectado há umas décadas, notando como uma certa difusão da poesia vai sendo feita “entre a catequese e o ressentimento”. Esta composição de nicho, ajuda ao bafio, o que leva a que o prelado que define a acção das instituições e das editoras mais visíveis restrinja o acesso ao espaço da poesia consagrado como santuário.

Tudo isso favorece o aparecimento de editoras que reforçam essas hierarquias sociais, e amiúde damos por essa forma de agiotagem junto dos mais novos, distribuindo benesses em troca de um entusiasmo ou cumplicidade em redor desse princípio de seita. Vemos assim como as editoras definem um regulamento interno e articulam com esses recenseadores de trazer no bolso, esses júris de prémios organizados em escalas para defender o quartel, e à volta essa população sedentária identificável à primeira vista que faz por subir no partido, condenando-se a uma vida de funcionários compilando poemas-carimbo. Não espanta que neste século não se consiga discernir uma dinâmica de escolas ou movimentos, estéticas decisivas, contrastes animadores, mas apenas alguns fantasmas fora de época entre esse bando de versificadores nostálgicos, ou lúdicos e ocasionais. Poetas aterrorizados pela perspectiva de um confronto crítico, entregues a inanes repetições, cópias, frases reproduzíveis na sua baça regularidade, toda uma literatura de complacência, que compõe um território profusamente ornamentado, cheio de bibelôs que correspondem aos predicados morais e sentimentais que reflectem uma época que, “como nada é levado ao seu termo, nada é desejado por inteiro, tudo se torna fácil” (João Tiago Proença).

Ora, a poesia define-se precisamente por esse grau de exigência que leva a linguagem a alcançar um significado de tal modo inusitado ou um propósito a tal ponto firme que afecta uma mutação de si mesmo e do espaço ao redor. Hoje, pelo contrário, “a maioria dos homens tem uma ideia tão vaga da poesia que esse mesmo vazio da sua ideia é, para eles, a definição da poesia” (Valéry). E isto ao mesmo tempo em que se exibem reacções de alergia ao realmente poético, deixando desamparados, por cobardia, esses raros que poetas ainda vão surgindo entre nós. E para piorar as coisas, ainda temos de levar com os balanços da poesia recente que nos são oferecidos periodicamente pelo género de especialistas que se limitam a lançar os búzios e trazer-nos os seus resumos e antologias sempre a fazer jeito aos primos ou, então, feitas com a vista tão cansada que encontramos um ou dois enrascados enquanto os outros jogam à macaca. Isto já vai extenso para preâmbulo, mas o mais importante era notar que a distinção entre a poesia e a prosa terá de ser retraçada como uma fronteira dolorosa, por meio de uma impiedosa batalha campal. Se Borges nos diz que uma ou outra vez deu por si a suspeitar que a distinção radical entre as duas “está na diferentíssima expectativa de quem as ler”, uma vez que da poesia se pressupõe uma intensidade que não se tolera na prosa, com a falta de hábitos e a falta de orientações mais básicas ao nível da leitura crítica, é preciso reconhecer que a maioria como até a minoria dos leitores já não tem propriamente expectativas em relação a uma ou à outra, limitando-se a arrastar uma massa de equívocos.

Neste ponto, podemos lembrar as palavras de Décio Pignatari para tornar claro como esta indistinção pode ser fatal à poesia: “A maioria das pessoas lê poesia como se fosse prosa. A maioria quer ‘conteúdos’ mas não percebe formas. Em arte, forma e conteúdo não podem ser separados. Perguntava o poeta Yeats: ‘Você pode separar o dançarino da dança?’ Quem se recusa a perceber formas não pode ser artista. Nem fazer arte.”

E então vamos a um dos agentes que tem tido um papel decisivo nessa capitulação da poesia por via de um arranjo formal de textos que, fazendo-se passar por poemas, não passam, na sua generalidade, de anotações, abstracções biográficas, entradas diarísticas, curiosidades, o tipo de inquietações que podem ser organizadas como doenças da pele específicas a um tipo social, uma espécie de urticária burguesa. Na poesia de Pedro Mexia não há traços estilísticos fortes, embora toda ela se guie pela recusa do pathos, por um registo sem sobressaltos, um mero trânsito de impressões ou disquisições à volta da existência quotidiana, quase sempre elaborando sobre aquilo que se impõe mesmo ao ser que preferia estar sem ser maçado e se dá conta de que, no fim, a vida tem esse dispositivo para se livrar até dos que pouco se mexem: o tempo. Em poemas que representam a interioridade enquanto esta preenche o formulário e faz os exercícios requeridos pela inspecção das almas, estes textos guiam-nos numa espécie de elipse generalizada, e, sem o menor destempero ou incomodidade, são-nos servidas as tão sopesadas minutas da tagarelice epocal.

Estes textos falam muito de memória, sentimentos filiais, pensamentos religiosos, frustrações comuns e provas de função metafísica, com o registo rigoroso de perturbações ou disfunções de ordem passional. É o mesmo Pedro Mexia dos blogues, dos diários, das crónicas, aqui, em comprimidos. E o que mais nos fica é a sensação de se ler a bula de um medicamento qualquer para uma persistente indisposição merencória. A própria realidade aparece-nos um tanto pálida, enfiada numa bata hospitalar, com aquele ar de uma ampulheta deitada a rolar entre corredores debaixo da luz branca, numa redução caricatural, inenfática. “Dentro dos livros/ marcas de quando os lemos./ Bilhetes de cinema,/ autocarro, apontamentos/ com demasiadas/ abreviaturas, folhas/ que dizem ‘não esquecer’/ e foram esquecidas.// Nesta tarde li este verso./ O romance na página 89./ Agrupar os eventos/ por contiguidade, remissão,/ a data muito precisa/ destes acasos/ mais importantes/ que a biografia.” Tudo no seu lugar, como uma etiqueta que pende do pé do cadáver de um instante.

Quanto ao enlevo prosódico, nada a registar. Imagens: também nada. Fica-se sempre por uma literalidade que faz com que em vez de uma expressão invulgar nos deparemos apenas com uma carranca. A linguagem é também ela bastante avara, as descrições pautam-se quase sempre por um registo monocórdico, reforçando a passividade do sujeito que parece acrescentar outro e outro “poema” como quem se limita a picar o ponto. Assim, é tudo telegráfico, uma vida telegráfica, como quem telefona aos pais, por cordialidade, por hábito, porque era suposto que um rapaz tão culto tivesse alguma coisa para atirar aos patos que emprestam algum movimento à superfície daquele reflexo. Atira-lhes pedaços de si como miolo de pão. Vemos desenhar-se esse passageiro dessas ficções que se organizam como o cotão da sensibilidade quotidiana, representações dos seres vagos, meio apagados, em perpétuo estado de fracasso. Uma dor sem nome, como se a escrita fosse um mero ritual, as frases de circunstância que se inscrevem no verso de um postal enviado de um lugar qualquer, apenas para justificar uma ausência, uma incapacidade de corresponder seja a que expectativa for, um pedido de desculpas de alguém que nos fala em detalhe da sensação de passar ao lado da vida.

Onde há alguma força nestes textos é precisamente quando os detalhes escapam eles mesmos a esta tarefa de luta de um indivíduo consigo si próprio. “Era a minha altura. Um livro/ em cima da cabeça marcava/ o lugar que um lápis semestralmente/ riscava na parede da cozinha./ A única sabedoria dos ossos, crescerem/ como a teia sólida de um propósito/ e a anatomia mais transparente./ Centímetro a centímetro/ galgava o corpo imaginário, contabilidade/ que era assim íntima, pictórica,/ como uma cena burguesa.// Traço a traço a parede da cozinha/ tornou-se rupestre,/ a infância uma ternura assustadora./ Esta era a minha altura./ Agora sou tão mais alto e mais pequeno.” O momento de maior intensidade são os três primeiros versos da segunda estrofe. Há neles um ameaço de escapar à mansidão desta prosa. E, talvez por isso, Mexia sente a necessidade de acrescentar mais dois versos fraquíssimos. Como se receasse elevar as expectativas. Sempre que vislumbramos algo menos amofinado, sempre que uma sugestão se ergue, logo ele lhe põe uma mão no queixo e outra na nuca e parte-lhe o pescoço. Isso e alguns momentos de humor é tudo o que sobressai numa obra que, de resto, parece favorecer a ideia de que a melhor atitude diante da vida será arrancar aquela raiz afectuosa antes que esta possa degenerar nalguma paixão insubornável. Mas falta o outro lado, o do arrebatamento e das experiências-limite, para que a desistência não se confunda com uma mera forma de cobardia.

Estas digressões dos rotineiros do desespero, dos cadáveres que se aceitam, lembram-nos que o argumento mais fácil numa época em que até os fantasmas nos surgem como farsantes, uma época sem gosto, é esse enredo dos que sobrevivem a si mesmos e só morrem para cumprir uma formalidade inútil. “É como se a nossa vida só se preocupasse em adiar o momento em que poderemos ver-nos livres dela”, escreve Cioran. Só com um nível de execução absolutamente magistral se aguenta ainda este género de composições que se arrastam em termos lacónicos, com aquela “espuma flutuante dos destroços desenraizados da humanidade cuja maré percorre hoje os centros anónimos das nossas cidades”, só conferindo uma formulação monumental a este ou àquele gesto, ideia feita ou ritual, pela força reveladora e o alcance que podem ter para nos sacudir desse torpor com que descemos ao inferno absortos na música de elevador.

É sobretudo irónico que Mexia – alguém que pelos quinze anos já idealizava o primeiro livro de poemas, aos vinte e tais já andava pelos jornais, não demorando a chegar aos espaços de comentário na televisão, e que à medida que se via obrigado a abrir mão das suas mais estarrecedoras ilusões como homem de letras se foi moldando ao perfil de um desses senadorzecos da pena, desses que ocupam um lugar em todas as comissões e se dão ao luxo de perorar sobre tudo, sem nunca pôr em causa nada, sendo-lhes reservado uma gaveta inteira no “frigorífico da glória” (Eduardo Lourenço) –, uma figura com este perfil público, queira registar como “vida oculta” esta ruína auto-infligida que, assim, dá a sensação de ouvir alguém a declamar, mesmo se entredentes, uma peneirenta comédia que nasce talvez de um excesso de sentido do ridículo, de um receio absurdo de se colocar em perigo. “Não se escreve porque se tenha alguma coisa a dizer, mas porque se quer dizer alguma coisa”, vincou Kafka. É este querer que desloca um ser face a si mesmo, colocando-o perante uma exigência radical, uma forma de se responsabilizar pela sua vida. “Quando sabemos o que valem as palavras, o que é espantoso é que tentemos dizer alguma coisa e o consigamos fazer. É verdade que para tanto se exige uma fibra sobrenatural”, acrescenta o autor de A Metamorfose. O mais triste é perceber que há quem insista em levar-se a sério como escritor limitando-se a insistir em variações sucessivas a partir dessas formas de mal-estar degradadas em generalidade. Estas prosas de Mexia não fazem mais que documentar a sua condição de fadiga e abatimento, a par de observações de ordem circunstancial, versos que, muito provavelmente, se ele os tivesse lido noutros autores não teria tido a tentação de os copiar. Ora, se não for tarde demais, talvez uma pista arguta e sugestiva de Kafka possa ainda ajudá-lo a encontrar um rumo. “Existir é plagiar.” Portanto, mesmo para aqueles que sentem que nunca estarão à altura dos melhores versos com que já se depararam, o que se exige é essa última decência, a de copiar como se fossem seus os versos que se gostaria de ter escrito. E isto com a confiança de que o sangue está atento à letra e se insistirmos muito, pode ir ao ponto de contrariar a nossa natureza para ser fiel àquilo que mais profundamente nos arrebatou.